sábado, 18 de setembro de 2021

Em busca de uma antropologia além do humano

 Em busca de uma antropologia além do humano

 

Faustino Teixeira

 

 

É um tema que vem me ocupando nos últimos anos com grande entusiasmo, interesse e alegria. Essa questão de uma antropologia além do humano. Agora me deparo com esse espetacular número da Revista Cult (setembro 2021) com um especial sobre o tema. Fantástico. Vou me concentrar nos dois primeiros artigos.

 

O primeiro artigo é de Renato Sztutman. Ele fala sobre a importância de retomar o animismo, como reação ao projeto racionalista da modernidade. Sinaliza o gesto inaugural de Plilippe Descola, já em 1986, ao falar sobre o tema. A questão foi desdobrado com rigor no livro Par-dellà nature e culture (2005). Na visão dos animistas, diferentemente dos naturalistas, o que há “é uma mesma ´alma humana` que se distribui entre todos os seres do cosmos”. 

 

O tema vem igualmente abordado em perspectiva uma pouco distinta no Perspectivismo, que resguarda um “certo antropomorfismo”. As prerrogativas humanas, sinaliza o autor, deixam “de ser exclusividade da espécie humana, assumindo as formas mais diversas”. 

 

Um bom exemplo de reflexão sobre o tema, encontramos no livro de Bruce Albert e Davi Kopenawa: A queda do céu, publicado originalmente em francês, a0 anos antes de sair no Brasil. Na visão de Kopenawa, portanto dos Yanomamis, quandos os xamãs “inalam a yãcoana (pó psicótico), seus olhos ´morrem` e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível dos xapirape, que se apresentam numa grande festa, dançando e cantando, adornados e brilhosos”. Como indica Kopenawa, os humanos são incapazer de ver, já que desconhecem profundamente a terra floresta (urihi). 

 

Também Tim Ingold trata do animismo em seus livros de 2000 e 2011, esse último publicado no Brasil (Estar vivo). Sua ocular é um pouco distinta da de Descola e Viveiros de Castro: “Diferentes povos partilhariam o que ele chama de uma ´percepção anímica do mundo`, que privilegia as relações e o movimento em detrimento dos contornos. Quando se habita o mundo, diz Ingold, tudo parece ter vida e, portanto, ter ´alma`”. O autor está abraçando, assim, uma “biologia relacional`, onde “os organismos, as espécies e os coletivos permanecem em processo contínuo de composição”.

 

Essas distintas propostas têm em comum a busca de uma solução animista para as “visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre sujeito (humano) e o mundo”. Buscam todos uma “descolonização do pensamento” para usar uma expressão de Viveiros de Castro.

 

Retomar o animismo, como lembrou, por exemplo, Isabelle Stengers, é “uma forma de existência e de resistência”. É o desafio de “ir além da ´maldição da tolerância`” e também de “levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida ou uma árvore pensa”. A “intrusão de Gaia”, como fala Stengers, revela-se “um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos mundos”.

 

Também insere-se nessa luta o pensador indígena brasileira, Ailton Krenak, em sua defesa da personalização do rio e da montanha. Retomar, portanto, o animismo “surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir”.

 

O segundo artigo de Joana Cabral de Oliveira, aborda a visão singular dos wajãpi, indígenas do Amapá. O traço mais interessante de sua reflexão, captando o olhar desse grupo indígena, é reconhecer que “a agricultura não é uma prerrogativa dos humanos, uma vez que a humanidade não é uma condição exclusiva, mas sim um atributo amplamente compartilhado por diversos seres”. 

 

Ela descreve de forma bem interessante os roçados das sucuris, o papel dos tucanos na irradiação dos açaís e das cutias nos na irradiação dos castanhais. O que se dá é uma presença animada nas florestas, que são habitadas e cultivadas “por entes apenas aparentemente não-humanos”. O que ocorre na Amazônia, diz a autora, “são populações que interferem de forma comedida nas dinâmicas ecológicas, de modo a implementar a diversidade e propagar a vida”.

 

Na verdade, os humanos não são senão atores “entre outros, de uma paisagem multiespecífica”. Eles não usufruem de qualquer posição especial, e essa perspectiva acabou por exclusivizar o antropocentrismo e reforçar “o direito de tratar os demais viventes como recursos”.

 

Estamos bem cientes, como nos lembrou Stengers, de que Gaia é também intrusa. Como diz Joana, “o mundo é perigoso, há sempre o risco de vingança pela forma como se caça, como se derruba uma porção da floresta, como se planta ou se colhe algo. Não estamos diante de um estado idílico de comunhão pacata entre humanidade e natureza (numa típica relação entre sujeito e objeto), mas, sim, próximos a um mundo regido por relações sociais (entre sujeitos), no qual tensão e cuidado são os idiomas predominantes”.

 

Dica preciosa da autora, ao acentuar esses dois traços que estão diante de nós, nesse nosso momento sombrio: tensão e cuidado. O desafio de pensar para além do humano, abriu pistas fundamentais para “aprender a pensar-viver com os outros”, em direção a uma “etnografia multiespécies”. O desafio, por exemplo de “voltar olhares para as florestas e compreendê-las como ´cultas` - oriundas de uma relação com o cultivo empreendido por diferentes sujeitos e também por serem dotadas de algo que podemos chamar de conhecimento – é um movimento que se alinha a esse esforço de descentrar o humano do foco de análise”. Isso requer romper com o medo de um deslocamento de olhar, sendo capaz de perceber a dinâmica de “outros pensamentos”.

 

No terceiro artigo, que não vamos sintetizar, escrito por Igor Scaramuzzi, ele utiliza uma expressão que nos ajuda a assumir esse novo olhar ampliado. Trata-se de deixar-nos animar por uma atitude de cuidado e responsabilidade não só pelos humanos, mas também com outros seres vivos e entes que povoam o cosmos. Gostei muito dessa idéia: humanos, outros seres vivos e entes. Taí um caminho singular de abertura para a inter-relacionalidade de que tanto fala o papa Francisco, desde a encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum.