sábado, 31 de dezembro de 2022

Passagens do ano, passagens de vida

 Passagens de ano, passagens de vida

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

Em artigo publicado no O Globo de 29/12/2022[1], Eduardo de Freitas Filho fala sobre os casos de depressão que ocorrem nos finais de ano, evidenciando uma síndrome que se repete nesses momentos de passagem. 

 

São crises de ansiedade e depressão que ocorrem sobretudo depois do Natal, perdurando até o início do novo ano. 

 

Em 2022 a situação se agravou com os conflitos que envolveram as famílias com as divisões políticas que marcaram esse tempo, com quebras de laços de família. 

 

Como diz o autor, ter que permanecer ao lado de pessoas que conflitamos, de uma forma ou outra, “pode libertar sentimentos ruins guardados há tempos, se transformando em raiva, agressividade e aversão”. 

 

Laços abalados ou desfeitos requerem tempo para o trabalho pessoal de recomposição das harmonias. 

 

A cada ano novo somos colocados diante de nosso futuro, e para muitos isso não é tarefa fácil, sobretudo quando o caminho se vê nublado ou embaçado: 

 

“O problema é como lidar com isso, como encarar os gatilhos que a vida pode trazer para avaliar o ano e não ficar frustrado ou chateado com o que conseguiu ou não conseguiu” ao lado do tempo que passou e do caminho que se anuncia.

 

Quando ocorrem esses festejos pontuados por alegria nem sempre  real, vem-me à recordação o duro livro de Philip Roth, “O animal agonizante”[2], que trata justamente do tema de uma impossível felicidade diante da fragilidade de cada um de nós, sobretudo para aqueles que vivem a proximidade da morte. 

 

No romance, temos dois personagens que se encontram na proximidade da passagem de ano, e um deles – Consuela – que foi tão celebrada no passado como uma mulher única, vive uma dramática experiência de saúde. David Kepesh é o personagem masculino, que vem chamado por sua ex-amante, Consuela, para fotografá-la antes de uma operação nos seios, para retirada de um tumor. 

 

Ele relata: “´Não vou morrer daqui a cinco anos, talvez até nem mesmo daqui a dez anos, estou em forma, estou bem de saúde, posso até viver mais vinte`, enquanto ela...”[3].

 

O narrador, David Kepesh, sinaliza que “o mais belo dos contos de fada da infância é que tudo acontece na ordem certa. Nossos avós morrem muito antes dos nossos pais, e nossos pais morrem muito antes de nós. Os que têm sorte acabam tendo a mesma experiência, as pessoas vão envelhecendo e morrendo na ordem certa, de modo que, no enterro, você aplaca sua dor pensando que aquela pessoa teve uma longa vida. Nem por isso a morte se torna uma coisa menos monstruosa, mas esse é o truque que utilizamos para manter intacta a ilusão metronômica, e para afastar de nós a tortura do tempo”[4].

 

Kepesh continua sua reflexão, dizendo que Consuelo não teve essa sorte, e ali, ao seu lado, “condenada à morte, ela assiste àquela comemoração que se prolonga por toda a noite na tela da tevê, uma histeria infantil fabricada em torno do futuro infinito, uma fantasia que os adultos maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não podem nutrir. E nesta noite enlouquecida ninguém tem um conhecimento mais melancólico do que ela”[5].

 

Os dois junto, diante da tevê, assistem o espetáculo da passagem de ano em Havana. E ela, Consuele, chorando, lamenta não ter conhecido Havana.

 

Acho que é importante comemorar com alegria cada passagem de ano, mas sem deixar se levar pela “histeria infantil” diante da hipótese frágil e ilusória de um futuro infinito. Na realidade, o que existe mesmo, é a carência de qualquer substancialidade, como nos ensinam com razão os sábios do budismo. Quando falam em carência de substancialidade, estão apontando para um conceito fundamental que é o anatmam, ou seja a inexistência de substancialidade ontológica em qualquer ser. Algo também relacionado ao conceito de anitta, a impermanência, ou o traça movediço que caracteriza todos os fenômenos[6]

 

Quando falamos em carência de substancialidade estamos igualmente abordando outro tema fundamental do budismo que é a originação interdependente[7]. Todos os seres estão intimamente relacionados: são profundamente interdependentes. 

 



[1]Eduardo de Freitas Filho. “Síndrome do final de ano”. Casos de depressão e ansiedade crescem perto da virada. O Globo, quinta feira, 29/12/2022, p. 19.

[2]Philip Roth. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[3]Ibidem, p. 122.

[4]Ibidem, p. 122.

[5]Ibidem, p. 122.

[6]Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia andiana antiga. São Paulo: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 64.

[7]Ibidem, p. 63.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A beleza do círculo inclusivo

 A beleza do círculo inclusivo


Faustino Teixeira

UFJF/IHU


Uma das grandes alegrias no Simpósio sobre Ibn ´Arabi na PUC-MG, em 16/12/2022, foi conhecer Cecilia Twinch. Ela falou para nós sobre o tema precioso do "Círculo Inclusivo".
Cecília é da Muhyiddin Ibn Arabi Society, de Oxford. Falou para nós num espanhol claro e delicado. O que mais marcou em sua pessoa, como em seu companheiro, foi a simpatia, delicadeza e acolhida. Um sorriso encantador, de quem está habitada a lidar com o Mistério sempre Maior.
O tema de sua fala foi também publicado no livro organizado por Pablo Beneito e Pilar Garrido: El viaje interior entre Oriente y Occidente. La actualidad del pensamento de Ibn ´Arabi. Madrid: Mandala Ediciones, 2007.
O seu texto exerceu em mim uma influência poderosa nas minhas reflexões sobre a dimensão dialogal do sufismo, e em particular de Ibn ´Arabi (1165-1240).
Em sua bela reflexão, Cecilia faz menção ao belo capítulo sobre Hûd no Fûsus de Ibn ´Arabi, quando o místico aborda o tema da proximidade do ser humano a Deus. O humano está profundamente vinculado a Deus, em laços que são ainda mais estreitos de sua ligação com a própria veia jugular.
Com o tema do "Círculo Inclusivo", Cecília nos abre a uma visão universalista e acolhedora do mística andaluz. Com ele, recebemos um convite dialogal único: evitar partilhar uma visão reduzida da realidade, e deixar-se tomar por uma visão mais ampla, com perspectiva universal.
Com esse convite tentador, o impulso criador para uma visão que esteja para além das ataduras das crenças particulares. Mas claro que temos sempre um referencial de pertença, que nos é essencial, mas essa domiciliarão não pode ser uma prisão, que nos impossibilite de captar e perceber a presença do Mistério também alhures.
Se nos apegamos a uma única crença, deixamos escapar bens preciosos do Mistério sempre maior. É o que afirma de forma maravilhosa e livre. É clássica a frase de Ibn´Arabi em seu Fusûs (Os engastes da sabedoria), ao falar do profeta Hûd: "Cuide-se de não te ligar a um credo particular rejeitando todo o resto, pois perderás um bem imenso".
Para onde quer que voltemos o nosso olhar, diz Ibn ´Arabi, com base em passagem do Corão, estamos sempre diante do Misericordioso. A essência do Deus que louvamos está viva e atuante em todas as direções e orientações.
O Mistério sempre maior, que é simultaneamente Tansih e Tashbir (distância e proximidade), rechaça qualquer proposta de limitação. Como diz Cecília, "A Realidade rechaça tal limitação". O lugar privilegiado de aproximação desse Mistério é o coração, capaz de acolher toda as formas.
Ibn´Arabi fala de um "Círculo Inclusivo", capaz de acolher com fraternura todas as "variações da Verdade". Aí está o traço fundamental que caracteriza o Mistério: "Ele possui todas as formas sem estar confinado a nenhuma delas".
Isso não significa, em hipótese alguma, a adesão a um relativismo, mas como eu disse na minha reflexão ontem em BH, O servidor perfeito consegue equilibrar com tranquilidade e confiança o seu "exercício de fé tradicional" com a receptividade à "realização metafísica da Palavra".
Em síntese, foi um simpósio maravilhoso, e fiquei encantado de poder conhecer pessoalmente Cecília, essa dama do diálogo e da abertura ao outro.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

O cachorro e o ódio

 O cachorro e o ódio

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

O professor e compositor José Miguel Wisnik ministrou um interessante curso de seis aulas no Ateliê Paulista em torno ao tema: Contos Morais e Imorais. Isso ocorreu em novembro e dezembro de 2022.

 

No primeiro encontro, Wisnik comentou um interessante conto de J.M. Coetze, prêmio nobel de literatura. O conto, bem curto, se chama "Cachorro", e aborda um tema que se adequa muito ao nosso tempo aqui no Brasil, marcado pela narrativa do ódio[1].

 

No conto, temos um cão feroz, que regularmente busca atacar uma jovem que passa de bicicleta diariamente pelo local, e religiosamente o cão reage da mesma forma, com ira e violência, todas as vezes que a jovem passa ao lado do portão.

 

O que estamos vendo no Brasil pós eleição de Lula, é a presença de uma massa "canina" irada, tomada de ódio, radicalmente contrária à acolhida do resultado das eleições. E essa massa danada, com suas camisas verde-amarelas, reage sempre como o cão do conto de Coetze. 

 

É só passar perto deles, que eles avançam com violência e ira... Nos olhos deles e delas, como no cão, a presença de um "ódio do tipo mais puro". E eles, como o cão, sentem uma profunda satisfação de ver nos olhos de quem passa o medo da possível violência. Não conseguem esconder o ódio, e não conseguem "controlar" os movimentos do corpo, como já dizia Agostinho sobre as criaturas decaídas. 

 

Estamos vivendo em tempos difíceis, quando o direito às armas foi liberado por um cidadão que tentou governar esse país. E agora, as armas estão soltas por aí... E essa gente perdida permanece achando que tem o direito de continuar exalando o seu ódio por todo canto e a todo custo.

 

Ao final do conto, depois que a jovem tentou em vão convencer os donos do cachorro a se familiarizarem com ela, o autor termina escrevendo: 

 

"O cachorro se atira contra a cerca. Um dia, diz o cachorro, esta cerca vai ceder. Um dia, diz o cachorro, vou te despedaçar".

 

 



[1]O conto foi publicado no livro: J.M Coetzel. Contos Morais.  São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Celebrando os 59 anos de Marco Lucchesi

 Celebrando os 59 anos de Marco Lucchesi

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

Hoje, 09 de novembro de 2022, comemoramos o aniversário de Marco Lucchesi. É dia de grande alegria para mim, pois tenho em Marco um amigo muito especial. Posso dizer que é algo de grande profundidade que nos une. É o meu grande parceiro do diálogo e da abertura ao outro. Li ontem, emocionado, o livro que acaba de sair sobre ele: Marco Lucchesi, poeta do diálogo (Tesseractum, 2022). Um livro organizado por vários autores, a começar por Ana Maria Haddad Baptista. São inúmeras entrevistas concedidas por Marco Lucchesi nos últimos anos. 

 

Ao início Marco fala do significado de ser entrevistado: “A entrevista é um espaço visionário, uma convocação de todos os possíveis”. Ele fala que dificilmente escreve cartas, e sei disso, mas manda bilhetes, sobretudo “para dar impulso” aos seus interlocutores”. São “espasmos”. 

 

Marco está em tempo sabático na Itália, junto a seus familiares, dedicando-se também aos estudos de Turco, na Universidade Oriental de Nápoles. O turco, para ele, é das línguas que aprendeu, a mais difícil. Tive a alegria de fazer o prefácio de um dos trabalhos que realizou ali, traduzindo um grande místico turco: Yunus Emre. Nesse seu primeiro ano sabático, depois de 32 anos de trabalho na Universidade, pôde também viajar pela Amazônia, estudar a língua Nhengatu e viajar pelos rios da região visitando comunidades indígenas.

 

Um dos títulos de entrevista concedida por Marco, resume bem o que ele é: um grande buscador na aventura da Unidade. Fala de sua paixão pela Divina Comédia, mas se inspira também em busca similar a de Ulisses: “Eu me deparo com Ulisses que não volta para Ítaca, indo naufragar nas praias da eternidade, junto ao Purgatório”. 

 

Comenta vários de seus livros, um dos quais tenho grande admiração: Os olhos do deserto(2000). Nesse livro, Marco fala de sua paixão pelo deserto: “O corpo do deserto me fere de modo irreversível. Sou habitado por uma paisagem de pedra e de areia, pela qual sigo enamorado, e beijo seus lábios de vento e desabrigo”. Com o deserto, a grande paixão pelo Islã e sua mística maravilhosa. Nas paisagens da Síria, no deserto de pedras de Mar Musa, conheceu o jesuíta Paolo dall´Oglio, e seu lindo projeto dialogal. Dele ouviu palavras reveladoras: “Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude da tranquilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito”. No livro-entrevista, Marco sinaliza que sua grande paixão tem sido “a de conjugar as parte quebradas de um diálogo”, com a consciência viva de que “a cidadania vem dos âmbitos de uma conversa marcada de adição”.

 

Marco pontua que os desertos que mais o impressionaram foram os da Mauritânia e o da Síria: “As grandes vastidões, o sentimento do infinito, a nostalgia do mais se entrecruzam nesses espaços marcados de infinito”. Foi para ele uma experiência de nudez essencial, que revelou “caminhos de sensibilidade” e a recordação da “inefabilidade do Paraíso de Dante”.

 

Sobre o futuro, Marco sublinha que o encara com saudades: “Saudade do ainda-não. Mesmo que no passado. A volta de Guimarães Rosa como a volta ao primordial, fora do tempo e do espaço. A demanda de Ítaca e do tempo mítico”. Outro belo livro de Marco fala também desse tema: Saudades do Paraíso(1997). Ali relata grandes encontros que teve em seu caminho: com Roger Garaudy, Nise da Silveira, Rubens Corrêa, Adélia Prado, Antônio Carlos Villaça e Naguib Mhfuz. Encontros lindos e reveladores, com aprendizados inaugurais. 

 

Desse livro assinalo a importância do capítulo nomeado Rosto Perdido, onde Marco traço um pouco o que foi o seu caminho, a sua “palavra-conflito”. Dizia que sua grande viagem “era toda metafísica”. Uma viagem “não menos dramática” que alguns de seus colegas que optaram pelas drogas. Era também uma viagem xamânica, “não menos lúcida e não menos arriscada”, marcada pelo anseio do divino, pela nostalgia diante de tudo. Dizia: “Conhecer Deus e provar-lhe a existência. Conhecer Deus e procurá-lo sem trégua (...), subindo escarpas íngremes e algo impenetráveis, devassando as suas entranhas invisíveis, logrando a teoria, sem os enigmas da imanência”. 

 

Como seus pares, identifica aqueles que aderem a horizontes similares, e não “aos que militam na burocracia, no inferno das formalidades desfibradas, sem entusiasmo”. Como diz Paul Tillich na sua Teologia Sistemática, entusiasmo é “ter Deus dentro de si”. Isso Marco tem com largueza. Admira os críticos literários, mas sempre movido pela advertência de Pablo Neruda, em sua Ode à Crítica. Quando trata desse campo, Marco está atento: “A crítica da poesia, meu Deus! E as exclusões, a pressa em catalogar borboletas, assassinando-as, impedindo-lhes o voo”. 

 

Acabou decidindo abandonar o trabalho inglório das traduções, para ele “um trabalho desesperador, um convite para insônias”. Dedica-se agora às traduções mais sedutoras, sobretudo ligadas à mística. Sublinha que ao se dar ao trabalho de tradução busca encontras afinidades e admirações, “zonas de fronteira e leituras coincidentes, de modo a evitar arbitrariedades de si contra si, das “esquizofrenias e pluralidades” que não lhe pertencem. Procura sempre, sim, ressonâncias. 

 

Marco diz que a literatura e a poesia o salvaram, permitindo a rica “articulação entre plural e singular, como se a virtualidade do poema representasse um caminho sutil, que se espalha ao passado e ao futuro”. Traduziu poetas que sempre amou como Rilke, João da Cruz, Rûmî e Trakl. Para ele, a poesia não é a segunda pele, mas a primeira, a poesia entendida “como a forma de sentir e organizar o mundo das coisas”. Quanto ao panorama da poesia brasileira, Marco vê muitos pontos positivos, mas não se esquiva do que há de problemático: “O lado negativo repousa nas igrejinhas, nos pequenos partidos, em certas mistificações, ou zelos excessivos, e na tremenda confusão de transformar a experiência literária num pretexto a desperdiçar o estado de ser mais visceral, o risco mais intenso e profundo que o fazer poético pode produzir”.

 

Os tempos atuais, difíceis, causam profundo horror a Marco. Sublinha que esses tempos são “ferozes”, e que “a cada qual foi reservado uma herança de naufrágio e redenção”. Como viajante teimoso, Marco continua vivo em sua busca radical da paz e do diálogo. Recorre de forma brilhante ao seu dom único de buscador, de um intelectual que não teme diante das situações-limite, sempre visando algo mais, sempre na busca de superação de seu manejo com a palavra, transitando com alegria pelas diversificadas áreas do saber, mas sobretudo buscando o ser humano, onde quer que ele vibre na sua habitação. Parabéns, Marco querido.

A ruptura no tecido católico brasileiro

 A ruptura no tecido católico brasileiro

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

Queria em primeiro lugar agradecer ao convite feito pela amiga querida, pastora Romi Benck e membros da Coordenação da Comissão Brasileira Justiça e Paz,  organizadora desse evento[1]. Fico feliz de voltar, depois de algum tempo, ao tema da conjuntura eclesiástica e eclesial no Brasil. Desculpo-me por falar de longe, utilizando o recurso das redes, em razão de cuidados com a saúde.

 

Vou buscar seguir a seguinte estratégia: vou me utilizar do artigo de Pedro Ribeiro de Oliveira, publicado no IHU-Notícias[2], e a partir de suas colocações vou inserindo alguns dados, comentários e observações.

 

Logo no início de seu artigo Pedro fala do agravamento do dissenso na igreja católica nesse período eleitoral. Ele diz:

 

“Entre os muitos estragos causados pelo recente processo eleitoral está o agravamento do dissenso no interior da Igreja Católica. É como se os remendos que já há algum tempo vinham sendo colocados sobre um tecido esgarçado revelassem de uma hora para outra sua inutilidade. Não há mais como esconder: a Igreja Católica está dividida e essa divisão não pode mais ser disfarçada.”

 

Ele busca dar uma explicação sociológica para o fato:

 

“Sabemos bem que a Igreja Católica se distingue entre as Igrejas cristãs por sua enorme capacidade de conviver com as diferenças religiosas. Desde que tenha sido batizada e não renegue publicamente a fé ou a igreja, a pessoa é católica – pouco importando o que crê ou sua maneira de relacionar-se com o sagrado. O fato novo, agora, é que o avanço neofascista na Igreja trouxe divergências de ordem moral e política incompatíveis entre si, tornando praticamente impossível uma verdadeira comunhão eclesial. Sinal disso é a crescente disseminação de rituais do tempo de Pio XII o concílio Vaticano II não tivesse existido. Mais do que uma afinidade afetiva entre a postura política neofascista e os ritos anteriores à reforma litúrgica, existe uma afinidade estrutural entre eles.”

 

Aqui faço um primeiro comentário: temos de estar cientes que vivemos um período eclesial que está envolvido por mais de trinta e cinco anos: uma conjuntura marcada pelo projeto de restauração, como bem lembrou o então cardeal Ratzinger em seu livro: Rapporto sulla fede, de 1985[3]. É um livro que considero fundamental para entender o que ocorreu nas décadas seguintes. Ele falava ali de restauração como busca de um “novo equilíbrio para a igreja” depois da indiscriminada abertura ao mundo provocada pelo Vaticano II[4]

 

No livro já aparecem uma série de traços que vão marcar a restauração: os desequilíbrios na eclesiologia pós-conciliar (por exemplo, a ideia de povo de Deus; a ideia de igreja “nossa”; de democracia na igreja); a crítica às conferências episcopais como colegialidade efetiva (ele vai falar em colegialidade afetiva); o drama da teologia moral (para ele, o lugar principal das tensões entre magistério e teologia); o empobrecimento da liturgia; os abusos no ecumenismo (e o risco do esgarçamento da verdadeira essência da fé católica)[5].

 

A tensão interna na igreja, de eclesiologias em conflito, continua a perdurar. É o que sublinha o vaticanista Marco Politi em seu livro: Francesco, la peste, la rinascita  (2020)[6]. Ele aponta a difusão crescente da oposição de ultra-conservadores contra o pontificado de Francisco. Um verdadeiro ataque contra a linha evangelizadora levada por ele. Politi já tinha abordado a questão do isolamento de Francisco em dois outros livros: Francesco tra i lupi(2014) e La solitudine di Francesco(2019)[7].

 

Nesse último livro, Politi fala de uma cúria “irritada” com Francisco[8]e da crescente desafeição da fé entre as mulheres[9](p. 193); fala igualmente de um novo fenômeno na igreja: “crer sem pertencer”[10](p. 210). Enfatiza, porém, o tema da solidão de Francisco.[11]

 

Obstáculos difíceis surgem por todo canto, como mostra Politi em seus trabalhos:  no ataque aos pronunciamentos, viagens e gestos de Francisco. Os adversários crescem em força e popularidade, acentuando ainda mais a solidão de Francisco, que corajosamente se move entre os lobos. 

 

Sobre essa oposição debruça-se Politi no final de seu livro, Francesco, la peste, la rinascita, sobretudo dos ultra-conservadores[12]. Francisco, porém, segue em frente olhando corajosamente para o alto. Deixa as preocupações maiores aos pés de São José dormente, cuja imagem o acompanha em seu quarto. Elas se revertem em bilhetes para o santo. E depois dorme tranquilo. Como Riobaldo Tatarana, de Grande Sertão: Veredas,  Francisco faz de sua vida um ato de coragem crescente, e de entrega ao poder sanador das rezas. 

 

E reage profeticamente: “Quando vejo cristãos muito arrumadinhos, que angariam a posse da verdade, da ortodoxia e da doutrina verdadeira, e são incapazes de sujar as mãos para ajudar os outros a levantarem (...). Quando vejo esses cristãos digo: vocês não são cristãos, mas teístas com água benta cristã, mas não chegaram ainda ao cristianismo”[13]

 

Pedro Ribeiro chama a atenção para outro tópico, que também esteve na mira da restauração romana: o “risco” da irrupção das mulheres na igreja. Quanto a isso, sublinha o seguinte a respeito da união entre a postura política neofascista e os ritos anteriores à reforma litúrgica:

 

“O que os une estruturalmente é a rejeição à última inovação da modernidade: o ascenso social das mulheres minando o sistema familiar fundado no patriarcado. É o próprio sistema de poder masculino – chefe de família ou chefe de igreja – que se esvai, obrigando todos os demais componentes a redefinirem seu papel. Como se isso fosse pouco, vem à tona toda a questão da sexualidade, agora vista sob o prisma das teorias de gênero e assumida pela bioética que não se deixa reger por normas religiosas.”

 

Todo esse arcabouço vem sendo questionado nas últimas décadas pela teologia feminista e por práticas inovadoras na vida pastoral. Retoma Pedro sua reflexão:

 

“O ideário patriarcal, que sustentou tanto a organização familiar quanto a principal Igreja do Ocidente, encontra-se agora sob ataque não só do feminismo, mas também de outros movimentos libertários, decoloniais e contra o supremacismo.”

 

E isso tem provocado resistência crescente em segmentos da igreja católica:

 

“Diante desse ataque, o elo entre o neofascismo e o enrijecimento da liturgia tridentina cria um movimento propriamente reacionário: ambos se colocam em defesa de um sistema de poder cujas bases estão irremediavelmente abaladas. Aí reside sua afinidade estrutural. Nem um nem outro apresenta algum projeto de futuro: ambos idealizam um passado que nunca existiu e infundem o medo ao futuro assombrado por um fantasma comunista.”

 

Acrescento aqui a delicada questão das denúncias que vão crescendo por toda parte, envolvendo desequilíbrios do clero e do episcopado no campo da sexualidade:

 

Vale lembrar, que tais questões foram decisivas para a decisão da renúncia do papa Bento XVI: veja o importante capítulo do livro de Marco Politi, Joseph Ratzinger crisi di un papato (2011)[14], cujo título é indicativo: o grito dos inocentes (capítulo 11). Ali vem citada a carta do papa dirigida aos católicos da Irlanda, em 19 de março de 2010, onde Bento confessa os graves pecados da igreja. Diz ele: “Em nome da igreja expresso vergonha e remorso”[15]. Já antes, em 2004, o papa Bento XVI havia dado início ao processo contra Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo.

 

E agora, na França, nos deparamos com a publicação feita pela comissão independente sobre o abuso sexual na igreja. Uma comissão criada em 2019 a pedido do episcopado francês. Ela acaba de divulgar o impressionante número de abusos sexuais cometidos por religiosos/as no âmbito da sexualidade, envolvendo em 70 anos 330.000 pessoas[16]

Toda essa problemática envolvendo o tecido eclesial vem também sublinhada por Danièle Hervieu-Léger e Jean Louis Schlesing, em importante livro de entrevista: Vers l'implosion ? Entretiens sur le présent et l'avenir du catholicisme (2020)[17].

Retomando ao artigo que nos guia, Pedro adverte-nos sobre o novo momento que indica uma migração de católicos para o tradicionalismo:

 

“O período eleitoral e os movimentos golpistas posteriores ao resultado do 2º turno mostraram o quanto esse medo foi difundido em diferentes segmentos da população brasileira, entre os quais destaco os católicos que migraram do movimento carismático para o tradicionalismo.No campo católico, esse movimento reacionário veio aprofundar o dissenso que já estava em curso numa Igreja em processo de encolhimento, como mostram as celebrações dominicais cada vez mais esvaziadas de fiéis.”

 

Outro comentário meu. Fico impressionado com o ritmo dessa presença conservadora entre os fiéis católicos, bem como no clero e episcopado.  E tudo pontuado por acentuação de uma “raiva”[18]que nos preocupa. Quando nos deparamos com os circuitos bolsonaristas, nesse momento da pós-eleição, chama a atenção o olhar de ódio expresso por alguns, como o violento cachorro do conto de Coetzee: “O cachorro se atira contra a cerca. Um dia, diz o cachorro, esta cerca vai ceder. Um dia, diz o cachorro, vou te despedaçar”[19].

 

Para um maior esclarecimento da questão, chamo aqui a atenção para um precioso livro publicado no Brasil, que aborda o tema do crescimento da direita no país: João Cezar de Castro Rocha. Guerra Cultural e Retórica do ódio[20]. Tratando a questão da ascensão da direita como um movimento subterrâneo, o autor sublinha:

 

"Sem maiores suspenses: entre os anos de 2002 e 2016, a presença democrática e legítima, de um partido de esquerda no governo federal, permitiu o estabelecimento de uma associação nova: ser oposição ao sistema, ao establishment, passou a significar assumir posições de direita.[21]

 

O autor busca fazer um cálculo interessante:

 

“Um adolescente que em 2002 tivesse 14 anos, em agosto de 2016 tinha 28 anos. Se tivesse 18 anos, completou em 2016, 32 anos. Radicalizemos na aritmética política do talvez quem sabe o inesperado faça uma surpresa: se nosso adolescente modelo tivesse 10 anos em 2002, na saída da presidente Dilma Roussef, chegou aos 24 anos (...). Visto pelo avesso, isso também quer dizer que houve uma geração que ingressou na adolescência e nos anos iniciais da vida adulta assistindo a um partido de esquerda triunfar em quatro eleições presidenciais, e com fôlego para um projeto de poder ainda mais longevo”[22].

 

E a semente da direita foi sendo gestada, desde o início da redemocratização, como lembra o autor:

 

A reorganização subterrânea da direita principiou no início mesmo da redemocratização, já em 1985, e se adensou na década de 1990, recrudescendo, e muito, em 2002 com a primeira vitória do PT à presidência. O triunfo de Dilma Roussef, em 2010, e a instalação da Comissão da Verdade, em 19 de novembro de 2011, forneceram o combustível que faltava para a explosão de uma energia que se acumulou por duas décadas."

 

Foi quando então, nessa atmosfera, que Jair Bolsonaro "obteve sua votação mais expressiva precisamente em 2014, quando obteve uma conquista inédita, tornando-se o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, com 464.772 votos.[23]"

 

Para João Cesar, o caminho de acolhida de Jair Bolsonaro foi sendo tecido de forma cuidadosa e muito bem planejado, daí ter conseguido os impressionantes 57.797.847 votos válidos para a presidência da república em 2018, ou seja: 55,13% dos votos válidos. 

 

Para o desenvolvimento de sua argumentação, João Cesar faz recurso a dois argumentos que gostaria aqui de evidenciar: 

 

(a) Para se compreender pertinentemente a ascensão da direita no Brasil nos últimos anos, há que pesar o importante influxo do pensamento e ação de Olavo de Carvalho, a partir de 1990. 

 

Ele atuou em várias frentes: programa de rádio, curso on-line de filosofia, no seu canal do you tube, no seu perfil do Facebook e na sua conta do Twitter. Ressalto aqui a bem sucedida ação da direita nas redes sociais, transformada em plataformas políticas de longo alcance.

 

Mesmo não sendo um intelectual de expressão, Olavo de Carvalho dispunha não só de uma “prosa hipnotizante” e um discurso com “poder encantatório”, sobretudo no livro: “O jardim das aflições”[24]. Algo que eu também já me dava conta em conversa com o músico Thiago Amud.

 

Com Olavo de Carvalho inaugurou-se um traço nefasto na dinâmica social brasileira que é a "retórica do ódio". Com ele veio o incremento de uma "pulsão autoritária, cujo ponto de partida seria precisamente a supressão de toda e qualquer instância mediadora entre os poderes constituídos e a cidadania"[25].

 

(b) O fato novo da emergência no espaço público de uma juventude de direita, sobretudo nos últimos 15 anos. 

 

Lembremos daquele fato que foi muito comentado de jovens que atacaram verbalmente Chico Buarque de Holanda. Fenômeno que vem se repetindo com frequência, inclusive com invasões de páginas na internet, interrupções de eventos e conferências, e intervenções em atividades on-line. Trata-se de uma juventude que se faz presente com vitalidade nas redes sociais. 

 

João Cesar nos lembra que a legítima chegada ao poder do PT, em 2003, e sua permanência no cenário nacional por 14 anos, até 2016, abriu espaço - não intencionalmente, é claro, para a "emergência de um fenômeno inédito na vida social brasileira", ou seja, "uma numerosa e ruidosa juventude de direita"[26].

 

O autor reconhece, por exemplo, o valor do renomado filme de Petra Costa, "Democracia em Vertigem", mas sublinha um problema concreto no filme, ou seja, a inexistência no documentário da ameaça presente na nova direita, sobretudo na juventude. Para o autor, na narrativa da diretora do filme, "a direita simplesmente não existe"[27]

 

No recente documentário produzido por Bernardo Kustner, “Eles estão no meio de nós”[28], o alvo prioritário é a teologia da libertação. As investidas são pesadas, duras e injustas, a meu ver. Trata-se de um documentário que traduz claramente a visão desta nova direita, que se faz presente também na juventude.

 

Ao final de seu artigo, objeto de nossa reflexão, Pedro Ribeiro de Oliveira evita fixar-se num pessimismo quanto ao futuro da igreja católica, e aponta caminhos para uma possível transformação. Sugere pelo menos uma pista importante para, ao menos, adiar um pouco mais uma implosão que seria indesejada. Isso me fez lembrar o livro de Ailton Krenak, “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), quando ele diz: 

 

“Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos”[29].

 

Pedro Oliveira lembra que todo esse dissenso que fratura a igreja católica favorece ainda mais o esvaziamento da comunidade eclesial, que os recentes censos têm apontado com relevância. Sublinha que o próximo censo “certamente mostrará o decréscimo da população católica com menos de 40 anos de idade, seguindo a tendência apontado pelo censo de 2010”.

 

Ele reconhece que para a população acima de 50 anos, a igreja católica continua sendo um importante espaço de sociabilidade, mas isto também, segundo ele, tenderá a diminuir com o tempo, caso não haja alguma mudança importante de percurso eclesial.

 

Infelizmente, o que vemos, é a manutenção de caminhos tradicionais, sem maiores preocupações em buscar “novos espaços de sociabilidade”, como ocorreu com as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais Sociais. O que vemos em curso, sublinha Pedro, é a manutenção de “celebrações-espetáculo, em programas religiosos na TV, em turismo religioso e em programas radiofônicos de autoajuda.” Mantendo-se tal tendência, diz Pedro, “dentro de mais algum tempo a Igreja Católica brasileira, confinada aos santuários, templos e sacristias, terá perdido a incidência na vida da população em geral”. Preocupa-me também os arranjos que vão sendo tramados para mudanças na presidência da CNBB, numa direção que preocupa. 

 

Pedro Oliveira demonstra preocupação com esta adesão de segmentos do clero ao ideário neofascista: 

 

“Nesse quadro de perda de importância da Igreja na sociedade, muitos clérigos aderem ao ideário neofascista e assumem uma postura reacionária tanto nas questões da sociedade quanto da religião. Embora essa adesão seja mais visível entre os padres e mais discreta entre os bispos, aí reside o risco de ruptura da comunidade católica: quando um lado não reconhece o outro como legitimamente católico. Não há mais como costurar o tecido religioso rasgado. Tudo que se consegue fazer hoje é colocar remendos, que cedo ou tarde esgarçarão mais ainda o tecido.”

 

Reconhece o autor que sua pintura da conjuntura é forte, mas traduz um alerta que é muito importante, sobretudo para uma igreja que foi exemplo e testemunho para o mundo inteiro. E nos adverte para a irradiação desses padres conservadores:

 

“O apoio explícito de padres ao governo agora derrotado e o silêncio da maioria do episcopado diante das barbaridades por ele cometidas só confirmam a tendência de ruptura no interior da comunidade católica.”

 

Pedro demonstra preocupação, mas evita em falar em risco de cisma na igreja católica brasileira:

 

“Isso não significa que estamos às vésperas de um cisma – com a institucionalização de duas igrejas de confissão católico-romana –, mas caminhamos rapidamente para um quadro de desinteresse de um lado em participar da mesma Igreja que o outro. Se o movimento tradicionalista continuar crescendo, os católicos que não o aceitam se afastarão e a Igreja Católica poderá viver o pior dos cenários: sua redução a um conjunto de seitas tradicionalistas.

 

Diante desse quadro, reflete Pedro Oliveira, é mais do que necessário e urgente  “elevar o teor profético da Igreja.”

 

Pedro aventa nomes que foram fundamentais para o profetismo na igreja brasileira: 

 

“Tivemos bispos como Helder Camara,  Paulo Evaristo, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduino e outros que ousaram quebrar a unanimidade de um episcopado silencioso diante de violações aos direitos humanos.”

 

Acrescento aqui o importante papel exercido por Dom Aloísio Lorscheider e Dom Luciano Mendes de Almeida, bem como Dom Celso Queirós, quando era secretário geral da CNBB:

 

Recordo-me muito bem de uma reunião do Instituto Nacional de Pastoral que participei onde estavam presentes os dois e relatavam as pressões sofridas pela CNBB na ocasião:

 

A fala emocionante de Dom Celso Queiroz, falando do sofrimento da CNBB na defesa das causas libertadora, em particular na defesa das  CEBs em tempos duros da repressão. E dizia: “A Igreja nas bases encontrou exigências maiores de participação e com maior intensidade, e não é tão claro se a igreja institucional ou o episcopado está disposto, como corpo, a compreender isso e acompanhar,”[30]

 

Como mostra Pedro Oliveira, todos eles

 

“devem ser sempre lembrados, para que os bispos e padres que hoje seguem seu exemplo não se sintam como destoantes do conjunto, mas hoje a Igreja Católica já não se entende mais apenas como um espaço de bispos e padres. O movimento histórico de superação do patriarcado entrou também no campo católico onde, desde a segunda metade do século passado, religiosas, leigas e leigos ocupam progressivamente posição de liderança nas comunidades de base, tendo sua autoridade reconhecida pelos fiéis, independentemente de seu reconhecimento canônico. Existe aí um potencial profético que poderá em breve tornar-se a principal fonte de vitalidade pastoral na Igreja Católica brasileira.”

 

Pedro Oliveira reitera não ser necessário que os profetas sejam muitos, mas que, mesmo em menor número, saibam ser pessoas “admiradas e respeitadas por sua fidelidade ao Evangelho, por sua prática pastoral e por sua adesão às orientações de Francisco.” O que mais importa, como diz Gilberto Gil em sua linda canção, Ok, Ok, Ok, é ter uma “alma nobre”, que possa irradiar vida e alegria para os outros em tempos difíceis.

 

Em seu belo artigo, Pedro finaliza dizendo que 

 

“serão essas,  as vozes proféticas que suscitarão novas forças ao Povo de Deus que está no Brasil (...). Se assim for, este momento doloroso de divisão eclesiástica pode tornar-se também o momento germinal de uma Igreja atualizada para assumir o projeto de Jesus na história do século XXI.[31]

 

Gosto muito de ver acontecer esse otimismo do amigo querido de Emaús, Pedro Ribeiro de Oliveira, que permanece teimosamente acreditando na utopia de igreja que todos queremos e brindamos, na linha acolhedora e profética do papa Francisco. Com Francisco permanecemos acreditando no sonho de uma igreja simples, profunda e irradiante, fundada no agape, no amor aos outros, que para Francisco revela-se “o único modo de amar a Deus”, aquele indicado com clareza por Jesus[32].

 

 

 



[1]Encontro da Coordenação da Comissão Brasileira Justiça e Paz. Brasília, 2-4 de dezembro de 2022.

[2]Pedro A. Ribeiro de Oliveira. A Igreja Católica do Brasil está rachando. IHU-Notícias, 11 de novembro de 2022:

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/623848-a-igreja-catolica-do-brasil-esta-rachando-artigo-de-pedro-a-ribeiro-de-oliveira(acesso em 03/11/2022)

 

 

[3]Joseph Ratzinger. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985.

[4]Ibidem, p. 36.

[5]Na Carta aos bispos sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão, da Congregação para a Doutrina da Fé, de1992, busca-se distinguir entre Igreja e Comunidades Cristãs (dotadas de “elementos da Igreja”).

[6]Marco Politi. Francesco. La peste,  la rinascita. Bari: Laterza, 2020.

[7]Marco Politi. Francesco tra i lupi. Il segreto di una rivoluzione. Bari: Laterza, 2014; Id. La solitudine di Francesco. Un papa profetico. Una chiesa in tempesta. Bari: Laterza, 2019.

[8]Marco Politi. La solitudine di Francesco, p. 141.

[9]Ibidem, p. 193.

[10]Ibidem, p. 210.

[11]Ibidem, p. 228.

[12]Marco Politi. Francesco..., p. 111-112.

[13]Ibidem, p. 112-113 (aqui Politi faz menção às palavras de Francisco aos capelães do cárcere de Padova, tomados do livro de Francesco Pozza: Io credo, noi crediamo. Rizzoli, 2020).

[14]Marco Politi. Joseph Ratzinger. Crisi di un papato. Roma/Bari: Laterza, 2011.

[15]Ibidem, p. 219.

[16]https://www.ihu.unisinos.br/categorias/614400-franca-o-magisterio-das-vitimas(acesso em 05/11/2022). Poderíamos citar uma série de filmes que nos últimos anos vêm colocando essa questão em evidência.

[17]Danièle Hervieu-Léger e Jean Louis Schlesing. Vers l'implosion ? Entretiens sur le présent et l'avenir du catholicisme, Paris: Seuil, 2022.

[18]Em fantástica metáfora sobre o tema da raiva, indico o precioso livro do nobel de literatura, J.M. Coetzee, Contos Morais, em seu primeiro capítulo intitulado: O cachorro (São Paulo: Companhia  das Letras, 2021, p. 7-13).

[19]J.M. Coetzee, Contos Morais, p. 12.

[20]João Cezar de Castro Rocha. Guerra cultural e retórica do ódio. Crônicas de um Brasil pós-polítivo. Goiânia: Caminhos, 2021.

[21]Ibidem, p. 128.

[22]Ibidem, p. 128-129.

[23]Ibidem, p. 130.

[24]Ibidem, 137-138.

[25]Ibidem, p. 45.

[26]Ibidem, p. 127.

[27]Ibidem, p. 35-38.

[28]https://www.youtube.com/watch?v=RahB38Rgd6w(acesso em 04/11/2022). Há também o diálogo de Bernardo com a apresentadora Leda Nagle, que é também sugestivo para elucidar a questão: https://www.youtube.com/watch?v=5cNnQnmz57w(acesso em 04/11/2022)

 

[29]Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[30]INSTITUTO Nacional de Pastoral (Org). Pastoral da Igreja no Brasil nos anos 70. Caminhos, experiências edimensões. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 40-45 ( Dom Celso Queiroz).

[31]E quero aqui indicar com entusiasmo o livro-entrevista de José Antonio Pagola: Un creyente apasionado por Jesús (entrevistas com o sobrinho de Pagola: Juan Ignacio Pagola). Boadilla del Monte: PPC, 2022. Indico o livro, por ver nesse teólogo, um dos grandes estimuladores do seguimento de Jesus, em profunda sintonia com o papa Francisco.

[32]Papa Francesco & Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaudi/La Repubblica, 2013, p. 56.