O antropocentrismo em questão
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Nós cristãos fomos plasmados numa perspectiva de pensamento que coloca o ser humano como eixo do universo e Jesus Cristo como horizonte singular de sentido. Há uma perspectiva teleológica predominante em nosso pensamento, com influxos decisivos de autores, como Teilhard de Chardin, que por meio de uma visão pautada numa ideia de complexidade-consciência, entende a evolução como inclinada para a coroação humana e crística. Segundo Teilhard, todo o universo é cristificado. Assinala em sua obra O coração da matéria, que o Cristo da revelação não é senão o ponto ômega da evolução(CHARDIN, 2007, p. 78). Fala ainda num “Cristo total” que revelará seu rosto final no término da evolução universal (CHARDIN, 1993, p. 123).
É difícil encontrar nos circuitos da reflexão cristã aqueles que conseguem dar um salto para além do antropocentrismo, em razão dos densos influxos que condicionaram a visão cristã nesse sentido. Se observarmos com cuidado o pensamento do papa Francisco, mesmo em sua arrojada carta encíclica, Laudato si, sobre o cuidado da casa comum (2015), constatamos a manutenção de um antropocentrismo cristão. É verdade que ele faz uma dura crítica ao que chama de “antropocentrismo desordenado” ou “excesso antropocêntrico”, mas mantém vivo o antropocentrismo cristão, reconhecendo o ser humano como “administrador responsável” da criação (LS 116). Acrescenta que essa consideração de um valor peculiar do ser humano na antropologia cristã, situa-o “acima das criaturas” (LS 119). Francisco fala na necessidade de uma adequada apresentação da antropologia cristã, colocando o ser humano numa posição de irmandade e não de “domínio sobre o mundo”, mas traços de ambiguidade permanecem vigentes. Já é, sem dúvida, um passo importante na trajetória exclusivista que envolveu a visão cristã ao longo dos séculos.
No âmbito da antropologia, esta centralidade humana já vem sendo interpelada há um bom tempo. Temos o exemplo do pensamento de Lévi-Strauss, que a partir de sua experiência etnográfica passou a questionar duramente a separação do ser humano de sua matriz natural, levantando pesadas críticas ao pensamento antropocêntrico da modernidade. Tal separação, sublinha Lévi-Strauss, ocasionou a promoção do humano a um lugar definitivo de verdade, suscitando um “humanismo pervertido, que, instalando fronteiras entre a humanidade é o resto do vivo (reinos animal e vegetal), inaugurou um ´ciclo maldito`” de predomínio de uma exclusividade humana (LOYER, 2018, p. 560). Trata-se, segundo o pensador francês, de um “humanismo sem restrição e sem limite”, de um “humanismo generalizado” com consequências bem visíveis em nosso tempo.
Essa perspectiva restritiva esteve sempre sob a crítica dos mitos ameríndios e dos povos originários, como também lembrou Lévi-Strauss, que em suas mitológicas busca ampliar o olhar, dando espaço a uma nova e decisiva escuta do complexo pensamento ameríndio. Nos volumosos trabalhos em que se dedica ao tema, aborda com detalhes nada menos que 813 mitos e suas variantes. Foi uma tarefa que levou cerca de duas décadas, quando Lévi-Strauss “vive parte de seu tempo na intimidade com os mitos” (LOYER, 2018, p. 498-499).
Outros antropólogos virão na esteira de Lévi-Strauss, como Philippe Descola, rasgando as barreiras que separam Natureza e Cultura. Ele propõe agora uma antropologia para além do humano, onde sociedade e ambiente formam uma unidade inseparável. Recuperando uma “cosmologia naturalista”, Descola abre um decisivo espaço para a consideração da dignidade singular das criaturas nos reinos animal e vegetal. Rompendo com a ideia do ser humano como o “umbigo do universo”, o autor insere os outros seres da criação no nosso destino comum. Em suas pesquisas com os achuar, na fronteira do equador com o Peru, Descola deu-se conta da força desse pensamento originário que reconhece com naturalidade que plantas e animais “são pessoas como nós”. E explicita isso: “Os achuar dizem, de fato, que a grande maioria dos seres da natureza possuem uma alma análoga à dos humanos, que lhes permite pensar, raciocinar, ter sentimentos, comunicar-se à maneira dos humanos e, sobretudo, fazer que vejam a si mesmos como humanos” (DESCOLA, 2016, p. 13).
Mais recentemente, o antropólogo Eduardo Kohn, em linha de continuidade com Descola, propõe uma antropologia para além do humano, pontuada por forte tensão com a ideia vigente da excepcionalidade, de um humano separado do resto do mundo. Num passo de ousadia, trata da questão do pensamento das florestas, com base numa ideia distinta de representação das coisas. Dando especial atenção aos sonhos dos runa puma(homens jaguares), conseguiu aproximar-se de um pensamento distinto, onde o mundo inteiro está encantado, produzindo distintas ecologias, ou melhor, uma vasta ecologia que acolhe eus diversos (KOHN, 2017, p. 40-41; 47-48; 284). No caso dos runa, a percepção de um íntimo envolvimento deles na relação com a floresta, numa vitalidade que encanta o mundo. É o mesmo encantamento que envolve os povos Yanomami no Brasil, em cuja floresta “bela e silenciosa” interagem em profunda harmonia os povos originários, os animais, a vegetação, as árvores e os espíritos (xapiri). A floresta é vista como o lugar onde brincam sem parar os xapiri, “dançando sobre seus espelhos resplandescentes” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 65). Na preciosa obra de Kopenawa e Albert, A queda do céu, abre-se o lugar fundamental de escuta aos “dizeres distantes de outras gentes e lugares”. O livro é um grito em favor da defesa de uma “ecologia inteira”, de respeito profundo ao ritmo da natureza e da alteridade. Como sublinha Kopenawa, “na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo que ainda não tem cerca” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 480).
Percebe-se hoje como boa surpresa, essa retomada das cosmologias antigas e suas inquietudes. É o que lembrou Bruno Latour em seu livro Enquêtes sur les modes d´existence (LATOUR, 2012, p. 452). Na verdade, como mostrou Eduardo Viveiros de Castro, no belo prefácio do livro A queda do céu, o que se percebe hoje é que tais cosmologias nos são contemporâneas, mostrando uma impressionante pertinência. É uma obra que no ajuda a discernir “a humanidade dos existentes não humanos” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 37). Como mostra Krenak, em outro trabalho, somos impelidos a proceder no mundo com uma singular reverência. Não somos melhores nem piores que as outras criaturas, mas estamos inseridos nas malhas do tempo com igual dignidade. Todos somos portadores de “direitos característicos”. Na realidade, “os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva de existência” (KRENAK, 2019, p. 32).
Em sua encíclica Laudato si, o papa Francisco indica que as comunidades originárias tornam-se hoje nossos “principais interlocutores” na busca de um horizonte comum e habitável. São povos para os quais a Terra não é apenas um bem econômico, mas um “dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores” (LS 146). Tudo em profunda sintonia com a Carta da Terra, apresentada na Cúpula da Terra em 1992. Falava-se ali em “reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuem para as proteção ambiental e o bem-estar humano” (BOFF, 2002, p. 154).
Nesse tempo do Antropoceno, que é tempo de “perturbação” do humano, onde a diversidade se vê contaminada pela ação predatória de muitos, há núcleos que reagem com “gestos barreira”, com gritos de insatisfação. São sobretudo os vetores que estão ligados aos povos de Gaia, aos terranos – para utilizar uma expressão de Latour. São segmentos que acreditam no vínculo terrenal, permanecendo “agarrados” na Terra. São, porém, incompreendidos ou ridicularizados, como no caso de Greta Thumberg. Ficaram “meio esquecidos pelas bordas do planeta, na margem dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina” (KRENAK, 2020, p. 82).
Essa retomada do “animismo” indígena vem provocando, em verdade, uma reanimação da própria “tradição ´ocidental` de pensamento” (INGOLD, 2015, p. 126). Vamos nos dando conta de que há vida e espírito também entre as coisas consideradas inertes. Na nova perspectiva, todos os seres participam de uma teia de significados, num “emaranhamento” vitalizado e dinamizado. Trata-se da “textura do mundo”, que é feito por “trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali”. São trilhas que expressam de forma clara que os seres não apenas ocupam o mundo, mas o habitam (INGOLD, 2015, p. 120-121). Tudo que está no tempo e no espaço é provido de movimento. Não há vida sem movimento. Isso vale para o ser humano, mas vale também para o sol, para as árvores, para o vento. O ser humano se insere na natureza, como parte do vivente, num “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente” (INGOLD, p. 12). O que nos compete é saber Ver essa dinâmica criativa, escutar o seu canto diversificado. Estar vivo é estar atento para o mundo e seus movimentos. Já dizia o mestre Dogen, no século XIII, que aquele que é destituído da capacidade de Ver o movimento das montanhas, deixa igualmente de captar o movimento de si mesmo. O movimento é o princípio essencial da vida (DOGEN, 2005, p. 103-104).
A antropóloga Anna Tsing, estudiosa dos cogumelos, lança um convite que é bem interessante para todos nós. Sublinha que ao adentrarmos numa floresta, devemos olhar não para frente, mas para baixo e ter a surpresa de se deparar com uma verdadeira cidade, numa “arquitetura de teias e filamentos”. Tudo está interligado, e nós também. Como mostra a autora,
“os fungos criam essas teias à medida que interagem com as raízes das árvores, formando estruturas conjuntas de fungos e raízes chamadas ´micorrizas`. As teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas, através de filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em emaranhados” (TSING, 2019, p. 43).
Elaborar uma crítica pertinente ao antropocentrismo é, portanto, ampliar o olhar para captar uma nova dinâmica de socialidade que envolve humanos e não humanos. Compreender que estamos diante do desafio de estender a teoria social para outras formas de vida, incluindo as rochas e rios. Estamos todos enredados positivamente numa teia de “espécies companheiras”, para utilizar a expressão consagrada de Donna Haraway. E só lidando com semelhante hermenêutica que seremos capazes de ressurgir das ruínas do Antropoceno, ou pelos menos adiar um pouco mais o desenlace final. Como indicou Krenak, “a gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair (...). Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos” (KRENAK, 2019, p. 30).
Referências Bibliográficas
BOFF, Leonardo. Do iceberg à arca de Noé. Garamont: Rio de Janeiro, 2002.
CHARDIN, Pierre Teilhard de. La mia fede. Scritti teologici. Brescia: Queriniana, 1993,
CHARDIN, Pierre Teilhard de. Il cuore della matéria. 3 ed. Brescia: Queriniana, 2007.
DESCOLA, Philippe. L´ecologie degli altri. L´antropologia e la questione della natura. Roma: Linaria, 2013.
DESCOLA, Philippe. Oltre la nature. Firenze: Seid, 2014.
DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas.São Paulo: Editora 34, 2016.
DOGEN, Maître. Shôbôgenzô. La vrai loi, trésor de l´oeil. Paris: Sully, 2005.
INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaio sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. Le Kremlin-Bicêtre: Zones sensibles, 2017.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
LATOUR, Bruno. Enquête sur les modes d´existence. Una anthropologie des Modernes. Paris: La Découverte, 2012.
LOYER, Emmanuelle. Lévi-Strauss. São Paulo: Edições Sesc, 2018.
PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
TSING, Anna. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.
Publicado no IHU-Notícias: 24 de novembro de 2020
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604916-o-antropocentrismo-em-questao