O morrer com dignidade
Faustino Teixeira
IHU / Paz e Bem
Tenho refletido muito sobre a morte nesses tempos difíceis. A pandemia trouxe sofrimento para muitas famílias, que experimentaram a dor em grau extremo, a perda de seus queridos... Penso igualmente na dor daqueles que resistem a manter aceso o brilho no olhar, mas que encontram barreiras pelo caminho. Às vezes são empecilhos de uma doença terminal ou crônica, às vezes de uma idade que não permite mais tantas alegrias. Penso que teríamos que encontrar um caminho possível de alento para as pessoas, que não se resumiria a "tratamentos paliativos".
Quando li o livro de Hans Küng, "Uma batalha ao longo de uma vida" (2014)[1], e já faz tempo, pude refletir com cuidado sobre o tema da morte digna. Quando o teólogo escreveu o livro, ele ainda podia ler ou escutar a música que lhe agradava. Na ocasião já reclamava, porém, das dificuldades que tinha para escrever ou se locomover, com os passos cada vez mais curtos e titubeantes.
Com a coragem que sempre o caracterizou Küng refletiu, com base no livro do Eclesiastes, que “há um tempo de nascer e um tempo de morrer” (Eclo 3,2). Argumentou que “o ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais, quando o sentido da vida se completa e ele deseja a morte”[2].
Estava na ocasião com quase noventa anos, mas tinha plena consciência de que ele deveria ser o sujeito de sua vida, mas também de sua morte. Dizia: "Continuo a pensar que a questão de quando e de como deva morrer é uma questão de minha responsabilidade, a não ser que seja colhido por uma ´morte imprevista`, como um acidente ou um golpe do destino"[3].
Agora, porém, quando diminui a temperatura vital, tudo fica tão diverso... No caso de Kung, que já faleceu, ele estava sofrendo com o mal de Parkinson, artrose, e uma degeneração macular extremamente complicada para o desdobramento de sua vida. Ele morreu, sem precisar usar mão de sua decisão em favor de uma morte assistida... Mas foi seu desejo último.
Küngdizia, com razão, que sua decisão final era como "a última aventura da liberdade". É o tempo kairológico que marca um caminho para a interioridade, em direção “a um novo liame ainda escondido: vita mutatur, non tollitur. A vida não é tirada, mas transformada”[4]. É quando se dá o passo “no infinito da pessoa finita”, na decisiva estrada, não só em direção ao cosmos mas ao “núcleo da realidade”, ocorrendo a bonita acolhida nos braços dos Deus misericordioso.
Ao final do livro, Küng faz uma linda oração onde agradece com alegria a Deus, omnicompreensivo, sentido originário do ser, por ter possibilitado a ele viver com tanta intensidade[5].
Ouvindo nesses dias a maravilhosa música de Michael Jackson, Heal the World, fixei-me numa passagem em que ele diz ser necessário deixar de existir para passar a viver. No caso, sinto com dor que muitas pessoas são "jogadas" nessa condição de um existir onde falta o viver. É um tema que deveria ser objeto de mais estudos de especialistas da questão.
Recentemente refletimos também no Paz e Bem sobre o belo filme de Hal Asbhby, Being There, que ganhou a tradução brasileira de "Muito além do jardim"[6], com o o fantástico ator Peter Sellers. Aproveitei para ler o livro que inspirou o diretor, "O videota", de Jerzy Kosinsky[7]. Um título a meu ver injusto para mostrar toda a complexidade de um personagem que não era só determinado pela visão da televisão, mas igualmente pelo jardim, ao qual se dedicou a vida inteira. Não um "idiota", mas um "menino", vejo muito mais assim.
No livro e no filme, o personagem Chance, vivido por Peter Sellers, aproxima-se existencialmente do rico empresário americano, que era presidente do Conselho da First American Financial Corporation. O empresário viu no jardineiro um exemplo de vida, Alguma coisa presente ali no mundo interior do jardineiro o agradava e animava. O empresário, Rand, já estava muito doente, com uma anemia aplástica e o horizonte vital se fechava para ele. Como diz o autor do livro, era alguém "como uma árvore com as raízes na superfície", e tudo o que restava para ele era aguardar "o quarto lá de cima"[8].
E aí me deparo com uma lamentável entrevista de dois médicos da UFJF em jornal da cidade de Juiz de Fora, questionando o uso medicinal do Canabidiol[9]. Toda a reflexão movida por eles, que trabalham com o tema "espírita" da vida além morte, vinha sustentada pela ideia da ausência de evidências científicas para corroborar a utilização do canabidiol.
Fiquei revoltado, pois vislumbrei na entrevista uma tremenda falta de respeito a outros tantos profissionais de gabarito que estão contribuindo com ajuda inestimável a tantos pacientes deste nosso país que sofrem de inúmeros males e que no medicamento encontram o alívio de que precisam.
São tantas coisas, tantas ideias que me vêm a mente... Penso que é hora de reunirmos esforços para tratar com mais cuidado de um tema tão candente como este.
[1]Hans Küng. Una Bataglia lunga una vita. Idee, passioni, speranze. Il mio raccconto del secolo. Milano: Rizzoli, 2014.
[2]Ibidem, p. 1085.
[3]Ibidem, p. 1110.
[4]Ibidem, p. 1086.
[5]Ibidem, p. 1111.
[6]Muito além do Jardim. Direção de Hal Ashby. Warnes Bros Pictures, 1979. O debate no Canal Paz e Bem e no IHU ocorreu no dia 20 de julho de 2022, com a minha presença e também de Angelo Atalla e Mauro Lope.
[7]Jerzy Kosinsky. O videota. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.
[8]Ibidem, p. 44-45.
[9]Professores questionam potencial terapêutico de derivados da cannabis. Entrevista com Alexander Moreira Almeida e Alexander de Rezende Pinto. Jornal Tribuna de Minas. Juiz de Fora, 23-24 de julho de 2022, p. 4.