domingo, 22 de maio de 2022

Tramas invisíveis de colaboração na teia vital

 Tramas invisíveis de colaboração na teia vital

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

No dia 21 de maio de 2022, tivemos mais um encontro do Grupo de Emaús para debater a conjuntura nacional. Foram muito ricas as provocações levantadas por Pedro Assis Ribeiro de Oliveira (sociólogo) e Manfredo de Oliveira (filósofo). Os debates foram novidadeiros e provocadores. 

 

Na semana anterior ao encontro tinha lido um livro que me marcou profundamente: A trama da vida - como os fungos constroem o mundo, de Merlin Sheldrake (UBU 2021). O autor tinha participado de forma brilhante da última Flip (2022), que aconteceu virtualmente. Assisti sua conferência e me encantei[1].

 

Em tempos passados tinha lido o livro de Humberto Maturana sobre a Ontologia da Realidade, em publicação da UFMG[2], e tinha me despertado para o tema da colaboração em vez da competição. Era o tema da lógica do amor no âmbito da evolução. Ao contrário da ideia comum de que vão adiante os que são mais fortes, passa a vigorar a ideia de que avançam os que melhor colaboram e se articulam. Como diz o autor, “a origem antropológica do Homo sapiensnão se deu através da competição, mas sim da cooperação, e a cooperação só pode se dar como uma atividade espontânea da aceitação mútua, isto é, através do amor”[3]. O tema ficou impresso em minhas reflexões.

 

Lendo agora o livro de Merlin Sheldrake, a questão retoma com um vigor inusitado. O autor trata dos fungos que estão em toda parte, e sublinha que essa questão "fornece a chave para compreender o planeta em que vivemos e a maneira como pensamos, sentimos e nos comportamos"[4]. Ele fala desse mundo que vive "longe dos nossos olhos" e que não conseguimos ainda descrever, no caso de 90% das espécies. O autor lembra que "mais de 90% das plantas dependem de fungos micorrízicos, que conseguem ligar árvores em redes compartilhadas, chamadas de ´internet das árvores`"[5]. Estamos diante de um fenômeno que envolve “quatrilhões de quilômetros de fungos micorrízicos que se enredam no solo”[6].

 

Os fungos têm uma vitalidade impressionante, sobrevivendo nas condições mais adversas, como nos canteiros de Chernobyl. Identificou-se uma espécie que está presente em rejeitos de mineração, super resistente à radiação, que ajuda a "limpar locais com resíduos radioativos"[7]. Mesmo depois da explosão do reator nuclear em Chernobyl, essa espécie poderosa vem ocupando a região.

 

Junto com os fungos, as micorrizas (do grego mykes - fungo e rhiza - raiz). Na sua maioria, eles formam redes conhecidas como hifas, que são "estruturas tubulantes finas que se ramificam, se fundem e se entrelaçam formando a filigrana anárquica do micélio"[8].

 

As estatísticas nos mostram que existem "entre 2,2 milhões e 3,8 milhões de espécies de fungos - de seis a dez vezes o número de espécies de plantas", sendo que somente 6% deles foram descritos até agora[9]. É um mundo invisível impressionante.

 

É uma ilusão acharmos que nós humanos estamos no comando da floresta e seus habitantes. Mais do que nunca se impõe a humildade necessária. A vida dos fungos é mesmo surpreendente para nós, e dribla os nossos preconceitos. Trata-se de uma trama que quebra radicalmente nossas definições antropocêntricas e nossa percepção do que é inteligência. Esses pequenos organismos nos dão continuamente lições e nos ajudam a "repensar o significado de ´resolução de problemas`, ´comunicação`, ´tomada de decisão`, ´aprendizado` e ´memória`"[10].

 

É impressionante ver o que é uma rede micelial. Já tínhamos visto isto também com Deleuze e Guatari, quando falaram de rizomas num dos volumes de Mil Platôs[11]. Como assinalam, os rizomas são constituídos de linhas com direções movediças. São linhas de fuga ou de desterritorialização, não tendo nem começo nem fim, mas sim um meio pelo qual crescem e transbordam[12].  São verdadeiros "labirintos vivos". Vemos coisas incríveis como uma ponta se tornar duas, depois quatro, oito e assim por diante. São verdadeira teias interligadas pelo solo, num "emaranhado de trilhas entrelaçadas"[13]. É nesse entrelaçamento que se firma a “textura do mundo”.

 

As redes de micélios estão em toda parte: "centenas de metros abaixo da superfície do oceano, ao longo dos recifes de coral, atravessando o corpo das plantas e animais vivos e mortos, em lixões, carpetes, piso de madeira, livros antigos em bibliotecas, partículas de poeira doméstica e telas de pintura de antigos mestres penduradas em museus"[14]

 

O micélio tem um dom fugidio, sendo uma "entidade única interconectada". É também extravagante, pois vaga "para fora ou além".  Trata-se de um corpo sem contorno, sem início ou fim. Resistente a qualquer previsão de direcionamento. É pelos micélios que os fungos se nutrem. Os fungos "digerem o mundo em que vivem e o absorvem. Suas hifas são longas e ramificadas, e com uma única célula de espessura - entre dois e vinte micrômetros de diâmetro, mais de cinco vezes mais finas que um fio de cabelo humano médio"[15].

 

O que difere os fungos dos animais é que "os animais colocam comida em seus corpos, enquanto os fungos colocam seus corpos na comida"[16]. Até meados do século XIX as bactérias e fungos eram classificados como plantas. Hoje já se encontram inseridos em classificação própria, conquistando a independência em meados de 1960[17]

 

Num mundo imprevisível, os animais enfrentam as incertezas em seus deslocamentos, na busca dos alimentos. Para "vencer" a vida, os micélios usam de estratégias impressionantes, com crescimento super oportunista. O que vemos no mundo das hifas de determinadas espécies, é um impressionante crescimento: "suas pontas precisam formar material novo à medida que avançam"[18].

 

Os animais, plantas e fungos indicam-nos que a natureza é sobretudo um evento que nunca para. Animais e plantas "são sistemas pelos quais a matéria passa continuamente"[19]

 

No mundo dos micélios o que existe é uma "polifonia corporificada". Cada uma das vozes é livre para vagar e "suas andanças não são separadas das demais. Não há voz principal. Não há melodia principal. Não existe um planejamento central. No entanto, uma forma emerge"[20].

 

Quando olhamos um cogumelo, o que vemos é um esporoma, "que equivale aos frutos de uma planta"[21]. Como os micélios, os cogumelos são feitos de hifas, que são as células dos micélios, sua “filigrana anárquica”.  Elas, as hifas, "são sensíveis a estímulos e, a todo momento são confrontadas com um mundo de possibilidades. Em vez de se esticarem em linha reta a uma taxa constante, elas se dirigem para locais com perspectivas atraentes e se afastam de locais de pouco interesse"[22].

 

Como mostra Sheldrake, "muitos tipos de organismos sem cérebro - plantas, fungos, mixomicetos - respondem a seus ambientes de forma flexível, resolvem problemas e tomam decisões entre caminhos alternativos de ação"[23]. Não estamos, assim, fugindo da noção latina da palavra inteligência, que significa "escolher entre". Não há como desconsiderar um tipo específico de cognição nesta dinâmica. Estamos diante de muitos organismos “capazes de comportamentos sofisticados”[24]. Mesmo não tendo um cérebro ou intelecto específico, as plantas e fungos “vivem enredados e precisam desenvolver maneiras de administrar seus assuntos complexos”[25].

 

Os micélios constituem "um dos primeiros passos conhecidos em direção à vida multicelular complexa, um emaranhado original, uma das primeiras redes vivas. Notavelmente inalterado, o micélio persiste por mais da metade dos 4 bilhões de anos de história de vida, atravessando incontáveis cataclismas e transformações globais catastróficas"[26].

 

Alexander von Humboldt, já em 1845, pôde observar que "cada passo que damos no conhecimento mais profundo da natureza" esbarramos com novos labirintos[27]. Daí entendermos que uma compreensão mais profunda dos micélios ainda está para ocorrer na ciência. 

 

O mundo dos líquens é também para nós um mistério, e fornece uma quadro bonito de compreensão da "colaboração entre reinos". Eles estão "incrustados em até 8% da superfície do planeta, uma área maior do que a coberta pelas florestas tropicais"[28]. Eles estão por todo lado revestindo rochas, árvores, telhados, cercas, penhascos e a superfície dos desertos. Formam mundos maravilhosos, "ilhas de vida num mar de rocha"[29]. Eles são os intermediários "que habitam a fronteira entre a vida e a não vida". Mostram-se também vigorosos para sobreviver no espaço. Ninguém sabe quando eles surgiram. Os fósseis mais antigos remontam a 400 milhões de anos[30].

 

Temos a palavra holobionte para descrever o "conjunto de organismos diferentes que se comportam como uma unidade". O termo deriva do grego holos, que diz respeito ao todo. Eles são "os líquens deste mundo"[31]. Não se trata de um conceito utópico, mas de algo que indica a presença de uma colaboração inaudita. Colaboração que reúne simultaneamente competição e cooperação.

 

Como indica Sheldrake em seu precioso livro, as algas foram as ancestrais de todas as plantas terrestres, tendo saído das águas rasas há 600 milhões de anos. As plantas, hoje, "representam 80% da massa de toda a vida na Terra e são a base das cadeias alimentares que sustentam quase todos os organismos terrestres"[32].

 

As algas chegaram à terra e estabeleceram relações com os fungos, e tudo isso evoluiu para as "relações micorrízicas". Temos hoje "mais de 90% das espécies vegetais" dependendo "de fungos micorrízicos". As algas e fungos se associam e cooperam entre si[33].

 

Alexander von Humboldt foi um dos primeiros a falar dessa "rede emaranhada"[34]. Vivemos num mundo de inter-conexões. É o que ocorre abaixo de nós, nas conexões presentes no subsolo. Existe ali uma rede maravilhosa, uma "cidade cosmopolita"[35]. Os organismos ali embaixo se comunicam e relacionam, compondo o "todo vivo" do mundo natural.

 

Curiosamente percebemos como James Cameron, com seu fabuloso filme Avatar, conseguiu de forma lúdica mostrar essa "rede viva e brilhante que ligava as plantas ao subsolo". E agora, aguardamos com ansiedade a continuidade do filme, já em andamento.

 

Em seu livro, Sheldrake revelou um estudo, publicado em 2016, que indica que "280 quilos de carbono por hectare de floresta poderiam ser transferidos entre árvores por meio de conexões fúngicas"[36]. Daí a essencial importância das redes micorrízicas para a vida ecológica.

 

Há que estar atentos ao mundo dos fungos, junto com a atenção ao mundo dos animais e vegetais: "prestar mais atenção às plantas que aos fungos nos torna cegos aos fungos"[37]. Devemos estar atentos para não nos restringirmos ao fitocentrismo, embora isso seja mais óbvio, em razão da relevância das plantas para a nossa vida. Há, porém, algo mais, escondido de nossa ocular, que é também imprescindível: os fugidios fungos micorrízicos. Eles não são "cabos passivos", mas tecem teias vitais emaranhadas. Eles "formam e reformam suas conexões com as plantas, emaranhando-se, desembaraçando-se e voltando a se emaranhar"[38]. Eles “driblam nossas preconcepções. Sua vida e seu comportamento são surpreendentes”[39].

 

Em parte singular do livro, onde o autor aborda a micologia radical, percebemos esse potencial de sobrevivência e artimanha dos fungos. Eles são "sobreviventes veteranos das perturbações ecológicas. Sua capacidade de perseverar - e muitas vezes prosperar - em períodos de mudanças catastróficas é uma de suas características definidoras. Eles são criativos, flexíveis e colaborativos"[40]. Estão sempre em dinâmica de transformação, sustentando a rede vital. Estão dentro de nós e ao nosso redor, “decompondo rocha, fazendo solo, desestabilizando poluentes, nutrindo e matando plantas, sobrevivendo no espaço, induzindo visões, produzindo alimentos, fazendo remédios, manipulando o comportamento animal e influenciando a composição da atmosfera”[41].

 

Assim como Eduardo Viveiros de Castro apontou-nos o caminho da sabedoria dos povos originários para que saibamos lidar com os tempos difíceis que vivemos, podemos igualmente aprender com essa capacidade incrível desse mundo invisível para apontar caminhos de sobrevivência e colaboração.

 

Apesar da "bagunça dos humanos", de sua violenta "pegada" sobre a terra, há o que aprender com os fungos que sobrevivem. Eles são vencedores com suas artimanhas: "persistiram depois dos cinco principais eventos de extinção da Terra, que eliminaram entre 75% e 95% das espécies do planeta a cada vez. Alguns fungos até prosperaram durantes esses episódios calamitosos"[42]. Sheldrake nos lembra que depois do que ocorreu em Hiroshima, "a primeira coisa viva a emergir da devastação foi um cogumelo matsutake"[43].

 

Esse precioso livro aqui descrito traz para nós, nesses tempos difíceis, que alguns identificam como tempos derradeiros, um caminho novo e surpreendente: somos capazes de "dançar sobre escombros", de vislumbrar brechas de vida no horizonte, se soubermos aprender com os saberes dos povos originários e com essas teias invisíveis, o caminho da artimanha e da colaboração. A natureza mostra-nos com grande beleza a possibilidade de um caminho alternativo: da solidariedade e da cooperação.

 

Há que levar hoje mais a sério esse aprendizado com o mundo natural e sua capacidade de resistência. Ou seja, "levar mais a sério a questão da coexistência no mundo em geral"[44]. Bruno Latour fala também em diplomacia, outra palavra essencial para o nosso presente sombrio.

 

Como diz Sheldrake, "hoje, o estudo das redes micorrízicas compartilhadas é um dos campos mais afetados por inclinações políticas. Alguns retratam esses sistemas como uma forma de socialismo pela qual a riqueza da floresta pode ser redistribuída"[45].

 

A antropóloga Donna Haraway fala em saber seguir com o problema e ser capaz de gerar novos parentescos entre as espécies companheiras, para além do excepcionalismo humano[46]. Vivemos tempos marcados pela precariedade generalizada, pelo abuso do poder, pela destruição do campo vital. Tudo visando o lucro e a supremacia do homem-humano. Há que buscar ou captar as ressurgências em curso, como fala Anna Tsing[47]. Vislumbrar as "erupções de vitalidade inesperada" que emergem pelas margens da vida. Caminhos inesperados para saber viver entre as ruínas. 

 

Acho bem interessante a pista aberta por Donna Haraway quando se define como uma "compostista" em vez de "pós-humanista"[48]. Ela insiste na sua tese, singular, da importância hoje de sabermos gerar parentes e não apenas filhos. O mundo dos vermes, como mostra Sheldrake, tem o que nos ensinar nesse campo da lida com a decomposiçã[49]. A criatividade passa também por esse aprendizado: saber "mexer, misturar e dissolver uma coisa na outra". Isso fazem os fungos: eles fazem de tudo e também desfazem. E o mundo vai sobrevivendo assim...

 



[1]O autor participou na mesa 7 da FLIP 2022, no dia 30/11/2022, debatendo o tema: Micélios: 

https://flip.org.br/2021/evento_principal/mesa-7-ze-kleber-micelios/(acesso em 22/05/2022).

[2]Humberto Maturana. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.

[3]Ibidem, p. 185.

[4]Merlin Sheldrake. A trama da vida. Como os fungos constroem o mundo. São Paulo: UBU, 2021, p. 11.

[5]Ibidem, p. 12.

[6]Ibidem, p. 156.

[7]Ibidem, p. 13.

[8]Ibidem, p. 14.

[9]Ibidem, p. 18-19.

[10]Ibidem, p. 25.

[11]Gilles Deleuze & Félix Guatari. Mil platôs. v. 1. São Paulo: Editora 34, 1995. 

[12]Ibidem, p. 43.

[13]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 120; Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 192.

[14]Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 56.

[15]Ibidem, p. 61.

[16]Ibidem, p. 61.

[17]Ibidem, p. 232.

[18]Ibidem, p. 63.

[19]Ibidem, p. 64.

[20]Ibidem, p. 65.

[21]Ibidem, p. 66.

[22]Ibidem, p. 68.

[23]Ibidem, p. 78.

[24]Ibidem, p. 25.

[25]Ibidem, p. 153.

[26]Ibidem, p. 80.

[27]Ibidem, p. 81.

[28]Ibidem, p. 86.

[29]Ibidem, p. 86-87.

[30]Ibidem, p. 99.

[31]Ibidem, p. 105-106. Ver também: Donna Haraway. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Edición Consonni, 2020, p. 101.

[32]Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 140.

[33]Ibidem, p. 141.

[34]Ibidem, p. 168.

[35]Anna Tsing. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019, p. 43-44.

[36]Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 174.

[37]Ibidem, p. 180.

[38]Ibidem, p. 192 e 180.

[39]p. 23.

[40]Anna Tsing. Viver nas ruínas, p. 226.

[41]Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 11.

[42]Ibidem, p. 202-203.

[43]Ibidem, p. 203.

[44]Ibidem, p. 236.

[45]Ibidem, p. 236.

[46]Donna Haraway. Seguir con el problema, p. 24.

[48]Ibidem, p. 157.

[49]Merlin Sheldrake. A trama da vida, p. 250.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

A primeira iniciação de Riobaldo

A primeira iniciação de Riobaldo no de-Janeiro - Grande Sertão: Veredas


Faustino Teixeira


Na quarta aula de Wisnik sobre o GSV, abordou-se o tema do encontro de Riobaldo com Reinaldo, depois de um longo tempo quando os dois se encontraram no de-Janeiro.. É uma das cenas muito bonitas do livro de Rosa. E estava na aula, como de costume, Odilon Esteves, que narrou lindamene os trechos fundamentais indicados por Wisnik.

Como mostra com pertinência Francis Utéza, no livro "Metafísica do Grande Sertão", o primeiro encontro de Riobaldo com o Menino foi uma espécie de iniciação. Riobaldo entra no barco de peroba como um "pinto em ovo", sendo a descida para as águas do de-Janeiro como um "regresso ao útero, dissolução na lama original, e ao mesmo tempo prelúdio ao renascer" (Utéza). É quando então começa a ocorrer "o trabalho de parto, com o feto iniciando a caminhada para fora da escuridão matricial".
A aventura no de-Janeiro e no São Francisco era mesmo uma travessia perigosa, com o perigo rondante das ariranhas. A mão do menino foi fundamental para imprimir coragem naquele Riobaldo então medroso. Riobaldo passa então, no rio, por uma transformação, por uma iniciação. O neófito foi assim "purificado pela travessia do São Francisco". 

Foi na verdade, segundo Utéza, uma "excursão ao centro". Sob a proteção de Jesus e São Francisco, devoções fundamentais da cultura católica regional, Riobaldo adquire a coragem, que no seu sentido esotério, constitui a "energia central propagadora do sopro vital no microcosmo" (Utéza).
Foi também o menino que abriu as portas bonitas da beleza e das cores do cerrado para Riobaldo: "Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado" (GSV, 140). Até aquela ocasião, Riobaldo não estava atento a tudo aquilo que o rodeava. Os pássaros, até então, só despertavam nele o instinto de caçador: "Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar".
Com o olhar de Diadorim, Riobaldo passou a ver a natureza de outra forma. Foi outra importante iniciação, na qual aparece de forma linda o pássaro Manuelzinho da Crôa, aquele pássaro lindo que sempre anda parelho. Aquela imagem do pássaro para Riobaldo imprimiam definitivamente nele um símbolo "de um tempo de felicidade fundado em uma experiência espiritual transcendente" (Utéza).
Por fim, entra também em cena o cumpadre Quelemém que, muitos anos depois, ensinou a Riobaldo que todo desejo pode ser alcançado, desde que precedido por um fundamental despojamento.
Foi ele que mostrou a Riobaldo que "todo desejo a gente realizar alcança - se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nôjo, gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade de prazer" (GSV, 115). E, támbem, "dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma".
Um pouco depois, na narração do livro, ocorre o momento singelo da revelação do verdadeiro nome de Reinado para Riobaldo. Foi quando Reinaldo aproximou-se de Riobaldo e disse: "Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por que. Tenho meus fados" (GSV, 116)
E continua Reinaldo: "Pois então: o meu nome verdadeiro, é Diadorim ... Guarda esse meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar" (GSV, 117).
E em seguida, Diadorim deu sua mão a Reinaldo: "E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara (...). Aquele dia fora meu, me pertencia" (GSV, 117).

segunda-feira, 2 de maio de 2022

A canção de Siruiz - Grande Sertão: Veredas

 A canção de Siruiz, Grande Sertão: Veredas

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Que coisa bonita, ouvir e ver neste final de domingo, início de maio de 2022, mais um trecho da terceira aula de José Miguel Wisnik no Ateliê Paulista. Vou seguindo o curso com atraso, pois estou concentrado na redação de um artigo sobre o livro de Clarice Lispector: Perto do Coração Selvagem. Deparo-me, com alegria, no trecho do livro em que Riobaldo, na fazenda de seu padrinho Selorico Mendes, presencia a chegada do grande jagunço Joca Ramiro[1]. Ele vinha com seu bando, e junto com ele o Hermógenes e Ricardão. 

 

Vinham de longe, “navegando na sela a noite inteira”. Estavam cansados. Riobaldo pôde perceber aquela presença dos seis jagunços que chegavam, “todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas”. Ele admirou “tantas armas”.  Só de ouvir a voz de Joca Ramiro, ele parou “na maior suspensão”. Percebeu que ele era “um homem bonito, caprichado em tudo”. Viu também que ele “era homem gentil”. 

 

Foi um “grande fato”, numa noite bonita, onde se “escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinhos de estrela, o deduzir dos grilos”. Riobaldo comenta com o interlocutor da cidade aquele fato grandioso, que não lhe escapa mais da memória. Pede desculpa a ele por “estar retrasando em tantas minudências”. 

 

Mas o certo é que aquilo ficou estancado em seu ser. No meio de tantas graças da cavalaria, Riobaldo ouviu então uma canção bonita, uma “toada estranha”, cantada por Siruiz:

 

Urubu é vila alta,

mais idosa do sertão:

padroeira, minha vida –

vim de lá, volto mais não...

               Vim de lá, volto mais não?...

 

Corro os dias nesses verdes

meu boi maço baetão:

burití – água azulada

carnalba – sal do chão...

 

Remanso de rio largo,

viola da solidão:

quando vou p´ra dar batalha,

convido meu coração...

 

Riobaldo lembra de sua mãe ao ouvir a canção, e sinaliza em outro momento do livro que gostaria de ouvir a canção em sua voz.  De forma singela,  Antonio Cândido aplicou às palavras da canção a melodia que ele ouviu de sua mãe, uma melodia anônima, dessas imemoriais, que passam entre as pessoas como recados. Há uma gravação de Antonio Candido cantando essa melodia, que agora vem regravada de forma expressiva e bela por José Miguel Wisnik com sua filha Mariana. Coisa mais linda, não há. 

 

Em sua aula, Wisnik aproveita a ocasião para pontuar o “estatuto psicanalítico” exercido pela voz da mãe. É uma voz primordial, aquela primeira voz que a criança tem contato depois que “sofre” o embate da passagem para a nova forma de vida. A voz da mãe, diz Wisnik, não tem propriamente significado, mas sentido. Tudo o que ela canta é para a criança embalo e acolhida, afeto e ternura, aconchego. 

 

A voz da mãe é na verdade música. Wisnik reforça essa ideia e sublinha que há mesmo quem diga “que toda música que a gente canta a vida inteira não é senão a ressonância da voz da mãe”. Há um trecho de GSV onde se diz que certas coisas faltam nome. Só a canção é capaz de dizer aquilo que falta nome.

 

Percebe-se uma relação entre a canção de Siruiz e a “memória involuntária” que cobre a narrativa de Riobaldo na passagem citada. A canção traz à tona essa memória, numa “lembrança que inclui tudo”. Temos, de um lado os fatos, maravilhosamente narrados por Rosa. Somos levados ao contexto onde se desenrola a canção, e sentimos até o “cheiro” dos cavalos, daqueles “cavalos teúdos”. É como se estivéssemos ali, sentindo de perto o animal que “lambe o freio e mastiga”, que “bate com o pé”; do toque das orelhas, do “couro que raspa em couro”. Tudo emerge na memória como um emaranhado de sentimentos e lembranças. E temos, de outro lado, o significado que tais fatos provocam ao longo da travessia de Riobaldo, acrescentando tantos outros dados, sobretudo afetivos, que servem para compor aquilo que ali ocorreu, mas que ganha um lugar afetivo poderoso na memória.

 

Riobaldo volta-se para o interlocutor tentando passar o clima que viveu naquela noite-madrugada. Ele diz: “Até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade”. É nesse contexto que se dá a canção de Siruiz, como “uma canção enigmática”. Que fica guardada no mais profundo da memória de Riobaldo, como lembra Wisnik: “É como se tudo estivesse contido ali, encapsulado afetivamente naquelas palavras, naquele canto, naquela melodia”. Tudo como um “recipiente da memória afetiva”. 

 

Todos os motivos do livro estão contidos ali, de forma enigmaticamente cifrada. Riobaldo diz que que guarda essa canção no giro de sua memória, e junto com ela, a lembrança daquela especial madrugada “dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d´alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz”,



[1]Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. 22 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Os trechos citados encontram-se nas páginas: 88-93.