segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A literatura e os limites do humano

 A literatura e os limites do humano

 

Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

Tenho acompanhado com muito carinho a produção e reflexão de Evando Nascimento, que foi professor aqui em Juiz de Fora no Departamento de Letras. O seu livro sobre Clarice Lispector (Clarice Lispector: uma literatura pensante) foi fascinante para mim. Uma leitura essencial para tratar desse candente tema da literatura e animalidade. 

Já ali pude perceber a visão cristalina de Evando que, a partir de Clarice, levanta sérios questionamentos aos limites do humano. Apresenta a questão da animalidade, do não humano, como passo essencial para a ultrapassagem das barreiras impostas pela civilização ocidental no seu afã de progresso e desenvolvimento. Para Evando, com razão, a literatura de Clarice volta-se para uma "zoografia ficcional" em que coloca em questão os limites da tradição humanista.

Em Água viva, por exemplo, Clarice fala em apelo ou chamado. Clarice sublinha que "não ter nascido bicho" é sua "secreta nostalgia". Na obra "Paixão segundo G.H." ela responde ao chamado, em passagem maravilhosa:

"Como se uma mulher tranquila tivesse simplesmente sido chamada e tranquilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra - abandonando su
avida, renegando bordado, amor e alma já feita - sem uma palavra essa mulher se pusesse calmamente de quatro, começasse a engatinhar e a se arrastar com olhos brilhantes e tranquilos: é que a vida anterior a reclamara, e ela fora".

Também Guimarães Rosa, em página sublime, fala do onceiro que se vê chamado à origem e vai se transformando em animal. Isto está no esplêndido conto Meu tio Iauaretê, de "Estas histórias". O onceiro foi sendo tomado pela "vontade doida de virar onça", e vai sentindo aquela câimbra estranha, que tomava o corpo todo. Aquela onça que urrava calada dentro dele. E de maneira extraordinária relata que a onça só pensa numa coisa: "Que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar". Ela pode até sair de sua tranquilidade, quando irritada, mas depois, quando tudo fica quieto novamente, ela "torna a pensar igual, feito em antes...". 

Em entrevista publicada no O Globo, de 26/11/21, Evando Nascimento,  sublinha que "a verdadeira inteligência hoje está no modo como nos relacionamos com as alteridades vizinhas, plantas e animais", todos colaborando para a nossa sobrevivência.

O autor reivindica o "lugar da fala" para os vegetais, rompendo com a imagem tradicional que os aprisiona na ideia de "cidadãos de terceira classe entre os viventes". O próprio verbo "vegetar" vem utilizado ironicamente para traduzir "uma vida em estado mórbido ou de coma".

Evando tece uma violenta crítica a Bolsonaro, que disse nesses tempos não se interessar por índio, nem pela "porra da árvore", mas, sim, ao garimpo. Para Evando, trata-se da mais violenta forma de "fitofobia", que cresce em determinados setores do agro-negócio.

O escritor fala da "virada animal" que ocorre em tempos recentes, e agora na "virada vegetal", que é inclusive o tema da FLIP 2021. Evando nos diz ser impossível retornar ao estado antropocêntrico anterior. Há algo de novo e urgente em curso. Sublinha que "o antropocentrismo que rege nossas vidas humanas foi posto em questão". Livros como os de Davi Kopenawa e Ailton Krenak são exemplos vivos dessa nova reflexão, reanimada pelo animismo.

Sublinha ainda, com razão, que "nas próximas décadas, todos esses saberes não ocidentais que foram sempre reprimidos, vão ter grande influência para as humanidades". 

Evando fala de autores importantes que tocam nessa essencial questão da "virada vegetal", como o botânico italiano, Stefano Mancuso. Assinala: "O rebaixamento ocidental em relação às plantas, o que chamo de fitofobia (horror ou desprezo pelas plantas) é estrutural e narcisista: elas não se parecem conosco, portanto achamos que não têm propriamente vida nem muito menos inteligência".

Muito rica a citação que o escritor faz de Anthony Trewavas, um cientista britânico, que identifica a inteligência como a "capacidade de adaptação e de sobrevivência". Enquanto os humanos foram "perdendo" sua inteligência a partir do advento da revolução industrial, assumindo a função de predadores do mundo animal, vegetal e mineral, as plantas revelam, ao contrário, uma impressionante capacidade de adaptação e reprodução.

 

domingo, 21 de novembro de 2021

Um outro olhar sobre os pentecostais: um desafio para o nosso tempo

 Um outro olhar sobre os pentecostais: 

um desafio para o nosso tempo

 

Faustino Teixeira

PPCIR/ IHU/ Paz e Bem

 

Tenho muita dificuldade de fazer reflexões generalizadas sobre os pentecostais. Talvez em razão de minha sensibilidade antropológica gosto sempre de relativizar opiniões que envolvam convicções cerradas. 

 

Na minha experiência junto ao ISER e com os amigos antropólogos, aprendi desde cedo a buscar entender as razões que estão presentes no mundo pentecostal, sobretudo na experiência espiritual dos fieis, mais do que dos pastores. 

 

Inaugural foi a dissertação de mestrado no Museu Nacional de minha amiga querida, Regina Novaes, ao fazer um lindo trabalho sobre uma Assembleia de Deus no Nordeste, sendo pioneira na relativização da ideia de "alienação decorrente do proselitismo religioso" nas igrejas pentecostais. Foi extremamente rica sua pesquisa, falando sobre a "contaminação da área dos direitos trabalhistas e dos direitos pela posse e uso da terra por categorias religiosas"[1]. Quebrava-se, assim, uma ideia recorrente no meios acadêmicos tradicionais.

 

A mesma Regina, em outro trabalho importante - publicado no livro "Religião e cultura popular" (2001), volta a relativizar esse paradigma que encerra o pentecostalismo no universo conservador. Vai sublinhar, com muito pertinência, o papel dos pentecostais numa fundamental rede de sociabilidade e de ajuda mútua. Mostra igualmente a presença dos pentecostais em rincões que não foram atingidos pela pastoral católica, ali onde estão os mais pobres dos pobres:

 

Várias pesquisas já demonstraram que são os evangélicos os que mais chegam nas margens da sociedade. Chegam a lugares de onde nenhuma outra instituição civil ou religiosa ousa se aproximar. Estudos demonstram também que são apenas eles que – ao fazer nascer novas e independentes denominações – provocam dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo[2].

 

O historiador Marcos Alvito comenta também essa capacidade dos pentecostais avançarem para “dentro da favela”, com dizem eles, ou alcançarem “as vielas mais recôndidas e as áreas mais pobres”[3]. Diz ainda que é nos cultos “que se reconstrói o significado de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal”[4]. Muito rica também a descrição feita pelo autor no livro sobre o carisma de uma liderança pentecostal, que em culto ecumênico realça o papel de um "exército de anjos" que protegem os quatro cantos de Acari[5]. Trata-se de uma descrição de beleza única.

 

Beleza que também percebi no filme "Santa Cruz", de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa, abordando o nascimento e desenvolvimento de uma pequena comunidade pentecostal na periferia do Rio de Janeiro. O retrato que ele passa dos pentecostais vem tecido por um enorme respeito, no sentido de uma ressignificação do sujeito empobrecido pela experiência espiritual. Em artigo que publiquei sobre os pentecostais na Revista Concilium em 2014, caminhei nessa direção alternativa e sublinhei a importância desse filme: 

 

O filme quebra, assim, a imagem de certas representações correntes sobre o pentecostalismo, apontando caminhos novos de interpretação, favorecendo um olhar internalista e compreensivo sobre esse complexo fenômeno. Possibilita, em verdade, um olhar sobre o potencial da igreja em “formar comunidade moral e rede de ajuda mútua”. Como se a experiência comunitária “preenchesse aos poucos um espaço vazio”, de baixo potencial de dignidade. O filme busca retratar os três primeiros meses da comunidade e as mudanças suscitadas pela nova igreja: “A integração promovida pela igreja criou amizade entre os vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e ´preenchendo` de relações positivas o bairro antes ruim, ´terra de ninguém` , vazio civilizatório.”[6]

 

O mesmo se dá no livro de Richard Shaull e Waldo Cesar sobre a Igreja Universal do Reino de Deus: "Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs" (1999). Em linha de descontinuidade com a bibliografia dominante sobre o tema, eles buscam mostrar com muita riqueza o significado da experiência espiritual no mundo pentecostal. O texto de Richard Shaull no livro tem o título bem singular: Reconstrução da vida no poder do Espírito. Sublinha que a experiência espiritual dos pentecostais com o poder do Espírito, faculta-lhe uma “confiança” essencial, que é libertadora. Tomados pelo Espírito “anunciam o amor de um Deus cheio de graça, que deseja que eles tenham, aqui e agora, uma vida plena, bem como a presença do Espírito Santo com poder, para dar vida àqueles a quem ela havia sido negada”[7].

 

Sinalizo a presença em curso de estudos de teólogos singulares no mundo evangélico que vêm apontando com pertinência a singularidade da pneumatologia pentecostal. Cito aqui os nomes de Bernardo Campos, Allan Anderson e o bispo metodista Paulo Ayres. Aconselho a leitura do precioso artigo de David Mesquiati de Oliveira, publicado na revista Perspectiva Teológica (2020) sobre a Pneumatologia[8].

 

Há também o premiado livro de Maria das Dores Campos Machado, "Carismáticos e pentecostais" (1994), onde aborda o processo de conversão e adesão ao pentecostalismo. Como novidade, a reflexão de como o ingresso no mundo pentecostal envolve um novo posicionamento do fiel na vida familiar, bem como na organização pessoal da vida, em termos de harmonia e integração. Um exemplo trabalhado pela autora no livro refere-se à interpretação conferida pelos pentecostais aos problemas domésticos. Os comportamentos desviantes, como a traição, a agressão física, o recurso às drogas e ao álcool são interpretados como uma “crise espiritual”, ou mesmo uma possessão demoníaca. Os desvios que ocorrem deixam de ser atribuídos às pessoas concretas e interpretados como uma possessão do demônio. Com isso tira-se o peso da moralidade pessoal nos problemas que causaram a tensão familiar. Em casos concretos, a conversão acaba exercendo um papel de asseguramento das relações.[9]

 

É o que indica igualmente Cecília Mariz, em vários trabalhos sobre o tema, tratando sobretudo a questão dos pentecostais e a reabilitação do mundo pessoal, na superação da dependência de drogas. Em entrevista concedida por essa pesquisadora ao IHU-Online, em 17 de maio de 2010 ela assinalou:  “Em pesquisa sobre o tema, notei, em um bairro de camada popular, que, em 1/4 das famílias se relatava problemas de alcoolismo, e em 1/3 se afirmava já ter tido esse problema no passado. Também notei que, nesse bairro, a população em geral das diversas religiões percebia que a conversão a uma igreja pentecostal seria talvez a forma mais eficaz para deixar a bebida”[10].

 

Em artigo conjunto de Cecília Mariz e Maria das Dores, em livro organizado por Pierre Sanchis ("Fieis e Cidadãos" - 2001), elas sublinham o importante papel das igrejas pentecostais no campo da assistência social, colocando em suspenso "uma série de estereótipos criados para os pentecostais (apolíticos, apartados do mundo, conformistas, fundamentalistas etc.)"[11]

 

O antropólogo Ronaldo de Almeida é outro autor que pondera suas reflexões sobre o tema de forma mais compreensiva, sublinhando o traço comunitário das comunidades pentecostais, no importantes estabelecimento de “vínculos sociais que atenuam a situação de vulnerabilidade sociais das camadas mais pobres”, a “fluidez nas relações comunitárias” com os singulares “circuitos de relações com um perfil mais comunitário construídos em torno dos templos e redes familiares e de vizinhança”, sem deixar de recorrer amplamente, cada vez mais, aos caminhos mediáticos[12].

 

Certa vez, fui convidado pela revista Concilium para escrever um texto crítico ao pentecostalismo, onde pudesse assinalar a temática do mercado[13]. Contrariando expectativas, construí um texto em direção diversa, mostrando os traços positivos presentes no mundo pentecostal, citando inclusive uma reflexão muito bonita de Jurandir Freire Costa a respeito do "dom" no mundo pentecostal. Para ele

 

Os pastores vendem a salvação no céu e o enriquecimento na Terra, mas os crentes não estão necessariamente “comprando” uma mercadoria, como a lógica do mercado leva a interpretar. Estão “dando” qualquer coisa; estão participando com dinheiro para uma “causa”.

 

No meu artigo publicado na revista internacional de teologia, Concilium, indiquei que 

 

a lógica que move o fiel é bem diversa da lógica engessada que domina o pastor, cujo carisma perde o seu brilho em função do exercício de sua função. O carisma vem agora vinculado a uma “empresa burocrática de salvação”. O fiel comunga de outra visada. Nos gestos e práticas de sua experiência espiritual vem animado por uma perspectiva dinamogênica, para utilizar uma expressão de Durkheim. Com o exercício de seu dom, vem enriquecido na sua qualidade de sujeito.

 

Agora temos o recente livro Juliano Spyer, Povo de Deus. Quem são os evangélicos e por que eles importa (2020), com apresentação de Caetano Veloso. Segundo Caetano em seu texto, "é impossível (e indesejável) que alguém faça qualquer projeto para o Brasil sem levar em conta esse tema. E ninguém conseguirá nada se não respeitá-lo". Caetano elogia o trabalho de Spyer e enfatiza que “o clima de honestidade dos fiéis” não pode ser confundido “com descaminhos éticos de certa lideranças”[14]

 

Na visão de Spyer, a visão de muitos brasileiros escolarizados sobre os pentecostais revela um "preconceito contra pobres que não se vitimam e buscam sua inclusão social via educação e consumo". Num dos capítulos do livro, o autor aborda as consequência positivas do cristianismo evangélico e em outro o dado singular de ser hoje o pentecostalismo a religião mais negra do Brasil. Trata ainda de forma importante a presença dos evangélicos na luta pelos direitos e dignidade. Para Spyer, a igreja evangélica firma-se como “um espaço que, na localidade em que se instala, cumpre a função de estado de bem-estar social informal”[15]. O autor levanta ainda uma outra hipótese para entender a ideia de prosperidade nas igrejas neopentecostais: não se trata apenas de buscar a prosperidade econômica, mas igualmente uma vida melhor “em termo de saúde, vida familiar, afeto e também dinheiro”[16].

 

As ponderações relativizadoras de Spyer são muito importantes, o que não significa, como ele mesmo indica, que um olhar de dentro livre os pesquisadores de exercício crítico do “projeto de poder dessas igrejas”. Sobre isso ele trabalhou  na última parte de seu livro, dedicada à instrumentalização da fé.

 

Em artigo recente, Frei Betto fez um elogio ao livro de Juliano Spyer, mostrando a sua importância atual. O livro também agradou muito a Lula, que aparece em fotos na rede mostrando o livro. Falando sobre o tema Betto sublinha:

 

Aliás, essas Igrejas têm muito a ensinar aos católicos em matéria de ´comunhão, participação e missão`. A madame vai à missa; a faxineira dela, ao culto. E os preconceitos católicos, outrora focados nos espíritas e ateus, agora se voltam aos evangélicos, como se todos fossem fundamentalistas. Recomendo, como excelente antídoto ao preconceito, o livro de Juliano Spyer, ´Povo de Deus – quem são os evangélicos e por que eles importam` (SP, Geração, 2020)[17].

 

No show “Ofertório”, de Caetano Veloso com os filhos, ele aborda em certo momento a questão da religiosidade de Tom, Zé e Moreno, os dois primeiros filhos desde cedo na Igreja Universal do Reino de Deus e Moreno no Candomblé, com abertura ecumênica significativa[18]. O compositor baiano retoma o tema em conversa com Nelson Mota[19], sinalizando uma posição de profundo respeito à diversidade religiosa e de convicções vivida em família. O mais impressionante é ver Caetano cantar a música “Ofertório”, que fez em homenagem à sua mãe, e sua capacidade de, mesmo agnóstico, conseguir compor uma canção de religiosidade esplendorosa:

 

Tudo que por ti vi florescer de mim

Senhor da vida

Toda essa alegria que espalhei e que senti

Trago hoje aqui

Todos estes frutos que aqui juntos vês

Senhor da vida

Eu em cada um deles e em mim

Todos teus fiéis, ponho a teus pés

 

Consentistes que minha pessoa

Fosse da esperança um teu sinal

Uma prova de que a vida é boa

E de que a beleza vence o mal

Tudo que se foi de mim, mas não perdi

Senhor da vida

Os que já chorei e os que ainda estão por vir, oferto a ti[20]

 

 O tema reaparece  em canção presente em seu último CD, Meu coco,  quando numa estrofe canta:

 

Católicos de axé e neopentecostais
Nação grande demais para que alguém engula[21].

 

            Os estudos sobre pentecostais e neo-pentecostais no Brasil não podem se furtar de lidar com toda a complexidade que envolve a questão, com os distintos filamentos que provocam um olhar mais aguçado e atento sobre um dos fenômenos mais significativos das últimas décadas no Brasil e América Latina. Tem razão Peter Berger em sublinhar que “não há razão alguma para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso que o mundo de hoje”. E exemplifica esse ressurgimento do religioso em duas grandiosas mobilizações que se irradiam em nosso tempo: a presença do islamismo, que institutos de pesquisa indicam que dobrará nas próximas décadas, alcançando a cifra de 2,76 bilhões de pessoas; e a pujança evangélica, também com irradiação ampla em termos mundiais[22].



[1]Regina Reyes Novaes. Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores & cidadania.Cadernos do ISER, 19. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

[2]Regina Reyes Novaes. Pentecostalismo, política, mídia e favela. In: Victor Vincent Valla (Org). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 69.

[3]Marcos Alvito. As cores de Acari. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2001, p. 166.

[4]Ibidem, p. 179.

[5]Ibidem, p. 193.

[6]Faustino Teixeira. O Deus da prosperidade: desconstruindo imagens. Concilium, n. 3, 2014 (Cristianism:o, consumismo e mercado). Ver também: Cláudio Mesquita. Santa Cruz, de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa. O mundo preenchido. Sexta Feira, n. 8, 2006, p. 178.

[7]Waldo Cesar & Richard Shaull.Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1999, p. 194.

[8]David Mesquiati de Oliveira. Pneumatologia como característica do ser cristão. Perspectiva Teológica, v. 52, n. 2, maio-agosto de 2020. Há no artigo uma boa bibliografia a respeito:

https://www.scielo.br/j/pteo/a/rwcGGmnjrCcQnfzZDXLv5Vv/?lang=pt(acesso em 21/11/2021)

[9]Maria das Dores Campos Machado. Carismáticos e pentecostais. Adesão religiosa na esfera familiar. Campinas: Editora Autores Associados, 1996, p. 108-112.

[11]Cecília Loreto Mariz & Maria das Dores Campos Machado. Encontros e desencontros entre católicos e evangélicos no Brasil. In: Pierre Sanchis (Org). Fiéis e Cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 99.

[12]Ronaldo de Almeida. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 121. 

[13]O artigo foi citado na nota 1.

[14]Juliano Spyer. Povo de Deus. Quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 12-13.

[15]Juliano Spyer. Povo de Deus, p. 114.

[16]Ibidem, p. 136.

[17]Frei Betto: Tem futuro a Igreja Católica? In: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/613748-tem-futuro-a-igreja-catolica(acesso em 21/11/2021). Também o artigo de Samuel Pessôa, na Folha de São Paulo, elogiando o mesmo livro: Povo de Deus. Folha de São Paulo, 20 de novembro de 2021: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2021/11/povo-de-deus.shtml(acesso em 21/11/2021).

[18]O show Ofertóriorodou o Brasil e o exterior e em maio de 2018 apareceu em CD e DVD.

 

[21]Canção Meu coco, presente no álbum de mesmo nome, produzido em 2021.

[22]Peter L. Berger. Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001, p. 21-24.

sábado, 20 de novembro de 2021

A Juventude: reflexões sobre um filme de Paolo Sorrentino

 A Juventude: Reflexões sobre um filme de Paolo Sorrentino

 

Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

 

Estamos diante de um filme magnífico, a meu ver, que aborda questões fundamentais da vida humana, de modo particular a questão da felicidade. Sua estreia se deu no Festival de Cinema de Cannes, em maio de 2015. O filme ganhou 12 prêmios em festivais onde foi apresentado, sendo a música Simple Song[1], que aparece ao final do filme, indicada ao Oscar de melhor canção original. Houve ainda a indicação ao Globo de Ouro para a melhor atriz coadjuvante (Jane Fonda) e melhor canção. Posso ainda registrar a beleza da fotografia, a cargo de Luca Bigazzi.

 

Podemos aqui fazer menção a um tema freudiano, como lembra Lucia Sivoletta Wendlig, abordando o filme em Crônicas Cariocas em abril de 2016[2]: será o ser humano alguém fadado à felicidade? Na verdade, há como contraponto, o princípio realidade, que barra qualquer hipótese de uma felicidade completa, mas que é sempre parcial. O mundo real não consegue satisfazer nossos desejos.

 

Ser ou não feliz, é um tema recorrente no filme. 

 

Tive acesso ao roteiro, que foi publicado em livro na Itália, em 2015. Temos ali todas os momentos e falas do filme, que são muito significativos[3].

 

O roteiro é simples: somos apresentados a dois personagens que se encontram à beira dos oitenta anos, amigos de longa data: Fred Ballinger (Michael Caine) e Mick Boile (Harvey Keitel). O primeiro é um compositor e maestro aposentado, autor de uma linda e reconhecida composição: Canção simples (Simple song); o segundo é um bem sucedido cineasta, decidido a fazer um último filme, que seria o seu testamento.

 

Os dois estão num idílico e luxuoso Spa no pé dos alpes, na Suiça, entre paisagens maravilhosas. Com eles, outros personagens diversos: pessoas de idades e objetivos diversos: Lena Ballinger (a filha e secretária de Fred – que vinha de um casamento rompido com Julian[4]); Jimmy Tree (Paul Dano), um jovem ator, que ficou conhecido por representar Mister Q (um robô de ferro, cuja armadura pesava noventa quilos, e sua face quase não era vista); um ex-jogador argentino de futebol (uma paródia com Maradona)[5]; uma atriz famosa mas decadente (Brenda Morel – interpretada por Jane Fonda); um professor de alpinismo (Luca Moroder, interpretado por Robert Seethaler); uma linda miss Universo (Madalina Diana Ghenea); e uma cantora inglesa (Paloma Faith).

 

Os dois amigos recordam naquele lugar paradisíaco passagens da vida, da infância. Fazem igualmente planos para o futuro. O filme lança para todos os que o assistem a delicada questão do legado que deixamos para os outros na vida. Em certos momentos do filme fica a sugestão de que a obra que fizeram firmou-se como mais importante do que aquilo que “conseguiram fazer de suas vidas”[6]. A expressão NOSTALGIA talvez consiga dar um significado mais preciso ao filme: do grego nostós= regresso ealgoz= dor.

 

Temos também a temática da passagem do tempo, como numa frase da tradição budista: “Tudo muda. Tudo aparece ou desaparece”; ou então Rilke: “O que é nosso flutua e desaparece” (Segunda Elegia de Duíno)

 

Há ainda a questão do preconceito: a visão preconceituosa do jovem ator com respeito à miss universo[7]ou da filha do compositor com respeito ao professor de alpinismo. Essa questão foi apontada com presteza por Alessandra Ogeda em sua resenha do filme[8].

 

Sorrentino é um diretor muito influenciado por Fellini, e vemos no filme passagens que lembram o grande diretor italiano, sobretudo Oito e Meio.

 

Pontuando algumas cenas do filme:

 

1. Uma reflexão sobre a amizade. Em momento do filme, num encontro de Lena com Mick, ela estranha o fato do cineasta não estar sabendo de determinado detalhe de posicionamento de seu pai, o compositor. Considera estranho haver certo recato na intimidade entre os velhos amigos, e diz: “Que estranha amizade, a de vocês”. E ele responde com tranquilidade: “Nas belas amizades o que dizemos são apenas as coisas belas”[9].

 

2. O tema da juventude. É memorável a cena em que os dois amigos, num passeio no hotel, assistem um jovem a passar rapidamente com sua moutain bike, numa roda só, em ousado procedimento na inclinada rampa da estrada, com energia fantástica. 

 

Mick fala ao amigo que não se lembra mais de quase nada, nem mesmo de seus pais ou de sua infância. Mas lembra-se do dia em que aprendeu a andar de bicicleta. E que felicidade (mesmo assim como algo tão banal). E diz que pela manhã tinha se recordado de outra coisa... e o amigo Fred adivinhou: o dia em que caiu da bicicleta. E justificou o porque adivinhou: “Porque isto se dá com todos. Aprende a fazer uma coisa, fica feliz, e acaba por esquecer de frear”[10].

 

Há também o “clima de alegria”, como na exemplar cena em que o velho compositor Fred rege, no meio das árvores, um coral de vacas. É uma cena única: com gestos de delicadeza das mãos ele vai regendo, sentado num tronco, e ao som dos sinetes das vacas juntam-se o som das cigarras e dos pássaros. Com muita doçura ele fecha os olhos e admira aquela sensação maravilhosa = uma sinfonia da natureza. Como diz o roteiro, é a primeira vez no filme em que o compositor aparece como alguém feliz. Compondo mentalmente, ele seleciona os rumores que estão à disposição e se percebe regendo maravilhosamente[11].

 

E a cena mais ao final, quando o médico do Spa diz a ele que seus exames estão perfeitos, e que não tem problema algum na próstata: “O senhor está tão sadio como um peixe”. E indica para ele o que o aguarda fora dali: “A juventude”[12]. Mas Fred dirá ao amigo músico mais adiante que ele voltaria para a sua casa, e para a rotina normal.

 

3. A diferença do olhar entre as pessoas: exemplificada no olhar que a filha Lena reflete sobre o seu pai, e a reação deste ao falar da questão para a mulher internada numa clínica privada:

 

A filha lamenta o fato do pai só ter pensado na música. Nada mais havia na sua vida. O que devia imperar era apenas o silêncio: o silêncio para ajudar a inspiração; o silêncio para descansar. E também a aridez: nada de carinho ou abraço, nem um beijo sequer. E a filha continua: “Não conseguiste a cura de teu sofrimento”. Até hoje sequer conseguiu levar flores para a mulher, internada numa clínica em Veneza. E ainda: “Queria ser Stravinskij, mas não tinha um milésimo de seu gênio”[13].

 

Durante o filme, ela fica comovida de presenciar uma cena amorosa de seu pai, um carinho enquanto “fingia” dormir. Isto pela primeira vez na vida[14].

 

Fica também emocionada por ter presenciado uma fala de seu pai com o emissário da rainha, quando disse a ele que não queria mais reger sua música, pois só mesmo sua mulher seria capaz de ser a soprano. A filha diz: “Ele demorou oitenta anos para dizer uma coisa romântica”[15].

 

E o olhar do pai, quando visita sua mulher, já ao final do filme, na clínica em que está internada. Ele diz: “Melanie, os filhos não sabem. Não conhecem as coisas dos genitores (...). Não podem saber . Não sabem como tremi pela primeira vez que te vi no palco (e a orquestra ria reservadamente)”. Eles, os filhos, não sabem como você me amou e como eu te amei. Eles não sabem o que fomos eu e tu, não obstante tudo...”[16]. Em outro momento do filme, diz ao amigo Mick que aquilo que faltava em sua vida agora era a sua mulher Melanie.

 

E a mulher ali no quarto, sem voltar o olhar para o marido, imóvel junto à janela, com o olhar destruído pela doença[17].

 

4. A nervura central da questão da morte: a questão fundamental não é simplesmente deixar a memórias aos que ficam, transmitir o saber... Tudo isso acaba por escamotear o único problema, que é a morte, assim tão vizinha (palavras de Fred a Mick)[18].

 

Em certo momento, o cineasta sublinha: “A maior parte dos homens morrem não só sem testamento, mas morrem sem que ninguém se dê conta”[19].

 

E o maestro assiste sem conseguir reagir à morte suicida do amigo já ao final do filme, depois que ele recebeu a negativa da personagem querida por ele para concluir o seu filme. Num encontro entre os dois no hotel ela disse a ele: “A sua carreira terminou (...). O seu filme testamento não interessa a ninguém, arriscando colocar tudo a perder com respeito aos belos filmes que fez”[20].

 

Na dura cena do suicídio do amigo, Fred diz que volta à rotina da casa, enquanto Mick sublinha que não consegue viver com a rotina, e as emoções para ele são tudo. “Com grande simplicidade” ele se achega à janela e joga o seu corpo, sem que o amigo pudesse fazer algo para salvá-lo[21]

 

5. A irrevogabilidade da velhice: a bela cena em que Mick com uma luneta mostra a uma jovem uma montanha vista de perto (com um lado da luneta) e vista de longe (com o outro lado). Isto para expressar a diferença entre a juventude (que se vê de bem perto) e a velhice (que se vê de longe)[22].

 

Como sublinha Alessandra Ogeda, “neste filme, a reflexão maior é sobre a passagem do tempo. Sobre as características das pessoas quando elas são jovens, que tipo de olhar, percepção, sensibilidade que elas tem, e o que acontece quando elas envelhecem – muda o olhar, a percepção e tudo mais”[23].

 

6. A questão da sexualidade. Na magnífica cena em que os dois velhos amigos ficam deslumbrados com a entrada da miss universo na grande piscina da sauna, com sua beleza impressionante[24]. A beleza causa um impacto impressionante nos dois, como se estivessem diante de algo sensacional mas inatingível. Uma mulher “concebida para causar distúrbio no mundo (disagio nel mondo)”[25].

 

Há também a cena “estranha” da relação sexual do casal alemão, que durante as refeições sequer se falam, e que em determinado momento o homem leva um tapão da mulher. Depois, os velhos amigos, flagram os dois em cena escaldante no meio da floresta[26].

 

E igualmente a sensação sentida por Fred no jeito especial com que a jovem massagista toca o seu corpo. Fred pergunta a ela se ela entende tudo com as mãos e ela responde: “Se compreendem muitas coisas tocando. Mas talvez pelo fato das pessoas terem medo de tocar-se”[27]. A experiência da jovem é grande, capaz de sentir no toque o estado emocional de cada um, como ocorreu com Fred[28].

 

7. Outros detalhes: como o esfregar do papel das balas por Fred, com aquele barulho característico, como se estivesse compondo. Em certa cena, o seu velho amigo diz que aquilo que ele compõe com o papel da bala é o que de melhor fez na carreira[29]. Só na cena mais ao final, depois de visitar sua mulher, deixa de fazer isto[30].

 



[1]Toda a bela trilha sonora do filme é de autoria de David Lang.

[3]Paolo Sorrentino. La giovinezza. 2 ed. Milano: Rizzoli, 2015. Grande parte de minha reflexão foi inspirada nesse livro.

[4]Ele, Julian, filho do velho cineasta Mick, tinha arrumado uma amante e dizia que ela era boa de cama. Isso irá irritar profundamente Lena quando soube disso pelo pai no hotel: Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 69.

[5]Sempre citado no roteiro como o obeso sul-americano. Em determinado momento do filme, o cineasta Mick sublinha que aquele sul-americano tinha sido “o último, verdadeiro, autêntico mito na Terra”: Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 56.

[7]Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 118-119.

[9]Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 144.

[10]Ibidem, p. 89.

[11]Ibidem, p. 44-45.

[12]Ibidem, p. 179.180.

[13]Ibidem, p. 72.

[14]Ibidem, p. 144.

[15]Ibidem, p. 144.

[16]Ibidem, p. 184.

[17]Ibidem, p. 183 e 192.

[18]Ibidem, p. 115-116.

[19]Ibidem, p. 166.

[20]Ibidem, p. 158

[21]Ibidem, p. 173.

[22]Ibidem, p. 101.

[24]Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 151.

[25]Ibidem, p. 152.

[26]Ibidem, p. 52, 79 e 91.

[27]Ibidem, p. 98.

[28]A mesma massagista aparece em outros momentos do filme em cenas lindas de dança, como exemplares movimentos plásticos. 

[29]Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 150.

[30]Ibidem, p. 149 e 186.

domingo, 14 de novembro de 2021

O antropocentrismo em questão

 O antropocentrismo em questão

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

 

            Nós cristãos fomos plasmados numa perspectiva de pensamento que coloca o ser humano como eixo do universo e Jesus Cristo como horizonte singular de sentido. Há uma perspectiva teleológica predominante em nosso pensamento, com influxos decisivos de autores, como Teilhard de Chardin, que por meio de uma visão pautada numa ideia de complexidade-consciência, entende a evolução como inclinada para a coroação humana e crística. Segundo Teilhard, todo o universo é cristificado. Assinala em sua obra O coração da matéria, que o Cristo da revelação não é senão o ponto ômega da evolução(CHARDIN, 2007, p. 78). Fala ainda num “Cristo total” que revelará seu rosto final no término da evolução universal (CHARDIN, 1993, p. 123).

 

            É difícil encontrar nos circuitos da reflexão cristã aqueles que conseguem dar um salto para além do antropocentrismo, em razão dos densos influxos que condicionaram a visão cristã nesse sentido. Se observarmos com cuidado o pensamento do papa Francisco, mesmo em sua arrojada carta encíclica, Laudato si,  sobre o cuidado da casa comum (2015), constatamos a manutenção de um antropocentrismo cristão. É verdade que ele faz uma dura crítica ao que chama de “antropocentrismo desordenado” ou “excesso antropocêntrico”[1], mas mantém vivo o antropocentrismo cristão, reconhecendo o ser humano como   “administrador responsável” da criação (LS 116). Acrescenta que essa consideração de um valor peculiar do ser humano na antropologia cristã, situa-o “acima das criaturas” (LS 119). Francisco fala na necessidade de uma adequada apresentação da antropologia cristã, colocando o ser humano numa posição de irmandade e não de “domínio sobre o mundo”, mas traços de ambiguidade permanecem vigentes. Já é, sem dúvida, um passo importante na trajetória exclusivista que envolveu a visão cristã ao longo dos séculos. 

 

            No âmbito da antropologia, esta centralidade humana já vem sendo interpelada há um bom tempo. Temos o exemplo do pensamento de Lévi-Strauss, que a partir de sua experiência etnográfica passou a questionar duramente a separação do ser humano de sua matriz natural, levantando pesadas críticas ao pensamento antropocêntrico da modernidade. Tal separação, sublinha Lévi-Strauss, ocasionou a promoção do humano a um lugar definitivo de verdade, suscitando um “humanismo pervertido, que, instalando fronteiras entre a humanidade é o resto do vivo (reinos animal e vegetal), inaugurou um ´ciclo maldito`” de predomínio de uma exclusividade humana (LOYER, 2018, p. 560). Trata-se, segundo o pensador francês, de um “humanismo sem restrição e sem limite”, de um “humanismo generalizado” com consequências bem visíveis em nosso tempo.

 

            Essa perspectiva restritiva esteve sempre sob a crítica dos mitos ameríndios e dos povos originários, como também lembrou Lévi-Strauss, que em suas mitológicas busca ampliar o olhar, dando espaço a uma nova e decisiva escuta do complexo pensamento ameríndio. Nos volumosos trabalhos em que se dedica ao tema, aborda com detalhes nada menos que 813 mitos  e suas variantes. Foi uma tarefa que levou cerca de duas décadas, quando Lévi-Strauss “vive parte de seu tempo na intimidade com os mitos” (LOYER, 2018, p. 498-499).

 

            Outros antropólogos virão na esteira de Lévi-Strauss, como Philippe Descola, rasgando as barreiras que separam Natureza e Cultura. Ele propõe agora uma antropologia para além do humano, onde sociedade e ambiente formam uma unidade inseparável. Recuperando uma “cosmologia naturalista”, Descola abre um decisivo espaço para a consideração da dignidade singular das criaturas nos reinos animal e vegetal. Rompendo com a ideia do ser humano como o “umbigo do universo”, o autor insere os outros seres da criação no nosso destino comum. Em suas pesquisas com os achuar, na fronteira do equador com o Peru, Descola deu-se conta da força desse pensamento originário que reconhece com naturalidade que plantas e animais “são pessoas como nós”. E explicita isso: “Os achuar dizem, de fato, que a grande maioria dos seres da natureza possuem uma alma análoga à dos humanos, que lhes permite pensar, raciocinar, ter sentimentos, comunicar-se à maneira dos humanos e, sobretudo, fazer que vejam a si mesmos como humanos” (DESCOLA, 2016, p. 13).            

 

Mais recentemente, o antropólogo Eduardo Kohn, em linha de continuidade com Descola, propõe uma antropologia para além do humano, pontuada por forte tensão com a ideia vigente da excepcionalidade, de um humano separado do resto do mundo. Num passo de ousadia, trata da questão do pensamento das florestas, com base numa ideia distinta de representação das coisas. Dando especial atenção aos sonhos dos runa puma(homens jaguares), conseguiu aproximar-se de um pensamento distinto, onde o mundo inteiro está encantado, produzindo distintas ecologias, ou melhor, uma vasta ecologia que acolhe eus diversos (KOHN, 2017, p. 40-41; 47-48; 284). No caso dos runa, a percepção de um íntimo envolvimento deles na relação com a floresta, numa vitalidade que encanta o mundo. É o mesmo encantamento que envolve os povos Yanomami no Brasil, em cuja floresta “bela e silenciosa” interagem em profunda harmonia os povos originários, os animais, a vegetação, as árvores e os espíritos (xapiri). A floresta é vista como o lugar onde brincam sem parar os xapiri, “dançando sobre seus espelhos resplandescentes” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 65). Na preciosa obra de Kopenawa e Albert, A queda do céu, abre-se o lugar fundamental de escuta aos “dizeres distantes de outras gentes e lugares”. O livro é um grito em favor da defesa de uma “ecologia inteira”, de respeito profundo ao ritmo da natureza e da alteridade. Como sublinha Kopenawa, “na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo que ainda não tem cerca” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 480).

 

Percebe-se hoje como boa surpresa, essa retomada das cosmologias antigas e suas inquietudes. É o que lembrou Bruno Latour em seu livro Enquêtes sur les modes d´existence (LATOUR, 2012, p. 452). Na verdade, como mostrou Eduardo Viveiros de Castro, no belo prefácio do livro A queda do céu, o que se percebe hoje é que tais cosmologias nos são contemporâneas, mostrando uma impressionante pertinência. É uma obra que no ajuda a discernir “a humanidade dos existentes não humanos” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 37). Como mostra Krenak, em outro trabalho, somos impelidos a proceder no mundo com uma singular reverência. Não somos melhores nem piores que as outras criaturas, mas estamos inseridos nas malhas do tempo com igual dignidade. Todos somos portadores de “direitos característicos”. Na realidade, “os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva de existência” (KRENAK, 2019, p. 32).

 

Em sua encíclica Laudato si, o papa Francisco indica que as comunidades originárias tornam-se hoje nossos “principais interlocutores” na busca de um horizonte comum e habitável. São povos para os quais a Terra não é apenas um bem econômico, mas um “dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores” (LS 146). Tudo em profunda sintonia com a Carta da Terra, apresentada na Cúpula da Terra em 1992. Falava-se ali em “reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuem para as proteção ambiental e o bem-estar humano” (BOFF, 2002, p. 154).

 

Nesse tempo do Antropoceno, que é tempo de “perturbação” do humano, onde a diversidade se vê contaminada pela ação predatória de muitos, há núcleos que reagem com “gestos barreira”, com gritos de insatisfação. São sobretudo os vetores que estão ligados aos povos de Gaia, aos terranos – para utilizar uma expressão de Latour. São segmentos que acreditam no vínculo terrenal, permanecendo “agarrados” na Terra. São, porém, incompreendidos ou ridicularizados, como no caso de Greta Thumberg. Ficaram “meio esquecidos pelas bordas do planeta, na margem dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina” (KRENAK, 2020, p. 82).

 

Essa retomada do “animismo” indígena vem provocando, em verdade, uma reanimação da própria “tradição ´ocidental` de pensamento” (INGOLD, 2015, p. 126). Vamos nos dando conta de que há vida e espírito também entre as coisas consideradas inertes. Na nova perspectiva, todos os seres participam de uma teia de significados, num “emaranhamento” vitalizado e dinamizado. Trata-se da “textura do mundo”, que é feito por “trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali”. São trilhas que expressam de forma clara que os seres não apenas ocupam o mundo, mas o habitam (INGOLD, 2015, p. 120-121). Tudo que está no tempo e no espaço é provido de movimento. Não há vida sem movimento. Isso vale para o ser humano, mas vale também para o sol, para as árvores, para o vento. O ser humano se insere na natureza, como parte do vivente, num “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente” (INGOLD, p. 12). O que nos compete é saber Ver essa dinâmica criativa, escutar o seu canto diversificado. Estar vivo é estar atento para o mundo e seus movimentos. Já dizia o mestre Dogen, no século XIII, que aquele que é destituído da capacidade de Ver o movimento das montanhas, deixa igualmente de captar o movimento de si mesmo. O movimento é o princípio essencial da vida (DOGEN, 2005, p. 103-104).

 

A antropóloga Anna Tsing, estudiosa dos cogumelos, lança um convite que é bem interessante para todos nós. Sublinha que ao adentrarmos numa floresta, devemos olhar não para frente, mas para baixo e ter a surpresa de se deparar com uma verdadeira cidade, numa “arquitetura de teias e filamentos”. Tudo está interligado, e nós também. Como mostra a autora,

 

“os fungos criam essas teias à medida que interagem com as raízes das árvores, formando estruturas conjuntas de fungos e raízes chamadas ´micorrizas`. As teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas, através de filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em emaranhados” (TSING, 2019, p. 43).

 

            Elaborar uma crítica pertinente ao antropocentrismo é, portanto, ampliar o olhar para captar uma nova dinâmica de socialidade que envolve humanos e não humanos. Compreender que estamos diante do desafio de estender a teoria social para outras formas de vida, incluindo as rochas e rios. Estamos todos enredados positivamente numa teia de “espécies companheiras”, para utilizar a expressão consagrada de Donna Haraway. E só lidando com semelhante hermenêutica que seremos capazes de ressurgir das ruínas do Antropoceno, ou pelos menos adiar um pouco mais o desenlace final. Como indicou Krenak, “a gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair (...). Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos” (KRENAK,  2019, p. 30).

 

Referências Bibliográficas

 

BOFF, Leonardo. Do iceberg à arca de Noé. Garamont: Rio de Janeiro, 2002.

CHARDIN, Pierre Teilhard de. La mia fede. Scritti teologici. Brescia: Queriniana, 1993,

CHARDIN, Pierre Teilhard de. Il cuore della matéria. 3 ed. Brescia: Queriniana, 2007.

DESCOLA, Philippe. L´ecologie degli altri. L´antropologia e la questione della natura. Roma: Linaria, 2013. 

DESCOLA, Philippe. Oltre la nature. Firenze: Seid, 2014.

DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas.São Paulo: Editora 34, 2016.

DOGEN, Maître. Shôbôgenzô. La vrai loi, trésor de l´oeil. Paris: Sully, 2005.

INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaio sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.

KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. Le Kremlin-Bicêtre: Zones sensibles, 2017.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LATOUR, Bruno. Enquête sur les modes d´existence. Una anthropologie des Modernes. Paris: La Découverte, 2012.

LOYER, Emmanuelle. Lévi-Strauss. São Paulo: Edições Sesc, 2018.

PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

TSING, Anna. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.


Publicado no IHU-Notícias: 24 de novembro de 2020

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604916-o-antropocentrismo-em-questao



 



[1]Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 116 e 119. Ao longo do texto esta encíclica virá abreviada como LS.