sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O mergulho no Mistério: em torno de Lya Luft

 O mergulho no Mistério: em torno de Lya Luft

 

Faustino Teixeira

 

Ontem, dia 30 de dezembro de 2021, fui tocado pela notícia da morte de Lya Luft, aos 83 anos de idade. Foi uma ficcionista e poeta que teve presença na minha formação, ajudando-me a trabalhar um tema muito caro ao diálogo inter-religioso, que é a impossibilidade de acessar o mundo do outro. Ajudou-me também a entender o mistério que habita as relações humanas. 

 

Em seu livro, Mar de dentro(2002), encontrei uma das frases que mais me acompanhou nas reflexões pessoais. Ela falava da presença de um “espaço intransponível mesmo nos mais íntimos amores”. Isto era como um mantra para mim, ajudando-me a captar este silêncio que também Rilke acentua repetidamente em seus poemas e também nas Elegias de Duíno.

 

Lya Luft gostava de uma passagem de Rilke que dizia:

 

“Somos apenas a casca e a folha.

A grande morte que está em todos nós,

essa é a fruta e em torno dela tudo gira”.

 

A escritora viveu um bonito romance com Hélio Pellegrino. Foi uma paixão intensa, uma história “de amor e coragem”. Tudo foi descrito num de seus livros mais pungentes, O lado fatal (1988), que guardo comigo como um tesouro. Sobre o amor entre os dois, ela falava: “Todo casal apaixonado devia morrer junto. A nossa relação também estava no auge – nos conhecíamos há apenas três anos. Não tivemos o tempo da monotonia, do desgaste. Tudo ainda era muito mágico”. Os dois tinham se conhecido num congresso de escritores em Porto Alegre em 1985. Dali nasceu uma história de amor. Foram exatamente dois anos e três meses, ceifados com a morte de Hélio, em março de 1988, quando estava no auge de sua vida, encantado pelo mistério.

 

No livro dedicado a Pellegrino, tudo ocorre para poder reviver seu grande amor. Escreveu:

 

“O meu amado morreu

preciso viver sua morte até o fim.

Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e

(banalidade)

Talvez tenha morrido na medida certa

para nada se desgastar.

Dele me vem a dor, mas também a ternura,

A claridade que me permite ver

Em todos os rostos o seu rosto (...)”.

 

A morte ceifou o amor, mas ele é o dado inegociável, que está sempre em torno, e pode um dia nos surpreender. Lia Luft sublinha que não escrevia muito sobre a morte, mas que ela é que “escreve sobre nós”. E escreve “desde que nascemos” e “vai elaborando o roteiro da nossa vida. Ela é a grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos”.

 

Dizia que, em verdade, o que somos é mistério, e que nos torna “maiores do que pensamos ser”. A vida que cresce “é em tudo um milagre”.

 

Lia, mesmo quando tomada pela dor, era capaz de perceber as frestas de luz. E reflete sobre isto em Secreta mirada(1997): 

 

“Das coisas boas e belas que acabam nos vêm sempre uma luz e uma capacidade de ver o mais banal com algum encantamento. Essa é a secreta mirada que todo mundo pode ter, mas que o acúmulo de compromissos, o excesso de deveres, a exigência de sermos cada vez mais competentes e eficazes, talvez nos roube um pouco”.

 

Sinto que isso foi roubado um pouco de Lya Luft depois que começou a escrever na Veja. Algo daquele encanto da sua escritura se perdeu, sem, porém, macular toda a beleza de seus escritos anteriores.

 

De seus livros, gosto de modo muito particular do Rio de meio(1996). Ali também fala de perdas:

 

“Quando o amor foi bom a perda dói mais, mas permanece uma raiz vital que faz retornar a esperança. Tímida, a semente se entreabre como quem desperta e boceja; lança um caule muito fino que sobe até a superfície, e um dia sabemos que a vida é de novo possível”.

 

Numa das partes mais bonitas de seu livro Rio do meio, Lya Luft começa citando uma frase de Rilke, que aborda a “floresta das contradições” que habita a vida de cada um. Ela assinala que “é preciso audácia para abrir a cortina e saltar na arena junto com tudo o que fingia sossegar, mas nos atormentava tanto”. 

 

E aí, sua reflexão singular sobre os diversos tipos de mulheres: aquelas que são ocas, tendo sido antes meninas plenas; aquelas outras mulheres simples, com seu dom que encanta, habitadas por uma capacidade que se perdeu entre as mulheres “mais sofisticadas”; e, por fim, as “mulheres ensolaradas”, aquelas cuja “luminosidade se espalha por toda parte. Mesmo abaladas por alguma fatalidade, ainda que lhes falte o que para tantas sobre em beleza ou luxo, têm em si uma espécie de obstinado sol que se desprende delas como um perfume”.

 

Para Lia Luft, a morte era um tema recorrente, mas algo que trazia consigo um ensinamento: “observar mais detidamente e saborear melhor as coisas”. Consolava um dia um amigo portador de Aids a respeito. Dizia ainda que a doença não deixa ninguém distrair da morte. 

 

Lia experimentou com o Melanoma ao fim da vida o que é ter seus dias contados: “Essa é uma das estranhas vantagens de saber que se vai morrer: a vida se mostra em todo o seu esplendor, e nos faz sentir a urgência – não de devorá-la, mas de vivê-la melhor”. As pessoas que conseguem assumir sua doença, diz Luft, são “os santos dos nossos dias”. É quando chega a hora “de desligar o som, fugir do trânsito, deixar em paz por um minuto as inúteis palavras – e tentar escutar dentro de nós uma outra linguagem”.

 

Diante das perdas recorrentes ou da consciência da morte que se aproxima, Lya Luft reconhece a importância de saborear o instante de vida em cada passo, sem pressa e com voracidade... Pois a morte pode nos surpreender com sua presença indecifrável. Evitar ser pegos de surpresa, e avançar para além de uma sensação que ocorre:

 

“Não tivemos nem tempo de pensar que estávamos vivos, e que era uma tão grande urgência ser bom, ser decente, ser pensativo, ser paciente, ser curioso, ser cansado, ser decepcionado, ser frustrado, ser generoso, ser amoroso, ser humano”.

 

sábado, 25 de dezembro de 2021

As plantas e a indiferença

As plantas e a indiferença

Faustino Teixeira

 


No poema Fonte Romana, de Rilke, ele fala das águas que correm pelas duas velhas bacias, fluindo devagar, "constantemente impassível e sem nostalgia". Nos debates da "virada vegetal", nos deparamos como o dado impressionante da criatividade e artimanha das plantas em se irradiar, mesmo sem a interferência humana. Um dado exemplar de ressurgência por todo canto.
Nos textos ou poemas que abordam o tema, nos deparamos com essa ideia singular de que "as plantas não ligam", diferentemente das pessoas, como mostrou Ana Martins Marques em poema. As plantas "nunca pedem e nunca reclamam", mas nós homens-humanos atuamos sobre elas, muitas vezes com violência e impiedade, e elas sobrevivem... Estão também "sempre mudando" e ao mesmo tempo "nunca se mudam". São lindos aprendizados da "fitopoesia", para utilizar uma expressão de Evando Nascimento.
Os vegetais, como diz Evando, "nunca são percebidos como verdadeiros indivíduos" e menos ainda como "sujeitos". Eles, porém, sobrevivem, apesar de... Aos nossos "gestos", eles respondem com "absoluta indiferença", com seu "mutismo enigmático". Mas estão sempre aí, irradiando-se como o dente de leão, que se espalham e como "num sopro se soltam" e dispersam sua presença.
Assim como Ana Marques, também Djaimilia Pereira de Almeida, no seu livro "A visão das plantas", toca nesse tema da "indiferença vegetal em relação aos humores humanos", interessando-se exclusivamente pelo "húmus, a agua, o gás carbônico e a luz solar".
A cada ano, ou nos períodos determinados, nos deparamos com o espetáculo de acompanhar o florescimento das plantas que florem sempre, "indiferente aos acontecimentos", mas que às vezes deixam de fazê-lo, seja por esquecimento ou envelhecimento, livres, finalmente, daquela obrigação definida.
Tudo isso levanta para nós, mesmo para os vegetarianos e veganos, a questão de nossa intervenção ou pegada no mundo vegetal. São temas muito ricos para a reflexão, nesse nosso tempo desprovido de atenção e reverência à vida.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O Natal com o menino que mora na nossa aldeia

 

O Natal com o menino que mora na nossa aldeia

Faustino Teixeira


Sempre fui um apaixonado pelo Cântico dos Cânticos. Talvez seja uma das mais lindas declamações de amor presentes nas Escrituras. Um dos grandes conhecedores desse precioso livro, Gianfranco Ravasi, sublinha que "o amor pode assemelhar-se a um espelho d´água iluminado pelo sol". O Cântico nos convida a deixar-se hospedar por esse sol, a acolher o amor assim transfigurado que ilumina o caminho dos amigos.

Nesses dias que antecipam o Natal, lemos com alegria uma das mais lindas passagens do Cântico dos Cânticos, que trata justamente da Natureza, da beleza da "luminosa estação primaveril". Estamos diante de uma linda e impressionante vegetação que se irradia como perfume no jardim do Cântico.
Vemos no canto um amado que colhe açucenas e o seu aspecto é o do Líbano. É ele quem põe a mão na fenda da porta e todas as entranhas se estremecem; é ele que rouba o coração com "apenas um de seus olhares". Ele nos convida a embriagar-nos com sua presença.
Para ele, a amada é bela em sua singularidade, com seus olhos de pomba e o cabelo como rebanhos de cabras, com uma fala melodiosa que encanta.
O leito dos dois amantes "é só verdura" e as vigas da casa são de cedro, a árvore sagrada. E ele repousa com tranquilidade nos seios de sua amada. Ela diz, com alegria: "Meu amado é meu e eu sou dele". Quando ela encontra "o amado de sua vida", não o solta mais: agarra-o com firmeza!
Mas onde aprenderam a amar?
Aqui se desvela um núcleo poético maravilhoso do Cântico, quando os amados aprendem os segredos da relação com a Natureza:
"Vem, meu amado,
vamos ao campo,
pernoitemos sob os cedros;
madruguemos pelas vinhas,
vejamos se a vinha floresce,
se os botões estão se abrindo,
se as romeiras vão florindo:
lá te darei meu amor...
As mandrágoras exalam seu perfume;
à nossa porta há de todos os frutos:
frutos novos, frutos secos,
que eu tinha guardado,
meu amado, para ti".
Nada mais lindo do que esse trecho do livro sagrado, que mostra que o aprendizado do amor se dá no "deixar-se" embalar pelo ritmo e pelo tempo da Natureza. Ali se encontra o melhor aprendizado do amor.
Em conversa ontem com o querido Mauro Lopes, num programa especial de Natal do Paz e Bem, que vai ao ar no início da manhã do dia 24 de dezembro de 2021, falava dos três principais aprendizados do amor, com base em trecho do poema Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro.
Falava do Natal como acolhida desse menino que mora na nossa aldeia, da "Criança Nova que habita onde vivo", da criança que de tão humana só pode ser divina. Aquela linda criança que nos dá uma de suas mãos e a outra abraça tudo o que existe. O Natal é essa festa que celebra a "Eterna criança, o deus que faltava". É quando nos deparamos com esse "humano que é natural", com esse "divino que sorri e brinca", o "Menino Jesus verdadeiro".
Com essa criança todos nos damos bem, na "companhia de tudo".
Com a inspiração dessa criança falei de três coisas essenciais para mim neste natal:
Em primeiro lugar, o toque da alegria. É uma festa que deve ser a alegria que se saboreia; aquele alegria que foi de Maria e Isabel, as duas grávidas, que dançam celebrando a presença da vida no mundo interior. Uma alegria tamanha, que o menino de Maria pulava alegre em seu ventre.
É a mesma alegria expressa pelo anjo aos pastores anunciando o nascimento de Jesus: uma alegria que não se restringe a poucos mas que se irradia para todos.
Em segundo lugar, o Natal nos inspira a reconhecer e festejar a inter-ligação que une todas as coisas num mesmo tecido comum. Somos todos parte desse Todo que nos envolve. É a festa que nos convoca a reconhecer que tudo está interligado na Terra, e que tudo é objeto da "carícia de Deus", como diz sabiamente o papa Francisco. Estamos diante do mistério de uma Presença que se manifesta da folha, na vereda, no orvalho e no rosto do pobre.
Em terceiro lugar, a reverência para com a vida que pulsa em toda parte, somos convidados a um momento de interiorização, de trabalho interior visando acolher esse dom de gratuidade.
Que o Natal possa ser esse espaço especial e cuidadosamente reservado para "recuperar a harmonia serena com a criação", fortalecer o laço essencial com os outros, sobretudo os mais excluídos e adoentados, os tristes e os solitários. Preenchidos pela paz interior seremos capazes de hospitalidade, de acolhida e de cuidado. Também de atenção aos mais simples gestos do cotidiano, quando então poderemos quebrar a "lógica da violência, da exploração e do egoísmo", como diz tão bem Francisco.
Por fim, que saibamos com o Natal dizer sempre e em todos os lugares lindas "palavras de amor". Isso nos mostrou há tanto tempo o mestre Dôgen, da tradição Soto Zen: "De geração a geração, de existência em existência, não se esquecer jamais de pronunciar palavras de amor".
Diz Dôgen que quando recebemos palavra de amor nossos rostos se iluminam de alegria e o nosso coração se preenche de contentamento.
Isso é Natal, isso é alegria, isso é vida.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

As novas configurações da vida no Tempo


As novas configurações da vida no Tempo

No Roda Viva de ontem, 20/12/2021, tivemos a presença de Caetano Veloso. Gostei muito do programa, que vi depois. Uma coisa, porém, chamou-me a atenção: a fala de Caetano Veloso sobre o pós-morte. Trata-se de algo que discordo, e que me coloco ao lado de Gilberto Gil.

Em determinado momento do Roda Viva, instado a falar sobre como via a perspectiva da morte, Caetano respondeu:
"Somos o infinito aprisionado no finito. Sinto mais o impacto do mistério de existir, de ter consciência de que isso é finito, que eu vou acabar. Então o mundo todo vai acabar pra mim, em mim, de mim."
Taí, Caetano reiterava sua posição já apresentada na canção "Oração ao Tempo", quando diz:
"E quando eu tiver saído
Para fora de teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei, nem terás sido
Tempo Tempo Tempo Tempo"
Aqui reaparece a ideia de que depois da morte não haverá mais ser.
Caetano mesmo já disse que todas as suas letras são autobiográficas, daí essa ideia estar fincada no seu agnosticismo.
Essa posição vem rebatida com delicadeza por Gilberto Gil na canção "Tempo Rei":
"Não me iludo
Tudo permanecerá
Do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando
Todos os sentidos..."
Gil reconhece que a letra expressa sua versão "para uma questão colocada em ´Oração ao tempo`, de Caetano Veloso. Gil reage ao "niilismo essencial" de Caetano, discordando de que a pessoa desaparecerá no tempo. Gil, numa posição que ele reconhece estar próxima à do cristianismo, sublinha o desejo de "permanência e transformação". O que vai ocorrer é mesmo uma transformação e não uma extinção. O próprio conceito de Deus para Gil envolve essa ideia de Mudança e Transformação. Gil quer garantir uma "porta aberta para algo pós".
Nisso concordo plenamente com Gil, ainda que respeite a posição de Caetano, reforçada ontem no Roda Viva. Em minhas pesquisas atuais sobre a "virada vegetal", lendo autores excelentes que desenvolvem essa questão, a minha posição sobre o tema veio reiterada. E aqui cito uma passagem bem interessante de Evando Nascimento em seu livro "O pensamento vegetal" (2021), quando diz:
"Nosso grande temor da morte vem da incapacidade congênita ao humano de reconhecer que, a se reintegrar ao inorgânico, a vida nunca desaparece de todo, apenas ganha novas configurações metamórficas".
Essa é a ideia que me anima atualmente: de uma bonita reintegração ao inorgânico, mas que produz vida e transformação. Não gosto que essa ideia de mudança e transformação se perca na reflexão sobre a morte.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A noite americana de François Truffaut: uma declaração de amor ao cinema

 A noite americana de François Truffaut: Uma declaração de amor ao cinema

 

 

A noite americana(1973), de François Truffaut (1932-1984) é uma das mais belas declarações de amor ao cinema que já foram feitas. Quando o diretor fez esse filme, estava já com 41 anos, com uma longa bagagem, tendo realizado 12 longas metragens num espaço de 14 anos, entre 1959 e 1973. É o segundo filme do diretor onde ele também aparece como ator. O primeiro foi O garoto selvagem, de 1970.

 

Trata-se de um filme dentro do filme[1], a celebração do trabalho cinematográfico. O título, A noite americanareflete o efeito típico dos filmes de Wollywood em que, por meio de um filtro, rodam-se cenas diurnas como se fossem noturnas. 

 

O diretor amava os filmes americanos, com sua magia e tradição. Era um cineasta que encarava o cinema como um prolongamento da juventude, como nas brincadeiras de criança: “Queremos recriar algo como num conto de fadas ou no cinema americano, que tanto nos fez sonhar quando jovens”[2].

 

Truffaut desenvolve nesse filme singular a história de uma filmagem: ele quer nos mostrar que “os bastidores de uma filmagem são sempre muito mais interessantes do que o filme em si”[3]. Vemos aqui a produção de um filme como arte coletiva: obra de muitas pessoas.

 

Podemos acompanhar pormenorizadamente essa arte de trabalho minucioso. Podemos acompanhar no filme os atores repetindo diversas vezes as falas e as câmaras bisando cada tomada. Tudo isto para mostrar ao espectador “como é difícil a filmagem de cada plano, de cada sequência”[4].

 

Se os personagens do filme são figuras simples, os atores que os interpretam são “complexos, complicados e multifacetados”, dirá o diretor Ferrand (interpretado por Truffaut) em certo momento, direcionando-se a Alphonse (interpretado por Jean-Pierre Léaud): “Você é ótimo ator e trabalha bem. Há sua vida particular, e nenhuma vida é perfeita. Filmes são mais harmoniosos, mais controláveis que a vida. Não há engarrafamentos, nem tempos mortos. Filmes avançam como trens, entende? Trens na noite. Gente como você e eu é feita para ser feliz no trabalho do cinema”. 

 

Em outro momento, o diretor dirá: “Fazer um filme é como viajar numa diligência no Velho Oeste. Quando você embarca, espera ter uma viagem agradável. Lá pelo meio, tudo que você deseja é conseguir sobreviver”.

 

Não é fácil a tarefa de direção cinematográfica: “o diretor é um homem a quem fazem perguntas sobre todas as coisas. Às vezes ele sabe a resposta”. Numa de suas entrevistas após o lançamento do filme A noite americana, Truffaut diria que a melhor maneira que ele poderia encontrar para ignorar algumas perguntas era fingir que tinha problemas auditivos.

 

A grande arte de Truffaut, reconhecida pela linda atriz Jacqueline Bisset (que faz o papel de Julie Baker – a atriz inglesa que faz o personagem do titulo, Pamela) é saber mediante toques sutis, extrair grandes interpretações[5]. Num dos extras que acompanham O DVD sobre o filme[6], há uma pertinente reflexão da estudiosa Anette Insdorf, que fez igualmente uma biografia sobre o diretor.

 

Segundo Bisset, nos filmes de Truffaut, os atores “simplesmente viviam”; eram reconhecidos e bem tratados pelo diretor. Ela disse: “Ele deu-me instruções precisas em certas cenas”, como na posição das mãos. Um dos lindos momentos do filme; também quando ela sai fora do set com o marido e pede-lhe um beijo. O diretor aproveita a “cena”, indicando para Bisset ir devagar e olhar em volta. 

 

Ele dizia, simplesmente: “olhe para lá”, ou então “olhe para cá”. Num momento que não tinha nada a ver com o que se passava no filme, o diretor aproveita um momento de naturalidade, que Bisset reconheceu que ficou lindo: “Aprendi a confiar nele”[7].

 

Há uma delicada cena em que os novos amantes, Alexandre e Pamela (sogro e nora de Alphonse), estão num hotel. Eles já concluíram o café da manhã, e Pâmela leva para fora do quarto a bandeja: uma forma de dizer para as camareiras: não perturbem. 

 

E então ocorre a cena do gato que vai comer o resto que está na bandeja, colocada no chão. Algo bem semelhante ocorrera em outro filme, La peau douce (Um só pecado, 1964), o quarto longa metragem de Truffaut. Ali também a câmara, discretamente, recolhe-se para não mostrar o ato de amor que se passa entre as quatro paredes do quarto.

 

Truffaut era um diretor “perfeccionista não dogmático”, como assinalou a estudiosa e professora americana, Anette Insdorf. Ele “nunca dava ordens, só pedia”. Com grande maestria, conseguia recolher dos artistas grandes momentos de criatividade e arte.

 

Bisset fala também da paciência do diretor, como no cuidado em lidar com a sua pronúncia francesa. Tranquilizava-a nesse campo, justificando que ela  não estava fazendo papel de francesa no filme.

 

Sua paciência ocorria igualmente com uma das atrizes do filme, Séverine, que faz o papel da mãe de Alphonse (interpretada pela veterana atriz italiana Valentina Cortese). Em sua presença no filme ela excede no uso de champagne e tem grande dificuldade de memorizar suas falas. Por diversas vezes ela tenta, e erra ... por diversas vezes.

 

Tudo para mostrar a solidariedade de Truffaut com os intérpretes de seus filmes, também com as atrizes que vão envelhecendo, vivendo a experiência da vulnerabilidade, como Séverine.

 

Truffaut era um diretor que adorava as atrizes, as mulheres, a “magia das mulheres”. O cuidado dele com o porte das atrizes, a postura das mãos, os pequenos detalhes. No filme em questão vemos igualmente a sua consideração pelo tema da homossexualidade, que envolve os personagens Alexandre e seu companheiro gay. Ele aparece sempre com pressa, para se encontrar com seu jovem amigo no aeroporto.

 

Dizia o diretor que tristes eram os filmes sem mulheres, como os filmes de guerra, por exemplo. O que eles têm de melhor é quando “um soldado tira do bolso a fotografia de uma mulher e a olha”[8].

 

Como sublinhou Bisset na citada entrevista, para Truffaut os filmes eram mais importantes que a vida. Deixava sua vida de lado para vivenciar os filmes. O seu amor pelo cinema era imenso. Era feliz quando estava filmando.

 

Em cena magnífica do filme, vemos os rolos de celulose se entrelaçarem como se fossem amantes num filme mais tradicionalmente romântico...

 

Outra cena marcante, é a que revolve o sono do diretor Ferrand, quando aparece um menino batendo a bengala na noite escura de Paris, sendo que na terceira sequência, ele chega ao cinema e rouba os cartazes do filme Cidadão Kane, de Orson Welles.

 

Vale registrar também a relação de Truffaut com Jean-Pierre Léaud, que se iniciou quando Léaud tinha apenas 15 anos de idade (no filme, os incompreendidos, de 1959): um filme abertamente autobiográfico[9].

 

O diretor e o ator seguem juntos na trilogia: “Beijos proibidos” (1968), “Domicílio Conjugal” (1970) e “O amor em fuga” (1979): “Poucos atores de cinema tiveram seu crescimento e sua evolução profissional acompanhados tão de perto pelos cinéfilos como Jean-Pierre Léaud”[10]. Em reflexão publicada no Cahier du Cinéma, em número especial de 1984, o ator Jean-Pierre Léaud sublinha:

 

“Eu devo tudo a François. Não só ele me passou seu amor pelo cinema, mas também me deu o mais belo trabalho do mundo. Ele fez de mim um ator. Hoje, o ator prefere se calar e deixa falar as personagens. François era o homem que eu mais amava no mundo. Ele dizia a mesma coisa do seu amigo André Bazin. Sinto a falta dele. Sentimos a falta deles”[11].

            

Além de trabalhar com Truffaut, Jean-Pierre Léaud atuou sob a direção de Jean Jean-Luc Godard, em filmes como Week-End à francesa (1967) e A chinesa (1967). Esse clássico ator da Nouvelle Vagueatuou ainda em filmes do Cinema Novo, como O leão de sete cabeças(Glauber Rocha) e Os herdeiros(Cacá Diegues).

 

Sobre o amor de Truffaut aos diretores, há uma cena magnífica no filme, que envolve também a presença do compositor Georges Delarue, dos melhores em trilhas sonoras, que trabalhou com Truffaut em “A noite americana”, e também em outros filmes, como “Duas inglesas e o amor”(1971). 

 

Há uma cena, em que o diretor Ferrand recebe uma ligação do compositor Delarue, e o espectador ouve uma linda peça musical, que esteve na trilha de “Duas inglesas e o amor” (quando Claude e Anne, personagens do filme, têm o seu primeiro interlúdio amoroso numa ilha). Uma música associada ao amor. 

 

É a música que serve de trilha para o momento onde o diretor abre um pacote de livros, que vão se espalhando na mesa, com os nomes de grandes diretores, apreciados por Truffaut como Rosselini, Hitchcok, Goddard, Buñuel, Carl Dreyer, Bergman, Erns Lubitsch, Roberto Bresson e Howard Hawks.

 

O seu amor aos livros está também presente no filme de 1966: Farenheit 451, que termina com uma das mais belas cenas de amor e respeito pela literatura: numa sociedade futurista repressiva, onde os livros são objetos de censura e destruição, os internos de um manicômio “passam os dias recitando o texto de um livro clássico para, uma vez decorado, salvá-lo do extermínio e transmití-lo à posteridade”[12].

 

Ao analisar o filme Noite Americana, em especial a relevância de François Truffaut, o escritor Alberto Moravia sublinhou que o diretor “ao contrário de tantos de seus colegas, não enxerga o cinema como espaço privilegiado de uma falsidade misteriosa e inesgotável; a contrário, ele nutre por sua profissão um sentimento de afeição, gratidão e de amor (...). O cinema é uma forma de vida, ou melhor, um substitutivo válido da vida”[13].

 



[1]Dentro do filme A noite americana, o filme “Je vous présent Pamela” (Eu vos apresento Pamela; ou então: Esta é a Pamela). No filme Pamela apaixona-se pelo seu sogro, Alexandre: os dois fugirão. No desenvolvimento do filme, Alphonse, aquele que foi traído, vai em busca de vingança.

[2]François Truffaut. Cinématographe 70, 150, 1970.

[3]Tiago Mata Machado. “A noite americana Truffaut filma e festeja o próprio métier do cinema. Folha de São Paulo, 23 de maio de 2003 (Ilustrada).

[4]Sérgio Vaz. + de 50 anos de filmes. A noite americana: https://50anosdefilmes.com.br.

 

[5]A arte de Truffaut. DVDversátil, com vídeos extras (2 discos).

[6]Ibidem.

[7]Ibidem.

[8]François Truffaut. O último metrô. Grandes diretores no cinema. Coleção Folha de São Paulo, v. 3 (O último metrô), 2018 (livreto que acompanha o DVD, p. 17)

[9]Truffaut nasceu numa família modesta de Paris. Viveu uma infância solitária, marcada pela falta da figura paterna e por pequenos atos de delinquência. Encontrada refúgio nos livros (Balzac) e nas salas de cinema.

[10]François Truffaut. Os incompreendidos. Coleção Folha de São Paulo, v. 15, 2011 (Livreto que acompanha o DVD, p. 52)

[11]Ibidem, p. 55.

[12]Ibidem, p. 27-28.

[13]François Truffaut. O último metrô. Grandes diretores no cinema, p. 8.

sábado, 11 de dezembro de 2021

A virada vegetal e o desafio da virada mineral

 A virada vegetal e o desafio da virada mineral 

Faustino Teixeira

 

Já há tempos se fala em "virada animal", e para tanto foi de grande importância a reflexão de pensadoras como Donna Haraway, Nastassja Martin e Vinciane Despret. Agora na última Flip (2021) falou-se em "virada vegetal", com mesas fantásticas que abordaram as mudanças que envolvem a nova reflexão sobre o pensamento vegetal e as transformações que isto implica na visão do humano agora em relação. Trabalhos importantes vão saindo apontando a nova perspectiva, como os de Evando Nascimento, Emanuele Coccia e Stefano Mancuso. E pela frente estamos diante de mais um desafio que envolve a "virada mineral". 

Numa ecoantropologia relacional somos provocados a pensar também, além de uma humanidade, animalidade e plantidade, numa mineralidade. Vejo aqui a importância de retomar o pensamento de Teilhard de Chardin, quebrando sua lógica teleológica e concentrando na sua paixão pela matéria, que foi um passo tão fundamental experimentado por ele nas suas experiências e reflexões. Poder dizer com ele e com tranquilidade: "Bendita sejas tu, áspera Matéria, gleba estéril, duro rochedo". Como diz o jesuíta francês, "a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda no Universo". Teilhard nos leva a vivenciar uma irresistível simpatia "por tudo aquilo que se move na matéria obscura" (Hino do Universo).

Para essa "virada mineral", sugiro ainda a abertura à reflexão do pensamento do grande mestre Dôgen em seu clássico Shôbôgenzô, sobretudo os livros que tratam do tema da matéria, como Sansuikyô, que trata das montanhas e rios como sutras; bem como Udonge, que aborda a flor de Udumbara. Com ele penetramos no complexo e vivo mundo da comunhão cósmica e da ressonância que envolve o mundo do vivido e sua relação com a vida dos minerais. Como ele diz, aqueles que não têm olhos para ver as montanhas, para percebê-las ou conhecê-las, são incapazes de captar o movimento das montanhas, e igualmente incapazes de captar o seu próprio movimento.

Trata-se do grande desafio de conceber o universo inteiro sob a dinâmica da animação. Como diz Tim Ingold, em sua reflexão sobre o "estar vivo", e sob o influxo da visão animista dos povos originários, todas essas realidades estão em movimento: o sol, as árvores, as montanhas, o vento...

Estamos, assim, diante do essencial desafio de pensar para além do humano, ou melhor, do humano em relação com os "seus outros" (Evando Nascimento), rompendo assim com esse pernicioso e excludente antropocentrismo.

Thomas Merton, em seu Diário da Ásia, fala com pertinência no desafio de um outro olhar: saber penetrar o "outro lado da montanha", aquele que escapa à mirada do fotógrafo. Ele diz que esse "outro lado" é o "único que vale a pena ver".

 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Nunca é tarde para sentir o gosto de cereja: Abbas Kiarostami

 Nunca é tarde para sentir o gosto de cereja: Abbas Kiarostami

 

O aroma das nozes

A fragrância do jasmim

O aroma da chuva sobre a  terra

-Kiarostami

 

                  Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

Estamos aqui diante de um cineasta diverso daqueles que marcam o horizonte tradicional do cinema americano, de alguém que privilegia “o gosto e a simples capacidade do olhar”[1]. O cinema de Abbas Kiarostami é singular e bem diverso, carregado de poesia, inspiração e abertura, sem largar de mão a dura realidade do tempo. O diretor nasceu em Teerã (Irã) em 1940. Além de cineasta inaugural, é também poeta singular, e um de seus livros foi publicado no Brasil, trazendo haikais extraordinários[2].

 

É um dos mais famosos cineastas iralianos nos anos de pós-revolução de Aiatolá Khomeini. As mudanças no Irã com Khomeini, após o que ocorreu em 1979, provocaram impactos nas artes e no cinema. Ao final da revolução, nada menos que 180 cinemas foram destruídos. O novo regime, e os desdobramento de “raiva” que provocou contra a mídia, resvalou também no cinema, identificado como uma das ferramentas do regime anterior. 

 

Nesse clima difícil e complexo, firma-se o cinema de Kiarostami, pioneiro na nova onda do cinema iraniano, com grande reconhecimento internacional. O diretor, com muita habilidade e diplomacia, conseguiu driblar a censura, evitando julgamentos prévios sobre a situação, preferindo abordar a realidade de forma semelhante ao que fez o neorrealismo italiano: simplesmente trazer para as telas o concreto da realidade. 

 

Como no neorrealismo, buscou deixar “a desordem e as imperfeições à vista”, recorrendo a cenários reais e atores amadores, bem como as cenas do cotidiano. O caminho de sua crítica social é simplesmente “deixar a janela transparente para o espectador ver o seu país”[3]. Em falas do diretor acerca de seus filmes, ele deixa claro que  eles “não são apenas o que está na tela, mas também aquilo que os espectadores completam neles com os sentidos”[4].

 

Observamos algo inabitual nos filmes com a câmera em movimento, num clima de tensão e pressa. Aqui não, as cenas são lentas, a passagens demoradas. Tudo provoca “estranheza” no espectador. Mas é a chance de embarcar na linguagem e reflexão desse cinema. Algo que proporciona um deguste singular, um espetáculo para o olhar e os sentidos. 

 

No caso de Gosto de cereja (1997)[5], temos um roteiro simples, envolvendo um homem de meia idade, Badii – interpretado por Homayou Ershadi. Trata-se de alguém de meia idade, que se encontra tomado por grande amargura. Por razões que não aparecem na tela, ele quer cometer suicídio, e  busca ardentemente encontrar alguém que o possa ajudar a realizar seu intento. A tarefa almejada, era com a ajuda de uma pessoa acabar de enterrá-lo numa fossa que ele tinha cavado nas montanhas, junto a uma pequena árvore. Sua intenção era tomar medicamentos, se arranjar na fossa e, na manhã do dia seguinte alguém verificar se estava mesmo morto e concluir o intento com o preenchimento da cova com vinte pás de terra.

 

Badii sai de carro pelas redondezas da cidade, e praticamente todo o filme se passa dentro do automóvel, e ele convida certas pessoas que encontra pelo caminho, a entrarem no seu veículo e então fazer sua proposta. Vale lembrar que o carro é sempre um “componente dramático” utilizado pelo diretor em seus filmes, como no caso do filme O vento nos levará, de 1999.

 

Três pessoas aceitam o convite de adentrar no veículo: um jovem soldado curdo, um seminarista afegão[6]e um velho professor turco. O primeiro, mais silencioso, sente-se desconfortável com a conversa e depois foge; o segundo, muçulmano, recusa a proposta por razões religiosas. O terceiro acaba aceitando para ajudar um filho doente, mas faz um longo discurso contra o suicídio. Tenta convencer a Badii que a decisão tomada por ele não seria a melhor solução. Diz a ele que o sabor de cereja o impediu em circunstância anterior de realizar tal ato.

 

Um dado que impressiona o espectador é a presença contínua do carro que anda pelas estradas tortuosas das redondezas de Teerã, por paragens pedregosas. A trilha sonora é praticamente o som do carro em movimento, naquele cenário tortuoso de aridez e poeira. Isso durante todo o tempo. E o motorista, Badii, com sua face amargurada, fixado em seu objetivo de dar cabo à vida.

 

É no automóvel que se passa grande parte do filme, na estrada. É no interior do carro que Badii

 

“procura seus eventuais cúmplices, expõe seus planos (instruindo-os sobre a empreitada), solicita ajuda, ouve resistências e conselhos. Em um país em que o direito de expressão é ainda cerceado pelas tradições político-religiosas e o universo privado ainda é extremamente desconhecido (ao menos no Ocidente), Kiarostami se aproveita do automóvel como ponte de ligação entre os universos público e privado.[7]

 

Essa ponte entre o público e o privado manifesta-se na brecha que deixa o vidro do carro semi-aberto em todo o trajeto. Um sinal que  faculta ver o que se passa fora do veículo, sem deixar de refletir o drama vivido em seu interior. É o confronto entre o “lá fora” e o “cá dentro”, o público e o privado.

 

O cenário é inóspito, duro, como as pedras e a poeira do terreno. Há poucas árvores, mas belas. Em algumas passagens, elas revelam suas cores vivas em contraste com a rústica paisagem. Segundo Mesquita, numa resenha sobre o filme, “é justamente no ´adentrar` a esfera privada que Kiarostami abre as portas do Irã desconhecido, vislumbrado e idealizado (...). Mais do que uma simples tarefa, o passageiro-recruta deve compartilhar do ato que cometerá o sr. Baddii. Sua procura  

 

“é mais por um ombro complacente, alguém que divida sua angústia e, acima de tudo, endosse sua atitude. Função que vai muito além do ofício do coveiro, que poderia, com tranquilidade, executar a tarefa. É justamente na objetividade com que instruiu os passageiros, que Sr. Badii deixa vazar, em tom contraditório, toda sua subjetividade e apego no ser.[8]

 

Surpreende o espectador que, curiosamente, ao falar da busca da morte, o diretor acaba revelando para o espectador o horizonte da vida, da possibilidade de uma vida que equilibra dor e alegria. Nesse filme em particular, em vez de apontar caminhos de luz, o traço mais marcante e impactante é a amargura e a dor interior. Predomina o desencanto, mesmo com evocações bonitas, ou vislumbres de felicidade, que em certas narrativas do filme contagia o espectador. São algumas “fagulhas de esperança”[9].

 

Na resenha de Willian Bongiolo, ele sublinha que Badii sempre pergunta sobre a famílias dessas pessoas, sobre suas esposas e se gostam do trabalho: “Uma busca muito mais por uma humanidade perdida do que simples ajuda”. O filme é uma bela e forte “reflexão sobre a vida e morte. E em como nossa vida é cheia de pedras e poeira[10], mas que também existe nela um gostinho maravilhoso de cereja”[11].

 

Como ocorre em outros filmes do diretor, permanecem “espaços em branco” ao final da exibição. Como diz o diretor: “Eu os deixo em branco para que as pessoas preencham de acordo com o que pensam e com o que desejam”[12]. O diretor diz numa entrevista que “nenhum filme digno do nome se completa sem a participação (criativa?) do expectador”[13]. Os filmes de Kiarostami apontam para algo que está para além da tela, trazendo à tona experiências e sentimentos que são comuns, e que acordam no espectador diante da provocação do diretor.

 

Ao abordar a morte, o diretor fala sobre a vida. As estradas tortuosas por que passa aquele homem angustiado do filme são as estradas tortuosas pelas quais passamos também: as nossas difíceis escolhas. O personagem central do filme, que toma uma decisão, nos mostra que a possibilidade de viver e de como estar vivo, é escolha nossa. Somos, em verdade, donos de nossas decisões, de nossa vida, mas também de nossa morte. É o tema central do filme.

 

Como lembra Thalita, outra resenhista do filme, a obra do diretor “se comunica porque é capaz de falar sobre dor e alegria em um idioma em que todos nós somos fluentes: nosso interior”[14].

 

Na conversa com o seminarista afegão, o segundo que entrou no carro, há passagens interessantes na narrativa[15]:

 

Badii diz a ele que sabe que o suicídio é um grande pecado, mas que estar infeliz é igualmente pecado. Relata que quando se está infeliz a pessoa acaba ferindo os outros. E indaga: “Isso também não é pecado?” Continua: “Eu acho que Deus é tão misterioso e grande que não quer ver suas criaturas sofrendo. Ele não pode querer nos forçar a viver e por isso concede essa solução ao homem.”

 

Após a saída do seminarista do carro, Baadi vai um pouco adiante e para num local onde tem um trator remexendo a terra. Numa bonita e forte cena, aparece a sua sombra sendo coberta pelas pedras, terras e poeira que caem, transformando o cenário. Senta-se numa pedra em meio a destroços, observando os entulhos que caem. Uma longa cena. Fica ali até que um rapaz que trabalhava no local pede a ele para retirar o carro, que estava dificultando o trabalho.

 

Dos três que entram no carro, o último, que é taxidermista, tem o filho muito doente, e acaba aceitando o convite, embora faça o possível para demover o motorista de sua decisão. Ele era o único dos três que passara por situação semelhante, num episódio que descreve com detalhes no filme, quando tentou se matar, mas foi salvo pelo toque nas cerejas. 

 

Em sua fala, o professor sublinha que um dia saiu cedo de casa de carro, disposto a se matar. Levou uma corda e se dirigiu a um campo com árvores de cereja. Tentou por três vezes lançar a corda, sem sucesso. Em seguida decidiu subir na árvore, amarrar com firmeza a corda, quando então se deu o que podemos chamar de uma epifania. Ele toca sem querer em algo, que o chama a atenção. Era uma cereja. Ele então prova do fruto e se delicia. Prova mais duas cerejas, e a sensação se repete. Aquela sensação de sabor e prazer, já provoca tensão com sua decisão. O dia estava amanhecendo, e embaixo da árvore passavam crianças indo para escola. Elas o chamam para descer e também se deliciam com as cerejas. Baadi recolhe algumas e leva então para a sua mulher que dormia. O que ocorrera com ele tinha provocado uma mudança de foco, uma mudança na vida, reintegrando-o nas trilhas da existência. 

 

Mas vale registrar algumas passagens belas da conversa do velho professor com Baadi no carro:

 

Ele pergunta ao sr. Badii se

 

“não quer mais sentir o gosto das cerejas, ou seja, das pequenas coisas que dão sentido à vida”. Ele argumenta: “Todos os homens do mundo têm problemas em suas vidas. É assim que as coisas são. Existem muitas pessoas no mundo. Não existe uma família sem problemas... Eu não sei seu problema, caso contrário poderia ajudar melhor.”

 

Ele continua, citando um exemplo tomado de uma piada turca:

 

“Quando um turco vai ao médico ele diz: quando toco meu corpo com meu dedo dói. Quando eu toco minha cabeça, dói, minhas pernas, dói. Minha barriga, minha mão, dói.  O médico examina e diz a ele: seu corpo está bem, mas seu dedo está quebrado. Meu querido, sua mente está boa. Não tem nada de errado com você. Mude o foco.” 

 

E o turco no carro continua: 

 

“Eu saí de casa para me matar, mas uma cereja me salvou. Uma cereja comum e sem importância... E segue na conversa: “O mundo, não é da forma como você vê. Você tem que mudar o foco e mudar seu mundo. Seja otimista! Olhe as coisas positivamente. Você é uma prioridade. Por causa de um problema pequeno você quer cometer suicídio. Por um único problema... A vida é como um trem que continua se movimentando. Então chega ao fim da linha, ao terminal. E a morte espera no terminal.” Reconhece que a morte é uma solução, “mas não a primeira, não durante a juventude”.

 

E segue com sua argumentação:

 

“Você perdeu toda a esperança? Você já olhou para o céu, quando acorda? Ao amanhecer, você quer ver o sol nascendo? O sol vermelho e amarelo, quando se põe? Você já viu a lua? Você não quer ver as estrelas? A lua cheia no céu? Você não quer ver? Você quer fechar os olhos? As pessoas do outro lado gostariam de dar uma olhada aqui, e você quer correr para lá... Você não quer beber água da nascente de novo? De lavar o rosto naquela água?[16]Se você olhar para as quatro estações... cada estação traz frutas. No verão tem frutas, no outono também. O inverno traz frutas diferentes e a primavera também. Nenhuma mãe pode fazer tanto para seus filhos como Deus faz pelas suas criaturas. Você quer recusar tudo isso? Você quer desistir de tudo isso? Você quer desistir do gosto de cerejas? Não, eu sou seu amigo. Estou te implorando...”

 

O filme segue então para seus momentos finais. Mas o espectador percebe que a fala do professor toca Badii de forma diversa da fala dos outros. Dá para se perceber isso claramente no filme, através da observação das expressões de seu rosto, diante da fala emocionada do velho professor. Quando os dois se despedem, Baadi retoma com o professor o trato, e ele mantém sua palavra. Um pouco depois, Baadi, num gesto de impaciência, vai ao Museu Natural onde tinha deixado o professor, e encontra-se novamente com o professor, insistindo com ele para verificar na manhã seguinte se realmente estava morto.

 

As cenas que se seguem são incompletas. A câmara acompanha Baadi no anoitecer fazendo alguma coisa em sua casa, providenciando algo. As luzes da casa então se apagam e ele se dirige de taxi para o local em que faria o suicídio. Ele chega ali no monte, junto da cova, fuma um cigarro e depois se deita no buraco, com os olhos voltados para cima. Nesse momento, o tempo começa a mudar, anunciando chuva. Os clarões dos relâmpagos iluminam a cena, com a câmara focada no rosto atônito de Baadi no buraco. Daí em diante, não se sabe mais nada.

 

No final, vemos a equipe de filmagem, e um grupo de soldados que fazem exercício. Junto à equipe, o diretor do filme e também o ator que interpreta o personagem Baadi. Como ocorre com os filmes de Kiarostami, fica para o espectador a conclusão sobre o desfecho. Mas, quem sabe, aquela faísca dos relâmpagos não tenha exercido um efeito semelhante ao das cerejas no velho professor. Isto me fez lembrar um conhecido haikai de Bashô, que dizia:

 

“Como é admirável

Aquele que não pensa: ´A vida é efêmera`

Ao ver um relâmpago”

 

.....



[1]Inácio Araújo. “O gosto da cereja” é amargo. Folha de São Paulo, 24/10/1997:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/10/24/ilustrada/44.html.

[2]Abbas Kiarostami. Nuvens de algodão. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

[3]Franthiesco Ballerini. História do cinema mundial. São Paulo: Summus Editorial, 2020, p. 216.

[4]Ibidem, p. 216.

[5]O filme foi premiado em Cannes como vencedor da Palma de Ouro, na edição de número 50, em 1997, mas quase foi impedido de ser exibido por pressão das autoridades iranianas.

[6]Na ocasião eram cerca de 2 a 3 bilhões de afegãos no Irã, fugidos de seu país, em razão da guerra.

[9]Inácio Araújo. “O gosto da cereja” é amargo. Folha de São Paulo, 24/10/1997:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/10/24/ilustrada/44.html

[10]Vejam a impressionante cena onde Badii está centado numa pedra, próximo de uma escavadeira, e observa o movimento que ela faz com a terra, e ele fica todo envolvido com a poeira provocada pelo movimento da máquina. Uma longa e impressionante cena. É como se pressentisse o que estaria por ocorrer com ele.

[11]Willian Bongiolo. Gosto de cereja é essencial para quem deseja conhecer o cinema iraniano. Engeplus, 06/03/2017:

http://www.engeplus.com.br/cache/noticia/0107/0107616/.

[12]Thalita Sales. Notas sobre Gosto de cereja (1997), 15/08/2018:

https://medium.com/@thalitasales/notas-sobre-gosto-de-cereja-1997-b35733bdd5a0

[13]Luiz Carlos Merten. Abbas Kiarostami estabeleceu a base do ambicioso cinema iraniano contemporâneo. O Estado de São Paulo, 04/07/2016:

https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,abbas-kiarostami-estabeleceu-a-base-do-ambicioso-cinema-iraniano-contemporaneo,10000060940

[14]Thalita Sales. Notas sobre Gosto de cereja (1997), 15/08/2018:

https://medium.com/@thalitasales/notas-sobre-gosto-de-cereja-1997-b35733bdd5a0

[15]Para as citações dos diálogos, recorri ao próprio filme: DVD com a coletânea de quatro filmes do diretor, com o título: Abbas Kiarostami. Coleção Obras Primas, incluindo como extra uma longa entrevista do diretor.

[16]Em Haikai de Kiarostami, ele diz: Mergulho / meu rosto na água da fonte / de olhos abertos”: Abbas Kiarostami. Nuvens de algodão, p. 51.