segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Sobre o amor, retomando...

 Sobre o Amor, retomando ...

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Já pensando aqui no encontro que terei com Márcia Rivas, no final de novembro, numa reflexão sobre o amor.

 

Esse é um dos temas que venho refletindo em tempos recentes.

 

Lembro-me de reuniões de orientação no mestrado e doutorado, onde o tema aparecia, e me servia do interessante livro André Comte-Sponville: “O Amor” (2011). Trata-se de uma longa palestra dada pelo filósofo, e depois gravada para as Éditions Frémeaux (2008). 

 

Ele começa falando sobre o amor paixão (Éros), com base no livro de Platão, “O banquete”. Há um paradoxo ali, ao tratar o tema. Quando falamos de Éros, falamos do amor desejo, que envolve “falta”. O desejo sempre envolve uma falta. Diz Comte-Sponville: “Ao ler Platão, compreendemos por que é tão fácil se apaixonar e tão difícil, na vida de casal, continuar apaixonado. Esse é outro abismo, menos profundo e mais pesado”. Na verdade, não há amor “totalmente feliz”.

 

Ainda nessa visão do Amor-Eros, a ideia de felicidade no amor envolve “ter o que se deseja”. Uma vez alcançando o desejado, pode ocorrer o tédio. Essa é a mais complicada questão. Se o amor não for permanentemente regado, ele termina. São as “intermitências do coração”, como diz Proust. Na linguagem platônica, enamor-se de alguém é “descobrir que alguém nos falta”. 

 

E continua Comte-Sponville: “”De tanto estarem juntos todas as noites, todas a manhãs, de tanto compartilharem a vida e a cama, essa pessoa, inevitavelmente, vai-lhe fazer cada vez menos falta (...). O problema, de que você toma consciência pouco a pouco, é que, se o desejo é falta, a partir do momento em que essa pessoa lhe faz cada vez menos falta, pois vive com você, você a deseja cada vez menos”. Daí pode ocorrer, se não houver cuidado, ternura e atenção, a passagem da falta para o tédio.

 

Na oitava elegia de Duíno, Rilke sublinha:

 

“Os amantes – não estivesse o outro a ofuscar-lhe a visão – sentem a obscura presença e se espantam... Às vezes há um descerrar-se atrás do outro... Mas o outro, como superá-lo? E o mundo já retorna”. O que ocorre, temos sempre que recordar isso... permanentemente, também os amantes, em sua sede impossível de integração, estão “em face do mundo”, em face de sua impermanência.

 

A vida de casal, já dizia também Rilke, é uma experiência de solidão. Não há como apagar isso, numa intenção equivocada de amor total. Dizia Lia Luft: “há um silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”. Faz parte do amor, respeitar e acolher essa solidão. O casal “não é o fim da solidão”. Não há como jurar que ficaremos apaixonados para sempre. Diz Comte-Sponville: “Não se decide amar nem deixar de amar (não se decreta o amor), mas pode-se  decidir manter seu amor, alimentá-lo, protegê-lo, fazê-lo viver e evoluir. É por isso que a vida de casal também é uma aventura espiritual”. 

 

O nosso poeta Drummond, dizia sabiamente no poema “Quero”:

 

“Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.”

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

 

Há que saber avançar, com delicadeza, cortesia e ternura, do amor Éros ao amor Philia. Ou seja, fazer a experiência da “alegria de amar”. E isso significa também compreender que o amor envolve movimento, transformação, serenidade. Daí a sabedoria de Gilberto Gil na canção “Faca e Queijo”, ao falar do amor maduro. A velha chama da paixão, com seu ardor e voracidade de faca e queijo, passa por mudanças:

 

“A gente ama

E o amor produz transformações

A velha chama

Acende novas ilusões

Com mãos bem mais sutis

Novos desejos

Vão tornando nossos beijos

Mais azuis, menos carmins”.

 

Amar, como diz Comte-Sponville deve ser também regozijar-se, curtir a presença terna do outro, sem tanta finalidade, a não ser a experiência da gratuidade: de poder olhar um para o outro com alegria, curtir sua presença em proximidade e ternura. Isso é o que podemos chamar de “felicidade de amar”. Comte-Sponville fala dessa alegria nova, que não se resume em pedir, mas agradecer: “Obrigado por ser tão linda!”. 

 

E alguns terão ainda, o privilégio mais nobre de atingir o grau maravilhoso do amor agápe, que é amor de entrega sem nenhuma cobrança de reciprocidade. É o amor favorecido aos mais nobres, aos santos, aos místicos. É o famoso quarto amor de que fala Bernardo de Claraval em seu De Diligendo Deo. Trata-se do grau mais perfeito de amar.

 

 

 

 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

A morte do Cerrado


A morte do Cerrado

Faustino Teixeira

IHU - Paz e Bem


Preparando minha aula sobre os contos de Guimarães Rosa, em particular o conto "O recado do morro" (Corpo de Baile), deparei-me com algumas reflexões de José Miguel Wisnik em torno do cerrado, com base numa excelente entrevista que ele leu, de uma das maiores autoridades sobre o tema do Cerrado: Altair Sales Barbosa (publicada no Jornal Opção, de outubro de 2014).

O tema do breve texto de Wisnik tem como título "Recados" (25/10/2014), bem apropriado ao conto que estamos por analisar na aula do dia 09/11/2022. Como indica Wisnik, o Cerrado é o "Matusalém dos biomas. Enquanto a Amazônia tem três mil anos de formada, a Mata Atlântica sete mil, o Cerrado tem quarenta milhões". Trata-se do "maior viveiro da espécie" (ou pelo menos era até pouco tempo).
A flora anciã, como diz Wisnik, vem sendo substituída pelas inovações progressistas da monocultura, e junto, o "império do eucalipto a ser transformado em carvão". A devastação provocada tem consequências inomináveis: uma "devastação invisível de grandes consequências estruturais: é a floresta subterrânea das raízes que desaparece junto com a vegetação nativa, com ela o bioma de milhões de anos e o sistema que alimenta e realimenta os aquíferos".
A respiração hídrica do Cerrado veio profundamente prejudicada e sufocada nos últimos anos. Como diz Altair,
"até meados dos anos 1950 tínhamos o Cerrado praticamente intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a implantação de estrutura viária básica, com a construção de grandes cidades, como Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente o ambiente. A partir de 1970, quando as grandes multinacionais da agroindústria se apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes monoculturas, aí começa o processo de finalização desse bioma".
Os estudos mostram o papel fundamental da vegetação existente no Cerrado, que é "a que mais limpa a atmosfera". A riqueza dos rios, da fauna e da flora. Tudo começa a ser profundamente prejudicado com a entrada no agro-negócio. Com a entrada dos inseticidas, a violentarão e morte dos polinizadores e dos insetos nativos. E a riqueza de plantas vai se extinguindo. São nada mais dos que 12.365 plantas catalogadas no Cerrado, as que conhecemos. O número é bem maior.
Altair dá o impressionante exemplo dos buritis, que para atingir 30 metros de altura necessitam de 500 anos. Também a canela-de-ema para chegar à idade adulta necessita de mil anos. Para manter-se vivo, o Cerrado precisa manter seu solo oligotrófico, e isso vem sendo dizimado.
O exemplo dos rios também é mencionado por Altair. Com a presença do homem-humano, que vem ocupando as margens dos rios, ocorrem fenômenos predatórios muito perigosos de assoreamento e erosão. As nascentes vão, cada vez mais, descendo, a ponto de prejudicar o lençol freático. Em pouco tempo não teremos mais água, e com essa crise estaremos diante de uma bomba-relógio. Segundo Altair, "dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano (...). Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo".
O processo de capitalização do campo tem também consequências sociais muito graves, como a "desestruturação do homem do campo", que vai sendo expulso pelo grande capital para as periferias das cidades, desestruturando comunidades inteiras. Altair fala das consequências da desterritorialização dessa população, que acaba sofrendo transformações mutiladoras, sobretudo no campo mental.
Altair fala também dos problemas relacionados com a transposição do Rio São Francisco. Ele sublinha que a iniciativa foi "um ato muito mais político que científico. Ela atende muito mais a interesses políticos de grandes proprietários do Nordeste na área da Caatinga". Com a obra, ainda em fase de conclusão, é toda a mecânica do São Francisco que vem prejudicada.
Como mostra Altair, "o rio, que corria lento, passa a correr mais rapidamente, porque está tendo sua água sugada. Seus afluentes, então, também passam a seguir mais velozes. Isso acelera o processo de assoreamento e de erosão". Em consequência, "aceleram a morte dos afluentes".
Para o autor, a iniciativa da transposição do rio é simplesmente "estabelecer uma data para a morte do rio, para seu desaparecimento total. Podem até atender interesses econômicos e sociais de maneira efêmera, em curto prazo, mas em dez anos acabou tudo".
Ao final de seu texto, Wisnik sublinha que o processo eleitoral (da ocasião, 2014) "varreu do mapa essa ordem de questões. Quem pretende sustentá-las, como Eduardo Viveiros de Castro, fica condenado ao papel de Nomidômine, o recoveiro lunático do conto de Guimarães Rosa, profeta do fim do mundo e ´ameaçador de tantas prosopopeias`. Marina Silva, que pretendeu introduzi-las no nosso repertório político, foi bombardeada pelos drones confusionistas da propaganda de Dilma e aderiu a Aécio, que não convence no papel de salvador da pátria".