Nunca é tarde para sentir o gosto de cereja: Abbas Kiarostami
O aroma das nozes
A fragrância do jasmim
O aroma da chuva sobre a terra
-Kiarostami
Faustino Teixeira
PPCIR/IHU/Paz e Bem
Estamos aqui diante de um cineasta diverso daqueles que marcam o horizonte tradicional do cinema americano, de alguém que privilegia “o gosto e a simples capacidade do olhar”. O cinema de Abbas Kiarostami é singular e bem diverso, carregado de poesia, inspiração e abertura, sem largar de mão a dura realidade do tempo. O diretor nasceu em Teerã (Irã) em 1940. Além de cineasta inaugural, é também poeta singular, e um de seus livros foi publicado no Brasil, trazendo haikais extraordinários.
É um dos mais famosos cineastas iralianos nos anos de pós-revolução de Aiatolá Khomeini. As mudanças no Irã com Khomeini, após o que ocorreu em 1979, provocaram impactos nas artes e no cinema. Ao final da revolução, nada menos que 180 cinemas foram destruídos. O novo regime, e os desdobramento de “raiva” que provocou contra a mídia, resvalou também no cinema, identificado como uma das ferramentas do regime anterior.
Nesse clima difícil e complexo, firma-se o cinema de Kiarostami, pioneiro na nova onda do cinema iraniano, com grande reconhecimento internacional. O diretor, com muita habilidade e diplomacia, conseguiu driblar a censura, evitando julgamentos prévios sobre a situação, preferindo abordar a realidade de forma semelhante ao que fez o neorrealismo italiano: simplesmente trazer para as telas o concreto da realidade.
Como no neorrealismo, buscou deixar “a desordem e as imperfeições à vista”, recorrendo a cenários reais e atores amadores, bem como as cenas do cotidiano. O caminho de sua crítica social é simplesmente “deixar a janela transparente para o espectador ver o seu país”. Em falas do diretor acerca de seus filmes, ele deixa claro que eles “não são apenas o que está na tela, mas também aquilo que os espectadores completam neles com os sentidos”.
Observamos algo inabitual nos filmes com a câmera em movimento, num clima de tensão e pressa. Aqui não, as cenas são lentas, a passagens demoradas. Tudo provoca “estranheza” no espectador. Mas é a chance de embarcar na linguagem e reflexão desse cinema. Algo que proporciona um deguste singular, um espetáculo para o olhar e os sentidos.
No caso de Gosto de cereja (1997), temos um roteiro simples, envolvendo um homem de meia idade, Badii – interpretado por Homayou Ershadi. Trata-se de alguém de meia idade, que se encontra tomado por grande amargura. Por razões que não aparecem na tela, ele quer cometer suicídio, e busca ardentemente encontrar alguém que o possa ajudar a realizar seu intento. A tarefa almejada, era com a ajuda de uma pessoa acabar de enterrá-lo numa fossa que ele tinha cavado nas montanhas, junto a uma pequena árvore. Sua intenção era tomar medicamentos, se arranjar na fossa e, na manhã do dia seguinte alguém verificar se estava mesmo morto e concluir o intento com o preenchimento da cova com vinte pás de terra.
Badii sai de carro pelas redondezas da cidade, e praticamente todo o filme se passa dentro do automóvel, e ele convida certas pessoas que encontra pelo caminho, a entrarem no seu veículo e então fazer sua proposta. Vale lembrar que o carro é sempre um “componente dramático” utilizado pelo diretor em seus filmes, como no caso do filme O vento nos levará, de 1999.
Três pessoas aceitam o convite de adentrar no veículo: um jovem soldado curdo, um seminarista afegãoe um velho professor turco. O primeiro, mais silencioso, sente-se desconfortável com a conversa e depois foge; o segundo, muçulmano, recusa a proposta por razões religiosas. O terceiro acaba aceitando para ajudar um filho doente, mas faz um longo discurso contra o suicídio. Tenta convencer a Badii que a decisão tomada por ele não seria a melhor solução. Diz a ele que o sabor de cereja o impediu em circunstância anterior de realizar tal ato.
Um dado que impressiona o espectador é a presença contínua do carro que anda pelas estradas tortuosas das redondezas de Teerã, por paragens pedregosas. A trilha sonora é praticamente o som do carro em movimento, naquele cenário tortuoso de aridez e poeira. Isso durante todo o tempo. E o motorista, Badii, com sua face amargurada, fixado em seu objetivo de dar cabo à vida.
É no automóvel que se passa grande parte do filme, na estrada. É no interior do carro que Badii
“procura seus eventuais cúmplices, expõe seus planos (instruindo-os sobre a empreitada), solicita ajuda, ouve resistências e conselhos. Em um país em que o direito de expressão é ainda cerceado pelas tradições político-religiosas e o universo privado ainda é extremamente desconhecido (ao menos no Ocidente), Kiarostami se aproveita do automóvel como ponte de ligação entre os universos público e privado.”
Essa ponte entre o público e o privado manifesta-se na brecha que deixa o vidro do carro semi-aberto em todo o trajeto. Um sinal que faculta ver o que se passa fora do veículo, sem deixar de refletir o drama vivido em seu interior. É o confronto entre o “lá fora” e o “cá dentro”, o público e o privado.
O cenário é inóspito, duro, como as pedras e a poeira do terreno. Há poucas árvores, mas belas. Em algumas passagens, elas revelam suas cores vivas em contraste com a rústica paisagem. Segundo Mesquita, numa resenha sobre o filme, “é justamente no ´adentrar` a esfera privada que Kiarostami abre as portas do Irã desconhecido, vislumbrado e idealizado (...). Mais do que uma simples tarefa, o passageiro-recruta deve compartilhar do ato que cometerá o sr. Baddii. Sua procura
“é mais por um ombro complacente, alguém que divida sua angústia e, acima de tudo, endosse sua atitude. Função que vai muito além do ofício do coveiro, que poderia, com tranquilidade, executar a tarefa. É justamente na objetividade com que instruiu os passageiros, que Sr. Badii deixa vazar, em tom contraditório, toda sua subjetividade e apego no ser.”
Surpreende o espectador que, curiosamente, ao falar da busca da morte, o diretor acaba revelando para o espectador o horizonte da vida, da possibilidade de uma vida que equilibra dor e alegria. Nesse filme em particular, em vez de apontar caminhos de luz, o traço mais marcante e impactante é a amargura e a dor interior. Predomina o desencanto, mesmo com evocações bonitas, ou vislumbres de felicidade, que em certas narrativas do filme contagia o espectador. São algumas “fagulhas de esperança”.
Na resenha de Willian Bongiolo, ele sublinha que Badii sempre pergunta sobre a famílias dessas pessoas, sobre suas esposas e se gostam do trabalho: “Uma busca muito mais por uma humanidade perdida do que simples ajuda”. O filme é uma bela e forte “reflexão sobre a vida e morte. E em como nossa vida é cheia de pedras e poeira, mas que também existe nela um gostinho maravilhoso de cereja”.
Como ocorre em outros filmes do diretor, permanecem “espaços em branco” ao final da exibição. Como diz o diretor: “Eu os deixo em branco para que as pessoas preencham de acordo com o que pensam e com o que desejam”. O diretor diz numa entrevista que “nenhum filme digno do nome se completa sem a participação (criativa?) do expectador”. Os filmes de Kiarostami apontam para algo que está para além da tela, trazendo à tona experiências e sentimentos que são comuns, e que acordam no espectador diante da provocação do diretor.
Ao abordar a morte, o diretor fala sobre a vida. As estradas tortuosas por que passa aquele homem angustiado do filme são as estradas tortuosas pelas quais passamos também: as nossas difíceis escolhas. O personagem central do filme, que toma uma decisão, nos mostra que a possibilidade de viver e de como estar vivo, é escolha nossa. Somos, em verdade, donos de nossas decisões, de nossa vida, mas também de nossa morte. É o tema central do filme.
Como lembra Thalita, outra resenhista do filme, a obra do diretor “se comunica porque é capaz de falar sobre dor e alegria em um idioma em que todos nós somos fluentes: nosso interior”.
Na conversa com o seminarista afegão, o segundo que entrou no carro, há passagens interessantes na narrativa:
Badii diz a ele que sabe que o suicídio é um grande pecado, mas que estar infeliz é igualmente pecado. Relata que quando se está infeliz a pessoa acaba ferindo os outros. E indaga: “Isso também não é pecado?” Continua: “Eu acho que Deus é tão misterioso e grande que não quer ver suas criaturas sofrendo. Ele não pode querer nos forçar a viver e por isso concede essa solução ao homem.”
Após a saída do seminarista do carro, Baadi vai um pouco adiante e para num local onde tem um trator remexendo a terra. Numa bonita e forte cena, aparece a sua sombra sendo coberta pelas pedras, terras e poeira que caem, transformando o cenário. Senta-se numa pedra em meio a destroços, observando os entulhos que caem. Uma longa cena. Fica ali até que um rapaz que trabalhava no local pede a ele para retirar o carro, que estava dificultando o trabalho.
Dos três que entram no carro, o último, que é taxidermista, tem o filho muito doente, e acaba aceitando o convite, embora faça o possível para demover o motorista de sua decisão. Ele era o único dos três que passara por situação semelhante, num episódio que descreve com detalhes no filme, quando tentou se matar, mas foi salvo pelo toque nas cerejas.
Em sua fala, o professor sublinha que um dia saiu cedo de casa de carro, disposto a se matar. Levou uma corda e se dirigiu a um campo com árvores de cereja. Tentou por três vezes lançar a corda, sem sucesso. Em seguida decidiu subir na árvore, amarrar com firmeza a corda, quando então se deu o que podemos chamar de uma epifania. Ele toca sem querer em algo, que o chama a atenção. Era uma cereja. Ele então prova do fruto e se delicia. Prova mais duas cerejas, e a sensação se repete. Aquela sensação de sabor e prazer, já provoca tensão com sua decisão. O dia estava amanhecendo, e embaixo da árvore passavam crianças indo para escola. Elas o chamam para descer e também se deliciam com as cerejas. Baadi recolhe algumas e leva então para a sua mulher que dormia. O que ocorrera com ele tinha provocado uma mudança de foco, uma mudança na vida, reintegrando-o nas trilhas da existência.
Mas vale registrar algumas passagens belas da conversa do velho professor com Baadi no carro:
Ele pergunta ao sr. Badii se
“não quer mais sentir o gosto das cerejas, ou seja, das pequenas coisas que dão sentido à vida”. Ele argumenta: “Todos os homens do mundo têm problemas em suas vidas. É assim que as coisas são. Existem muitas pessoas no mundo. Não existe uma família sem problemas... Eu não sei seu problema, caso contrário poderia ajudar melhor.”
Ele continua, citando um exemplo tomado de uma piada turca:
“Quando um turco vai ao médico ele diz: quando toco meu corpo com meu dedo dói. Quando eu toco minha cabeça, dói, minhas pernas, dói. Minha barriga, minha mão, dói. O médico examina e diz a ele: seu corpo está bem, mas seu dedo está quebrado. Meu querido, sua mente está boa. Não tem nada de errado com você. Mude o foco.”
E o turco no carro continua:
“Eu saí de casa para me matar, mas uma cereja me salvou. Uma cereja comum e sem importância... E segue na conversa: “O mundo, não é da forma como você vê. Você tem que mudar o foco e mudar seu mundo. Seja otimista! Olhe as coisas positivamente. Você é uma prioridade. Por causa de um problema pequeno você quer cometer suicídio. Por um único problema... A vida é como um trem que continua se movimentando. Então chega ao fim da linha, ao terminal. E a morte espera no terminal.” Reconhece que a morte é uma solução, “mas não a primeira, não durante a juventude”.
E segue com sua argumentação:
“Você perdeu toda a esperança? Você já olhou para o céu, quando acorda? Ao amanhecer, você quer ver o sol nascendo? O sol vermelho e amarelo, quando se põe? Você já viu a lua? Você não quer ver as estrelas? A lua cheia no céu? Você não quer ver? Você quer fechar os olhos? As pessoas do outro lado gostariam de dar uma olhada aqui, e você quer correr para lá... Você não quer beber água da nascente de novo? De lavar o rosto naquela água?Se você olhar para as quatro estações... cada estação traz frutas. No verão tem frutas, no outono também. O inverno traz frutas diferentes e a primavera também. Nenhuma mãe pode fazer tanto para seus filhos como Deus faz pelas suas criaturas. Você quer recusar tudo isso? Você quer desistir de tudo isso? Você quer desistir do gosto de cerejas? Não, eu sou seu amigo. Estou te implorando...”
O filme segue então para seus momentos finais. Mas o espectador percebe que a fala do professor toca Badii de forma diversa da fala dos outros. Dá para se perceber isso claramente no filme, através da observação das expressões de seu rosto, diante da fala emocionada do velho professor. Quando os dois se despedem, Baadi retoma com o professor o trato, e ele mantém sua palavra. Um pouco depois, Baadi, num gesto de impaciência, vai ao Museu Natural onde tinha deixado o professor, e encontra-se novamente com o professor, insistindo com ele para verificar na manhã seguinte se realmente estava morto.
As cenas que se seguem são incompletas. A câmara acompanha Baadi no anoitecer fazendo alguma coisa em sua casa, providenciando algo. As luzes da casa então se apagam e ele se dirige de taxi para o local em que faria o suicídio. Ele chega ali no monte, junto da cova, fuma um cigarro e depois se deita no buraco, com os olhos voltados para cima. Nesse momento, o tempo começa a mudar, anunciando chuva. Os clarões dos relâmpagos iluminam a cena, com a câmara focada no rosto atônito de Baadi no buraco. Daí em diante, não se sabe mais nada.
No final, vemos a equipe de filmagem, e um grupo de soldados que fazem exercício. Junto à equipe, o diretor do filme e também o ator que interpreta o personagem Baadi. Como ocorre com os filmes de Kiarostami, fica para o espectador a conclusão sobre o desfecho. Mas, quem sabe, aquela faísca dos relâmpagos não tenha exercido um efeito semelhante ao das cerejas no velho professor. Isto me fez lembrar um conhecido haikai de Bashô, que dizia:
“Como é admirável
Aquele que não pensa: ´A vida é efêmera`
Ao ver um relâmpago”
.....
Abbas Kiarostami. Nuvens de algodão. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
Franthiesco Ballerini. História do cinema mundial. São Paulo: Summus Editorial, 2020, p. 216.
O filme foi premiado em Cannes como vencedor da Palma de Ouro, na edição de número 50, em 1997, mas quase foi impedido de ser exibido por pressão das autoridades iranianas.
Raphael Mesquita. Contracampo: