Fraternidade e Educação
Faustino Teixeira
IHU / Paz e Bem
Quero em primeiro lugar agradecer ao fraterno convite para falar aos profissionais que atuam no colégio da Companhia de Maria (Grajaú, Rio de Janeiro). Fiquei muito contente e com um interesse particular pela feliz escolha do tema.
Inicio como uma citação de Edgar Morin, publicada em recente entrevista no IHU-Notícias – 10/03/2022:
"O que me preocupa é a deterioração não só da nossa vida cotidiana, mas também da solidariedade. Assistimos a uma progressão na mecanização da vida – eu diria mesmo que à industrialização das nossas vidas pessoais.
Vivemos constrangimentos cada vez mais burocráticos, comemos alimentos insalubres e industrializados. Mas há muitas coisas que podem ser ressuscitadas, porque há uma aspiração humana pela convivialidade e acredito que essa aspiração renascerá constantemente".
O tema solicitado está intimamente ligado ao do tema da atual Campanha da Fraternidade da CNBB, que aborda o tema pela terceira vez, já que a questão foi também desenvolvida nas Campanhas de 1982 e1998. O impulso desta vez veio certamente da inspiração do papa Francisco, que se dedica particularmente a esta questão em seu pontificado.
O papa Francisco completou 85 anos em 17 de dezembro de 2021, vem se encaminhando para o nono ano de pontificado em março de 2022.
Partimos do pressuposto de que “educar é um ato eminentemente humano”
Como podemos ler no texto da atual campanha, temos que nos conscientizar sobre os motivos educacionais de nossas escolhas, com o desafio de “alargar o horizonte de nossa compreensão a respeito da educação entendida não apenas como ato escolar, como transmissão de conteúdos ou preparação técnica para o mundo do trabalho”. Somo agora também advertidos a nos perguntar “pelos motivos, pela abrangência e pelas metas de qualquer processo educativo”.
Nessa minha reflexão com vocês vou estar particularmente atento ao tema da escuta: o papel da educação na formação humana e a dimensão educativa da fraternidade e da amizade, mas num sentido bem preciso, como apontado por Francisco na sua belíssima encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si (2015):
O desafio de uma “fraternidade universal” (LS 228) e de uma “cultura do cuidado” (LS 231).[1]
Sobretudo o desafio de uma ESCUTA do grito dos pobres e do grito da terra (LS 49)
Sair de si e ir em direção aos outros: esse é o núcleo não só da dinâmica cristã, mas da autêntica humanidade[2].
Venho também recorrer a outra encíclica importante, a Fratelli Tutti(FT), sobre a fraternidade e a amizade social (2020)[3].
A encíclica recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos e todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo
Estamos diante de uma bela encíclica, marcada pela tonalidade do evangelho. Há nela a conjugação da coragem destemida, do cuidado com a casa comum e com os mais sofridos, bem como uma ternura que vem sendo um traço singular no pontificado de Francisco. Utilizando aqui uma expressão de Leonardo Boff, é uma encíclica que une vigor e ternura. É uma encíclica, que na mesma rota da Laudato si' (LS), convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor.
A encíclica denuncia a perda dos sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho da construção partilhada de um mundo de justiça e paz se esvanece, e ficamos à deriva de um perigoso narcisismo individual e de grupos. A indiferença avança a passos largos, uma indiferença “acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos num mesmo barco” (FT 30).
Um olhar atento ao evangelho nos possibilita ver que há uma cristalina opção pelos mais pobres. Junto com eles, o carinho que se derrama sobre os excluídos, os mais velhos e todos que se encontram abandonados num mundo carente de solidariedade. É o que lembra Francisco. Trata-se de “cuidar da fragilidade” (FT 188), ou seja, “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade” (FT 188).
O pontificado de Francisco será lembrado como aquele que defendeu com as garras do coração uma outra globalização, fraterna e solidária, contra todo o ritmo nefasto deste tempo do Antropoceno, ou como vem lembrando L. Boff, do necroceno, em razão da ação predatória do humano sobre a Terra[4]. Ela agora “geme e se rebela” (FT 34).
Como arauto do evangelho, Francisco convoca a todos a uma ira santa: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isto fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Não há por que se calar nesse tempo de passividade e indiferença, é o que revela Francisco com a medula do evangelho.
Sua dor vem acentuada com a indiferença como o mundo globalizado vem, em geral, tratando os tocados pela epidemia do coronavírus, sobretudo os velhos, rechaçados como força de produção falida. Idosos são abandonados e isolados, “sem acompanhamento familiar adequado e amoroso”. Tudo isso provoca a mutilação e empobrecimento da própria noção de família (FT 19).
Francisco adverte na encíclica sobre o empobrecimento da humanidade. Lembra que “seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor” (FT 31). É o sentimento de “pertença à humanidade” que se fragiliza numa sociedade do “mínimo eu”, do narcisismo desenfreado, da defesa do particular com todo o aparato de muros intransponíveis. Francisco denuncia as “novas barreiras de autodefesa”, para que vibre solitariamente o mundo privado do eu, mas de um eu sem mundo.
E as vozes que ousam contestar essa lógica perversa são caladas ou ridicularizadas, como percebemos na oposição à resistência dos povos originários (FT 17). Nos esquecemos que são essas vozes que podem nos salvar. Aliás, ninguém se salva sozinho, mas a salvação envolve o sentimento de comunidade, que vem se ofuscando a cada dia (FT 32).
O papa se coloca ao lado daqueles que promovem os essenciais “gestos barreiras”, para utilizar uma expressão de Bruno Latour[5]. São aqueles que se opõem à dinâmica em curso, e que anseiam pela “interrupção” dessa globalização. Assim como o vírus conseguiu parar por um tempo o mundo, há esperança de que os “pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo” (LATOUR, 2020, p. 131).
A defesa da paz e do diálogo
Além da defesa de uma ira sagrada contra os donos do mundo, a encíclica defende com vigor o caminho da paz e do diálogo. A busca da paz é outro dos traços novidadeiros do pontificado de Francisco. Ele sublinha que em inúmeras partes do mundo urgem iniciativas que promovam “percursos de paz”, que possam “cicatrizar as feridas”, de “artesãos da paz prontos a gerar, com inventividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). Providencial é a citação do livro dos provérbios (12.20): “No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria” (FT 256).
Aqueles que são aquecidos pelo evangelho vivem o dom da alegria, é o que nos lembra todo tempo Francisco em sua travessia de amor pela vida. Sinaliza que o evangelho “convida insistentemente à alegria” (EG 5)[6]. Daí sua sensibilidade à capacidade de doação e misericórdia, que são dons absolutamente gratuitos. Os artesãos da misericórdia também estão por aí, ao nosso redor, com seus semblantes acolhedores e anônimos. Lembra-nos Francisco,
“de vez em quando verifica-se o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224).
Sim, estamos diante da globalização da indiferença, é o que nos lembra Francisco a todo momento. Curioso, num tempo pontuado por tantas conexões, de velocidade louca, prevalece a surdez e a desumanidade. Diz Francisco, em pensamento lapidar e certeiro: “Hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade” (FT 33).
A centralidade do exercício do agape
O papa reage com vigor contra qualquer proselitismo. Indica que “o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o bem”[7]. O caminho que leva à salvação não depende de um vínculo religioso específico, mas de um exercício efetivo de caridade. É o modo efetivo de amar a Deus. O agape é “o único modo que Jesus nos apontou para encontrar o caminho da salvação e das Bem-aventuranças[8]. Para o escândalo de alguns, Francisco sinaliza que “não há um Deus católico”[9], mas um Deus que é movimento e criação contínua, e que se deixa surpreender em cada passo.
Com base em passagens de discursos no filme dirigido por Win Wenders sobre o seu pontificado[10], Francisco sinaliza:
“Entre as religiões é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque 'Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor'” (FT 282).
Francisco lança assim um convite ao “amor universal”, que deve animar o caminho da igreja. Isso sem perder o referencial singular da pertença. O diálogo não se opõe ao amor à própria religião. Se outros bebem de “outras fontes”, também reconhecidas como expressão de beleza, os cristãos são brindados com um “manancial de dignidade humana e fraternidade” fundados no evangelho de Jesus Cristo (FT 277). Aqui o papa tenha talvez “escorregado numa visão mais tradicional” ao falar que o que existe de positivo nas outras religiões são “raios de verdade”, que encontram o seu remate na “música do evangelho”. É a visão predominante depois de Vaticano II, e que impregna os documentos mais tradicionais da igreja católica, como a declaração Dominus Iesus. É um passo de superação que ainda precisa ser dado com certa urgência para uma mais rica integração do pensamento eclesial com o ritmo do pluralismo religioso.
Como mostra Francisco, todos são cobertos com o manto da dignidade do Mistério sempre maior. O diálogo requer uma pedagogia singular, que envolve um aprendizado de abertura do coração e ampliação do olhar (FT 254). A igreja vem convocada a tal gesto de desprendimento e escuta, do Mistério que está por aí. Quando perguntam a Francisco o caminho de solução para o entendimento e a paz entre os povos e as religiões sua resposta é sempre certeira: diálogo, diálogo, diálogo, é como expressou em sua visita ao Brasil, no encontro com a classe dirigente, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro[11].
Um olhar crítico sobre o Antropoceno
A Laudato Si' ocupou-se do cuidado da casa comum. É uma encíclica que faz um diagnóstico severo sobre a realidade da terra no tempo do Antropoceno, com todas as consequências nefastas de uma atitude predatória do humano com relação ao seu mundo.
À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.
Sublinha o risco de catástrofes imprevisíveis caso o ritmo da aceleração produtivista continue no mesmo frenesi. Propõe uma “conversão ecológica” (LS 217) e uma espiritualidade do cuidado, na linha de Francisco de Assis. Sua Crítica ao Antropocentrismo é potente, ainda que não leve sua reflexão às últimas consequências, na medida em que mantém plausível um antropocentrismo cristão, justificando o lugar peculiar do humano “acima” das criaturas, como “administrador responsável” (LS 116). Sua crítica volta-se, mais a um “antropocentrismo desordenado” ( LS 119) ou “despótico” (LS 68). Esse é um limite, a meu ver[12].
Na encíclica Fratelli Tutti, o objeto de atenção é a fraternidade e a amizadesocial. Enquanto o foco da primeira encíclica, Laudato si, centrava-se mais no campo da relação de cuidado com o ambiente. Na nova encíclica o foco é mais social e político, abordando as exigências de uma fraternidade nova, distinta da “globalização da indiferença” que está em curso.
São encíclicas que se complementam. A mensagem de vídeo endereçada à ONU, em setembro de 2020, vai na mesma linha de seu pensamento, recorrente nos seus textos.[13]Retoma a ideia de uma “solidariedade baseada na justiça”, em linha de tensão com o ritmo frenético de “atitudes de autossuficiência” que desenham a plataforma de muitos governos no mundo atual. Ali aparecem sua preocupação com o mundo afetado pelo coronavírus[14]; os efeitos tremendos que estão ocorrendo no mundo do trabalho, numa incerteza vinculada ao processo contínuo de robotização; a cultura do descarte e a violação visível dos “direitos fundamentais”.
Retoma também sua preocupação social com os últimos, os desprezados do mundo, os excluídos, os migrantes e os deslocados da “música” da globalização.
Aproveita igualmente a nobre ocasião para questionar o “nominalismo declamatório” da ONU, com sua escassa capacidade de cumprir suas promessas. Denuncia várias situações de devastação e flagelos, como os que vêm ocorrendo na Amazônia, acarretando graves prejuízos aos povos originários. E conclama os governos a uma responsabilidade única:
“Não devemos impor às gerações futuras o fardo de assumir os problemas provocados pelas gerações precedentes”. Foi um discurso incisivo, destinado a provocar um “repensar o futuro” da casa comum. À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.
Dentre as mudanças mais significativas vividas por Francisco em seu pontificado estão aquelas relacionadas com a nova consciência da Terra, de nossa responsabilidade planetária num tempo de crise ameaçadora. A nova consciência ecológica assumida por Francisco talvez seja o marco decisivo de seu pontificado. Com o advento da pandemia da Covid-19 a Terra mostrou o seu lado de intrusão, de reação violenta contra os descaminhos do homem-humano nesse tempo do Antropoceno.
A pandemia serviu para acordar nas consciências a situação precária e ameaçadora de nosso tempo. Em sua encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social (2020), Francisco sublinha que todos “perdemos o gosto e o sabor da realidade”.
Ela nos trouxe tribulação, incerteza e a consciência dos limites, indicando a fundamental necessidade de mudança de perspectiva e rumo, tanto em nossas relações, estilos de vida e modo de organização da sociedade. O humano se vê nuamente diante da “realidade que geme e se rebela” (FT 34).
Em outra encíclica inaugural, a Laudato si, sobre o cuidado da casa comum (2015), Francisco alçava sua voz contra a deteriorização do meio ambiente, que afeta sobretudo aos “mais frágeis do planeta”, aqueles muitos portadores de pouco mundo.
É quando Francisco se vê desafiado a denunciar ao mundo inteiro o grande clamor da Terra e dos pobres, sempre conjugados. De forma corajosa fala sobre as “previsões catastróficas” que se anunciam para a humanidade caso não haja uma imediata reação e desaceleração da ânsia de dominação e desenvolvimento.
Sublinha que tais previsões não são ilusão, mas ameaças bem presentes, arriscando o caminho vital das próximas gerações. Assinala que “o ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes” (LS 161).
O alvo de Francisco relaciona-se aos desmandos presentes nesse tempo do Antropoceno, quando o nível de intervenção humano sobre a realidade alcança um grau extremamente perigoso e ameaçador, num tempo em que a soberba e a onipresença da atividade predatória humana alcançam níveis fronteiriços.
Estamos à margem de um verdadeiro caos advindo da “perturbação” humana. É o tempo da “terra perseguida pelo homem”, como sinalizou a antropóloga Anna Tsing[15].
O que assistimos é o ritmo ameaçador das mudanças climáticas, da extinção em massa das espécies, da acidificação do oceano, da poluição e contaminação da água doce, das intervenções violentas sobre o ecossistema e a acelerada industrialização. Junto a isso, o êxodo de enormes contingentes de pobres e excluídos, expulsos de seus países pela fome, pela falta de emprego e pela deteriorização do meio vital.
O grito de Francisco vai de encontro à indiferença mundial diante desses riscos iminentes. Propõe um despertar essencial, voltado para a retomada de uma unidade perdida, e de um novo e vigoroso repensar sobre o “sentido da nossa existência”. Sublinha que “alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões e perdemos o gosto de fraternidade” (FT 33).
A Laudato sié talvez o grande marco do pontificado de Francisco. Trata-se da encíclica que mais avançou na questão central de nosso tempo, relacionada com o destino da Terra. Nela encontramos a nova convocação de uma irmandade planetária, forjada na firme convicção de uma pertença comum, de uma “pertença como irmãos”.
Talvez a palavra mais reverberante da encíclica seja a inter-conexão, a consciência de que “tudo está interligado” (LS 16, 42, 117; FT 34). Os humanos necessitam despertar para essa consciência ubuntu, como dizem os africanos, a consciência de que não estamos isolados e de que necessitamos uns dos outros. Mas não só dos outros humanos, mas de todos os seres vivos que habitam o planeta. Não pode haver “salvação” solitária. Todos estão imbricados e envolvidos no tecido da vida.
Na linha de reflexão de Tim Ingold, singular antropólogo inglês, o ser humano é envolvido por um “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente”[16]. A vida do ser humano não se encerra em si mesma, mas avança e transborda para ruas e jardins, campos e florestas, favorecendo uma reverberação que é única.[17]O ser humano, ao se irradiar no mundo é o mundo mesmo que cresce nele.
Os humanos não passam de um “tecido de nós” situado num “emaranhado de linhas entrelaçadas”[18]. O entrelaçamento é, com certeza, a “textura do mundo”. E tudo encontra-se vivo e em movimento, pois onde há vida há movimento. Isso percebeu claramente Francisco na Laudato si, essa rede de interligação, que indica que todos precisamos uns dos outros.
E assinala que isso deve ser “reconhecido com carinho e admiração”. São diversos momentos, tanto na Laudato sicomo na Fratelli tuttionde essa questão vem sublinhada com vigor. Como diz Francisco, “tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs em uma peregrinação maravilhosa” (LS 92) .
Francisco não poupa críticas à pretensão antropocêntrica do humano, de um antropocentrismo que reconhece como despótico, desordenado e excessivo (LS 68 e 119). O papa admite que toda criação deve ser acolhida com respeito e carinho e que todo esse tecido vital não pode ser excluído como supérfluo. Todos são portadores de “direitos característicos”.
Francisco nos convoca a todos, como fazem tantos místicos, a encontrar o Mistério em todas as coisas, pois “há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233). Tudo que nos rodeia é “carícia de Deus” (LS 84).
A relação do humano com tudo isso deve ser permeada de ternura, cuidado e acolhida, e tudo pode ser realizado na simplicidade de gestos cotidianos, rompendo com a “lógica da violência” que vem marcando o ritmo dos humanos em nosso tempo empobrecido. Ele fala em “cultura do cuidado” e “espiritualidade ecológica”, dois desafios essenciais (LS 216 e 231).
De modo a realizar uma maior sintonia de sua reflexão com as significativas mudanças que vêm ocorrendo no campo da reflexão atual, tanto no campo da filosofia, antropologia, literatura e biologia, Francisco pode ainda avançar mais, tirando consequências nobres de sua reflexão elaborada na Laudato si.
Uma real “conversão ecológica”, como ele propõe, implica num desdobrar mais radicalmente a sua reflexão, já arrojada. Significa sobretudo romper com laços ainda vigentes com certo antropocentrismo cristão, que ainda se mantém aceso nas suas elaborações teóricas. Há que avançar além, e alcançar o gesto poético nobre de João da Cruz, também lembrado por Francisco na Laudato si, e poder cantar: “Meu Amado, as montanhas”.
Isso significa entender um passo evidenciado pelo grande mestre Dôgen da tradição Soto Zen, que evidencia o ritmo vital e o movimento das montanhas, vales e rios[19]. Tudo que vive está em movimento e é animado por espírito. Isto vale para os humanos, para os animais, os vegetais e os minerais. E tudo vibrando numa ressonância singular.
Vivos estão o sol, as árvores, os ventos. Como mostram com evidências os pensadores do vegetal, tudo que está sob a terra é objeto de “transações cosmopolitas” que desconhecemos profundamente quando destruímos as florestas e devastamos os campos. Nessa cidade subterrânea há uma “arquitetura de teias e filamentos”. Como aponta com pertinência Anna Tsing em seu livro Viver nas ruínas,
“os fungos criam essas teias à medida que interagem com as raízes das árvores, formando estruturas conjuntas de fungos e raízes chamadas “micorrizas”. As teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas, através de filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em emaranhados. Essa cidade é uma cena animada de ação e interação”[20].
Francisco dá um passo importante logo no início da Laudato si, ao reconhecer que “nós mesmos somos terra” e que nosso corpo é tecido por elementos do planeta. Esse é um passo importante, mas que envolve consequências que são fundamentais para entender o composto vital de todo o universo.
Por razões de inscrição institucional o papa não conseguiu ainda prolongar e radicalizar essa reflexão, captando o giro extraordinário que acompanha a “virada animal”[21]e a “virada vegetal”[22]em curso, que, certamente, vai se complementar com uma “virada mineral”, numa perspectiva teilhardiana revisitada e transformada.
Em seu livro precioso, em torno do Pensamento vegetal, o pensador Evando Nascimento retoma pistas significativas lançadas por autores contemporâneos das áreas da literatura, botânica e filosofia, como os italianos Emanuele Coccia e Stefano Mancuso, com a intenção de apresentar os meandros novidadeiros do que denominou “pensamento vegetal”.
Para além da tradição humanista, como as expressas por pensadores como Heidegger e outros, Evando abre portas e janelas para entender o humanusna sua rede de conexões[23].
Um humanismo que, sem desconhecer a singularidade dos seres humanos, ousa “pensar o mais impensado e mesmo o mais impensável até aqui, ou seja, nossas relações com outros viventes”[24]. Trata-se de dar um balzo in avante, de um passo ousado, para além de nosso “imaginário simbólico”. Fala-se hoje no despertar da florestania, dos direitos das florestas, como se vem falando também dos direitos animais etc.
O grande desafio que se coloca hoje para Francisco e toda a igreja católica é o de avançar para além do antropocentrismo, de poder captar a vida nesse “fluxo contínuo planetário”. É um campo novo e essencial para ampliar a visão de diálogo, de modo a envolver o inter-ser e o viver-com. Como diz Evando,
“o mais isolado dos humanos ou dos viventes animais ou vegetais convive com espécies e coisas que lhes são, ao mesmo tempo, alheias e vizinhas, dependendo delas para sobreviver. A solidão absoluta inexiste, pois, a solidariedade, natural e cultural, é uma lei mínima da existência, incontornável para quem ou o que vive”[25].
Apesar de todo o horizonte sombrio que nos ameaça, é possível acreditar em caminhos de sobrevivência, de tessitura de novas solidariedades, de encontrar brechas de luz nesse mundo nublado.
É o que Anna Tsing nomeia como “ressurgência”, envolvendo o trabalho “de muitos organismos que, negociando através de diferenças, forjam assembleias de habilidades multiespécies”, como mostrou Anna Tsing[26].
O papa Francisco tem diante de si esse imensurável desafio, de tecer cordas, de recompor a ideia de diálogo nessa visão mais ampla e arejada, para além dos circuitos fechados das instituições tradicionais. O ver mais além é poder entender que o humano não é o umbigo do mundo, mas que é parte do ser. Entender que ele não é o único ser interessante que existe, mas que está inserido num campo vital e provocador. É possível e necessário cultivar uma nova reverência para com o todo e encontrar caminhos para “adiar o fim do mundo”.
[1]Ver o livro: Christoph Teobald. Fraternità. Magnano: Qiqajon,2016, p. 70
[2]Ibidem, p. 81.
[3]Papa Francisco. Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
[4]Leonardo Boff. Habitar a terra. Petrópolis: Vozes, 2022.
[5]Bruno Latour. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 131. Ver ainda: Id. Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
[6]Papa Francisco. Evangelii Gaudium. A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.
[7]Papa Francesco & Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaldi/La Repubblica, 2013, p. 55.
[8]Ibidem, p. 56.
[9]Ibidem, p. 68
[10]Win WENDERS. Papa Francisco. Um homem de palavra, 2018.
[11]PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 82-83.
[12]Ver ainda o discernimento crítico feito por Eduardo Viveiros de Castro a respeito:
https://www.youtube.com/watch?v=Q77KZ2ivUQg(acesso em 21/03/2022)
[13]https://www.vatican.va/content/francesco/it/messages/pont-messages/2020/documents/papa-francesco_20200925_videomessaggio-onu.html
[14]Leonardo Boff. Covid 19. A mãe terra contra-ataca a humanidade. Advertências da pandemia. Petrópolis: Vozes, 2020.
[15]Anna Tsing.Viver nas ruínas. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019, p. 203.
[16]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 12.
[17]Ibidem, p. 138-139.
[18]Ibidem, p. 120-121.
[19]Maitre Dôgen. Shôbôgenzô. La vrai Loi, Trésor de l´Oeil. Tome 1. Paris: Sully, 2005, p. 103-104.
[20]Anna Tsing.Viver nas ruínas, p. 43.
[21]Para a virada animal, vejam os trabalhos de Donna Haraway e Vinciane Despret.
[22] Para a virada vegetal cf. Evando Nascimento. O pensamento vegetal. A literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
[23]Evando Nascimento. O pensamento vegetal, p. 145-146 e 158.
[24]Ibidem, p. 21.
[25]Ibidem, p. 34.
[26]Anna Tsing.Viver nas ruínas, p. 226.