quarta-feira, 23 de junho de 2021

Os anjos nas Asas do Desejo

 Os anjos nas Asas do Desejo

 

 

Faustino Teixeira

 

 

Asas do desejoé um dos mais esplêndidos filmes que assisti na vida. No original, chama-se Himmel über Berlin (O céu sobre Berlim), e foi dirigido brilhantemente pelo diretor Win Wenders, que também filmou o precioso Paris Texas (1984)Foi realizado em 1987, dois anos antes da queda do Muro de Berlim, sendo filmado na Alemanha Ocidental. O filme foi premiado pela direção no Festival de Cannes de 1987, e igualmente na Academia de Cinema da Alemanha, pela direção e fotografia. Na fotografia temos a presença de Henri Alekan (1909-2001), que colecionou também muitas premiações ao longo de sua carreira. O roteiro é do escritor austríaco Peter Handke (1942) e a trilha sonora de Jürgen Knieper (1941), que mesclou com maestria o clássico e o popular. 

 

O filme aborda o tema dos anjos, e há um nítido influxo na dinâmica reflexiva do filme de autores como Walter Benjamin e Rainer Maria Rilke. A opção pelos anjos nasceu com Wenders em razão de sua reflexão sobre a presença deles na cidade de Berlim, por toda parte, em monumentos, fontes e estátuas. Há também o influxo do clássico anjo de Paul Klee, que foi adquirido por Walter Benjamin, que recorreu à imagem para suas teses sobre a filosofia da história.

 

Os anjos do filme, Dammiel e Cassiel, são interpretados respectivamente pelos atores Bruno Ganz (1941-2019) e Otto Sander (1941-2013). Eles são dois anjos que sobrevoam o Berlim do pós-guerra, ou ainda melhor, da Guerra Fria, acompanhando de perto o sentimento de tristeza, solidão e desamparo das pessoas naquele momento sombrio da história. Os anjos escutam os pensamentos, sentimentos e reflexões dos habitantes da cidade, sobretudo aqueles que expressam as “situações-limite”, buscando marcar presença e dar um pouco de consolo a eles. Muitas são as cenas onde isso ocorre, como no metrô ou nas ruas da cidade. 

 

Infelizmente, não conseguem o intento desejado, pois são imateriais. Não estão instrumentados para a acolhida necessária. São impotentes, como “anjos caídos”, e em casos específico não conseguem acolher a dor, como no caso do suicídio de um jovem. Como mostrou Marcelo Vinícius em reflexão a respeito, os anjos “possuem uma permanência tediosa sobre a face da Terra, um mundo em preto e branco, um eterno flutuar por sobre coisas e homens, uma desencarnação assexuada, uma ahistoricidade”, condenados a testemunhar fragilizados à encarnação alheia[1].

 

            É sobretudo um filme que poderíamos chamar de “contemplativo”, pois aborda a passagem do tempo, a fragilidade do humano, o processo de desvelamento da consciência e a descoberta da identidade. Há nos anjos o claro desejo de auxiliar as pessoas, como na cena da presença deles na Biblioteca Pública de Berlim. Os anjos são invisíveis, sendo vistos apenas por outros anjos e pelas crianças, que ocupam também um lugar importante no filme. Elas, com sua inocência, são capazes de observar os anjos nos seus movimentos, pois transitam nos dois mundos.

 

            Os dois anjos do filme, Dammiel e Kassiel, estão 

 

“suspensos pela falta de experiência sensível, histórica, que os detém. Vagam, conversam entre si, lembram-se de tempos imemoriais, são contemplativos. Os anjos se recordam de tudo e isso só é possível porque não têm corpo, portanto não há dores, não há traumas que pudessem disparar o trabalho do esquecimento. Suas memórias (ou o que seriam memórias se fossem eles corpos) não são fragmentadas ou incertas. Não se fatigam, não sabem como é a cor ou o perfume das coisas. Não sofrem, tampouco são infelizes (...). Os anjos não desejam, propriamente, embora pelo menos um deles, quisesse desejar. Estão, no entanto, limitados pela própria interdição”[2].

 

            Um momento singular do filme se passa num carro novo conversível, onde Dammiel e Cassiel conversam sobre a vida. Em certo momento, Dammiel afirma ao anjo-amigo que está cansada da sua vida eternamente espiritual. Ele diz:

 

"É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, me canso dessa existência espiritual. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso... que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer ´agora` a cada passo, cada rajada de vento. ´Agora`e ´agora` e não mais ´para sempre` e ´eternamente`. 

 

Sentar-me numa mesa de jogos sem dinheiro, ser cumprimentado... Toda vez que participamos foi apenas fingimento. Lutamos com alguém e fingimos deslocar o quadril. Fingimos pegar um peixe. Fingimos sentar nas mesas , beber e comer. Fingimos ter cordeiros assados e vinhos… servidos nas tendas do deserto

 

"Não, não preciso ter um filho ou plantar uma árvore... mas seria bom voltar para casa após um longo dia... Ter febre, dedos pretos por causa do jornal. Não vibrar apenas pelo espírito, mas por uma refeição... pelos contornos de uma nuca, de uma orelha. Mentir... deslavadamente. Sentir os ossos movendo enquanto se caminha. Supor em vez de saber sempre. Poder dizer ´ah`, ´oh`, ´ei`, em vez de ´sim` e ´amém`.[3]

 

            Dammiel é um anjo curioso, que se entretém de forma singela com todas as coisas ao redor, e de uma forma singular com as crianças em seus jogos de inocência, flanando sobre as ruas de Berlim. Numa de suas andanças, depara-se com um circo decadente, que iria fazer sua última apresentação numa noite de lua nova. Ali ele encontra uma trapezista, Marion, interpretada pela atriz Solveig Dommartin (1961-2007), e com ela se encanta. Ele observa maravilhado os gestos da trapezista no alto do picadeiro, com suas asas de anjo. Ele segue seus gestos extasiado. Na sua bela crônica sobre o filme, Atilio Avancini relata que ao final, a Marion 

 

“desce do trapézio e ´cai na real` da crise como desafio pessoal. Senta-se sob o capô de um automóvel preto dos anos de 1930 e não se reconhece mais como artista. Está só e triste. Espera ouvir palavras estimuladoras para o ´voo seguro` da derradeira noite (a mão do anjo Dammiel toca seus ombros, ao som de acordes musicais. Ela então coloca as suas asas de anjo nas costas de um acordeonista do circo (…). Marion continua reflexive e adentra seu trailer só (…). A trapezista enquanto se veste, sente uma crescente onda de amor. Dammiel responde (invisivelmente para Marion) por gestos faciais e expressões corporais (…). O anjo sofre de amor no céu sobre Berlim, fascinado pelo desejo, mas sem poder tocar o corpo da trapezista”[4].

 

                  Algo novo ocorre quando então Dammiel resolve “despencar” do céu e cair na terra agora como humano. É quando então o filme, em preto e branco, ganha cor e uma dinâmica nova. Dammiel começa a experimentar a aventura humana, com suas mazelas e alegrias. Alegra-se com a visão do sangue em sua cabeça, após a queda de uma armadura de ferro. O sangue provoca nele experiência viva de estar no mundo de cores. Sente a presença do frio, e troca numa casa de antiguidades a armadura de ferro por um casaco multicolorido. Prova a alegria de um café quente, apertando o copo entre as mãos para experimentar o calor novidadeiro. Fricciona as mãos com vontade e decide mergulhar de cabeça no mundo dos humanos. 

 

            Vai ao encontro da trapezista e os dois vivem momentos mágicos de maravilhamento, numa noite reveladora. Ela diz a ele depois, entre outras coisas:

 

“A coisa precisa ficar séria. Estive muito sozinha, mas nunca vivi sozinha. Quando eu estava com alguém, me sentia feliz… mas, ao mesmo tempo, tudo parecia coincidência (…). Estive apaixonada por um homem. Eu poderia igualmente tê-lo abandonado e partido com um estranho que cruzou conosco na rua. Olhe para mim ou não. Me dê sua mão ou não. Não, não me dê sua mão, desvie o olhar. Hoje é noite de lua nova… noite muito tranquila… sem derramamento de sangue pela cidade. Nunca brinquei com ninguém, apesar disso, nunca abri os olhos e disse ´Agora é sério`. Finalmente é serio. Assim, fiquei mais velha. Era eu a única que não era séria? Nunca fui solitária, nem quando estive sozinha nem acompanhada. Mas eu tinha gostado de ser solitária, solidão significa o seguinte: finalmente estou inteira. Agora posso afirmar isso, pois hoje me sinto solitária. As coincidências precisam ter um fim. Lua nova das decisões. Não sei se existe destino, mas existe decisão! Decida! Nós agora somos o tempo. Não apenas a cidade, mas o mundo todo… tem parte na nossa decisão. Agora nós dois somos mais do que dois (…). Agora é a sua vez. O jogo está em suas mãos. Agora ou nunca. Você precisa de mim. Não existe história maior que a nossa… a de um homem e uma mulher. Será uma história de gigantes, invisível, contagiosa… uma história de novos ancestrais. Veja os meus olhos… eles são o retrato da necessidade… do futuro de todos que estão na praça. Ontem à noite, sonhei com um estranho… com o meu homem. Apenas com ele eu poderia ser solitária… me abrir para ele, totalmente. Recebê-lo em mim como um ser inteiro. Envolvê-lo num labirinto de felicidade partilhadaEu sei que ele é você”[5].

 

Deslumbrado, Dammiel responde:

 

“Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, envolta em mim. Quem nesse mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida… mas sim um quadro immortal compartilhado. Aprende sobre estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior somente a estupefação com nós dois… a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. Eu… agora… sei… o que… nenhum anjo sabe”[6].

 

Dammiel vive com Marion uma experiência amorosa de integração, como num “labirinto de felicidade partilhada”. Agora o anjo sabe das alegrias que o tempo faculta, da dimensão humana que anjo algum pode saber e experimentar.


Uma curiosidade sobre o filme, relatada por Win Wenders em entrevista sobre o filme. Em edição especial de blu-ray definitiva sobre o filme, com um DVD extra, com quase três horas de vídeos. Ele sinaliza que a atriz atriz Solveig Dommartin, que faz a trapezista, era na ocasião das filmagens namorada sua. De forma impressionante, ela aprendeu a dominar a arte do trapézio em apenas oito semanas, e trabalhou sem nenhuma proteção abaixo, e o seu trabalho foi exemplar. Uma pena ter morrido tão cedo, em 2007, com 46 anos.

 

Estamos diante de um grandioso filme e de um espetacular director, que como poucos é capaz de mergulhar com profundidade e sensibilidade na “paisagem interior das pessoas”. É um “cinema da imagem – e da palavra –que faz refletir e regenerar o humano”.

 

 



[1]Marcelo Vinícius. O filme “Asas do Desejo” e a contradiçãode ser anjo:

http://lounge.obviousmag.org/marcelo_vinicius/2013/03/o-filme-asas-do-desejo-e-a-contradicao-de-ser-anjo.html(acesso em 23/06/2021).

[2]Alexandre Fernandez Vaz. Elogio do anacronismo: afetos, memórias, experiências, em Asas do Desejo, de Win Wenders:

https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/62755(acesso em 23/06/2021).

[3]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.

[4]Atilio Avancini. Asas da história, anjos do desejo:

https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/71147(acesso em 23/06/2021).

[5]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.

[6]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Bergman e seus demônios

Bergman e seus demônios 

 

Faustino Teixeira

 

 

Bergman viveu seus últimos anos na ilha de Farô, que conheceu e se afeiçoou a ela. Durante as filmagens de Persona, apaixonou-se por Liv Ulmann e pensaram e em construir a casa na ilha, entre os anos de 1966-1967. Viveram juntos durante alguns anos, e os dois lutaram ali contra seus demônios, depois que a relação se deteriorou.

 

Bergman foi sempre uma pessoa sombria. Durante várias vezes na sua vida pensou na possibilidade do suicídio, embora na prática nunca concretizou tal “fantasia”. Dizia que a curiosidade que sentia pela vida era demasiado forte, e sua vontade de viver demasiado robusta. Mas também o medo da morte “demasiado infantil de tão intenso”[1].

 

A decisão de Bergman de deixar as filmagens não foi dramática, e ocorreu durante a rodagem de Fanny E Alexandre. Na ocasião, Bergman já padecia fortes cãibras e perda de equilíbrio. Vinha também acometido há mais de vinte anos por insônias crônicas, padecendo com a vulnerabilidade da noite. Dizia que cinco horas de sono eram suficientes para ele: 

 

“Amiúde durante a noite, vêm-me fazer companhia bandos de aves negras: a angústia, a fúria, a vergonha, o arrependimento, a neura. E até para as insônias existem rituais: mudar de cama, acender a luz, ler um livro, ouvir música, comer bolachas, beber chocolate ou água mineral”

 

Sua decisão foi igualmente tomada em razão de sua velhice. Trata-se de uma realidade que não lamenta nem produz alívio. Ocorre que com ela “a solução de problemas é mais lenta, as concepções cênicas causam preocupações maiores, as decisões requerem mais tempo”[2].  Isto colidia um pouco com a marca decisiva de sua atuação, que era a "sede de perfeição"[3]

 

Diz ele em certo trecho:

 

"Filme como sonho, filme como música. Nenhuma outra forma de expressão artística é capaz, como o cinema, de vir ao encontro dos nossos sentimentos, penetrar nos recantos mais obscuros da nossa alma (...). Quando me sento à mesa das montagem e passo a fita, imagem após imagem, ainda sinto a sensação arrepiante, de magia, dos meus tempos de criança"[4].

 

Vale registrar sua relação de proximidade com o excelente diretor de fotografia, Sven Nykvist, que atuou junto com Bergman por muito tempo. Era um mestre da imagem. Para Bergman, era um fotógrafo cuja suprema qualidade era “sua indizível intuição, a qual fez dele um dos maiores diretores de fotografia do mundo”. É alguém extremamente perfeccionista. Busca recomeçar sempre, “se por qualquer motivo se sente incomodado, se for obrigado a trabalhar às pressas ou se estiver de mau humor”[5]. Bergman e ele eram fascinados pela “problemática da luz, seja ela branda, perigosa, onírica, viva, morta, clara, turva, quente, violenta, gélida, repentina, sombria, primaveril, interior, exterior, direta, oblíqua, sensual, submetedora, limitativa, venenosa, tranquilizante”[6].

 

No filme A flauta mágica, filmada num pequeno teatro de madeira, numa atmosfera íntima e com acústica excelente. O filme trazia um tema muito caro a Bergman. Essa peça de Mozart foi feita quando ele já estava doente, “pressentindo o bafo da morte”[7]. Em certo momento da peça, algo ocorre que expressava o sentimento do compositor:

 

“O noite sombria, quando porás fim às tuas trevas? Quando verei luz nesta escuridão”; o coro dá a resposta: “Breve, breve ou nunca mais”[8]

 

Os demônios sempre atormentaram Bergman, e ele expressa claramente isto no filme: A ilha de Bergman: um filme de Marye Nyrerôd (2006). Ali há a clássica passagem do diálogo de Anna e Tio Jacob a respeito da crença ou não em Deus.[9]A tensa relação entre a independente burguesa Anna e o candidato a pastor Henrik, foi objeto do filme “As melhores intenções”. No livro, “Confissões” há uma linda passagem que relata o diálogo de Anna com o velho pastor luterano, Tio Jacob, seu aconselhado, como dizem os luteranos. Ele diz a ela que não era pertinente que falasse em Deus mas na santidade que habita o ser humano. E Bergman no filme “A ilha de Bergman” sublinha ao final que esse era também o seu pensamento[10].

 

Ao final do filme de Marie Nyeröd, Bergman fala sobre os demônios, que sempre o atormentaram. Ele cita cinco:

 

. O demônio dos desastres (quanto todos os sonhos se desmontam)

. O demônio do medo (que sempre o acompanhou)

. O demônio da raiva (que herdou do pai)

. O demônio do rancor (que faz com que se lembre de fatos de 40 a 50 anos)

 

Felizmente, o ultimo demônio citado, nunca o dominou, que é o demônio do nada, que significa a perda da imaginação e da criatividade: estar totalmente envolvido no vazio. Ele se sente agradecido por não ter sido envolvido por esse nada.

 

Em entrevista a José Geraldo Couto na FSP, em 08/11/1996, Liv Ullmann comenta um pouco sobre o seu filme “Confissões íntimas” (roteiro de Bergman), baseado no livro Confissões, de Bergman. Trata-se de uma “história muito intensa, ambientada em 1935”.

 

Ao final da entrevista, Couto pergunta a ela “em que aspectos do trabalho de Bergman você tem de esquecer para filmar?” Ela responde:

 

“Acho que eu nunca faria filmes com seus temas, porque são temas depressivos, cheios de culpa e pecado. Acho que devemos fazer filmes com esperança”[11]

 

Nós, os apaixonados por cinema, curtíamos – e quanto – as crônicas do crítico José Carlos Avellar no Jornal do Brasil. Clássica sua crônica no JB sobre o filme “Gritos e Sussurros” em 02 de novembro de 1974. Esse filme foi produzido em 1972, a cores, com as presenças de Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Harriet Anderson e Kari Sylwan. A fotografia, premiada no Oscar em 1974, é de Sven Nykvist. O filme foi rodado numa “mansão muito danificada”, nas imediações de Mariefred (a sudoeste de Estocolmo). Assim o queria Bergman, pois mostrava o abandono que visava. Ele pode transformar o cenário do jeito que queria. O momento da produção do filme coincidiu com o período de casamento de Bergman com Ingrid von Rosen, sua última esposa, com quem viveu muitos anos.

 

Os temas que envolvem a filmografia de Bergman são pesados, trazendo à tona questões perturbadoras como a morte, a dor, a solidão e o sofrimento. Como diz o cavaleiro Antonius Blok, no “Setimo selo”, referindo-se à “indesejada das gentes” (morte), “um dia, quando nos encontramos diante do último momento da vida, temos de ficar de pé e olhar para esta escuridão”.

 

Na visão de José Carlos Avellar, “não é de todo má ideia assustar alguém de quando em quando. Assustadas as pessoas pensam. E quando pensam ficam um pouco mais assustadas”. É forte e potente a oração do pastor em cena de “Gritos e Sussurros”. 

 

No mencionado filme, as três irmãs estão voltadas para seus mundos pessoais, interiores, e a irmã moribunda não consegue receber a acolhida que precisa, a não ser da empregada religiosa, Anna. O cenário do filme é impressionante, com o tom forte e agressivo do vermelho, que “afoga cada personagem nessa imensidão íntima, partindo de um close para uma explosão carmim nos rostos meio-escurecidos, toda vez que uma mudança de ato acontece”.

 

Porém, o mais interessante na técnica de Bergman é deixar transparecer em seus filmes “instantes de felicidade”. Em meio ao ritmo da melancolia e da inevitabilidade da morte, como em “Sétimo Selo” e “Gritos e Sussurros”, há momentos preciosos onde ocorrem “área de escape frente à brutal insensatez da vida”. São momentos de “suspensão” da asfixia em que tais filmes nos envolvem. Como diz o crítica Marcelo Müller, crítico de cinema, “é como se Bergman, exatamente nessas passagens, afirmasse que, a despeito de tudo que nos incomoda, a vida merecesse ser vivida, mesmo que reduzida a um breve instante”. São “pontos de júbilo” nos filmes, como a linda cena em “Sétimo Selo”, entendida como “paragem segura de alegria”, o cavaleiro relaxa junto com o casal de artistas e seu filhinho, numa “celebração” com morangos silvestres e leite fresco. Todos ali, deitados e alegres sobre a relva: “A simplicidade do gesto de seus anfitriões, a conversa que se desloca da praga e recai sobre sentimentos singelos, a ternura prevalente como que criando uma redoma a protege-los de tudo e de todos por alguns minutos”. A maravilhosa cena nos indica que nem tudo são “nuvens carregadas” ou sufocantes inquietudes.

 

De forma semelhante, em “Gritos e Sussurros”, o instante de felicidade ou êxtase ocorre na lembrança de Agnes que capta um fragmento de felicidade transbordante: “Ela se recorda da vem em que, ao lado das irmãs e da empregada/amiga que lhe era tão cara, caminhou numa tarde de verão, despreocupadamente, pelos jardins da propriedade, nesse pequeno intervalo se esquecendo das dores impingidas pela doença fatal que lhe corroía a carne, o humor e a personalidade”. Tudo isso são “pontos de júbilo” que temperam a dor das cenas, nesse cineasta marcado pela paixão do instante. 

 

Como mostra José Carlos Avellar, quanto “maior o desespero, maior se torna a intensidade do pequeno instante de satisfação que nada pode quebrar ou impedir. Por mais insensata que seja a existência um só instante em que a vida se libera sem impedimentos é maior que todo o sofrimento”. Bergman quer nos dizer com esses pequenos detalhes que “a vida vale ser vivida, mesmo que restrita a pontos de fuga que nos tornam felizes”.

 

 



[1]BERGMAN, Ingmar. Lanterna mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 94.

[2]Ibidem, p. 67.

[3]Ibidem, p. 65.

[4]Ibidem, p. 78.

[5]Ibidem, p. 69.

[6]Ibidem, p. 231.

[7]Ibidem, p. 219.

[8]Ibidem, p. 219.

[9]Esse diálogo está descrito no livro de Ingmar Bergman, Confissões (1996), na p. 38-39 (tradução brasileira pela editora Nórdica)

[10]BERGMAN, Ingmar. Confissões. Rio de Janeiro: Nórdica, 1996, p. 38-39.

[11]COUTO, José Geraldo. Liv Ullmann conta sua história de amor. Folha de São Paulo, 08 de novembro de 1996:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/08/ilustrada/35.html. Acesso em: 10 de junho de 2021.