O diálogo na Fratelli Tutti
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF/ Paz e Bem /Unisinos
O foco da nova encíclica
Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos e todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo
Estamos diante de uma bela encíclica, marcada pela tonalidade do evangelho. Há nela a conjugação da coragem destemida, do cuidado com a casa comum e com os mais sofridos, bem como uma ternura que vem sendo um traço singular no pontificado de Francisco. Utilizando aqui uma expressão de Leonardo Boff, é uma encíclica que une vigor e ternura. É uma encíclica, que na mesma rota da Laudato si' (LS), convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor.
A encíclica denuncia a perda dos sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho da construção partilhada de um mundo de justiça e paz se esvanece, e ficamos à deriva de um perigoso narcisismo individual e de grupos. A indiferença avança a passos largos, uma indiferença “acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos num mesmo barco” (FT 30).
Um olhar atento ao evangelho nos possibilita ver que há uma cristalina opção pelos mais pobres. Junto com eles, o carinho que se derrama sobre os excluídos, os mais velhos e todos que se encontram abandonados num mundo carente de solidariedade. É o que lembra Francisco. Trata-se de “cuidar da fragilidade” (FT 188), ou seja, “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade” (FT 188).
O pontificado de Francisco será lembrado como aquele que defendeu com as garras do coração uma outra globalização, fraterna e solidária, contra todo o ritmo nefasto deste tempo do Antropoceno, ou como vem lembrando L. Boff, do necroceno, em razão da ação predatória do humano sobre a Terra. Ela agora “geme e se rebela” (FT 34).
A defesa de uma outra globalização
Como arauto do evangelho, Francisco convoca a todos a uma ira santa: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isto fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Não há por que se calar nesse tempo de passividade e indiferença, é o que revela Francisco com a medula do evangelho.
Sua dor vem acentuada com a indiferença como o mundo globalizado vem, em geral, tratando os tocados pela epidemia do coronavírus, sobretudo os velhos, rechaçados como força de produção falida. Idosos são abandonados e isolados, “sem acompanhamento familiar adequado e amoroso”. Tudo isso provoca a mutilação e empobrecimento da própria noção de família (FT 19).
Francisco adverte na encíclica sobre o empobrecimento da humanidade. Lembra que “seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor” (FT 31). É o sentimento de “pertença à humanidade” que se fragiliza numa sociedade do “mínimo eu”, do narcisismo desenfreado, da defesa do particular com todo o aparato de muros intransponíveis. Francisco denuncia as “novas barreiras de autodefesa”, para que vibre solitariamente o mundo privado do eu, mas de um eu sem mundo.
E as vozes que ousam contestar essa lógica perversa são caladas ou ridicularizadas, como percebemos na oposição à resistência dos povos originários (FT 17). Nos esquecemos que são essas vozes que podem nos salvar. Aliás, ninguém se salva sozinho, mas a salvação envolve o sentimento de comunidade, que vem se ofuscando a cada dia (FT 32).
O papa se coloca ao lado daqueles que promovem os essenciais “gestos barreiras”, para utilizar uma expressão de Bruno Latour. São aqueles que se opõem à dinâmica em curso, e que anseiam pela “interrupção” dessa globalização. Assim como o vírus conseguiu parar por um tempo o mundo, há esperança de que os “pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo” (LATOUR, 2020, p. 131).
A defesa da paz e do diálogo
Além da defesa de uma ira sagrada contra os donos do mundo, a encíclica defende com vigor o caminho da paz e do diálogo. A busca da paz é outro dos traços novidadeiros do pontificado de Francisco. Ele sublinha que em inúmeras partes do mundo urgem iniciativas que promovam “percursos de paz”, que possam “cicatrizar as feridas”, de “artesãos da paz prontos a gerar, com inventividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). Providencial é a citação do livro dos provérbios (12.20): “No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria” (FT 256).
Aqueles que são aquecidos pelo evangelho vivem o dom da alegria, é o que nos lembra todo tempo Francisco em sua travessia de amor pela vida. Sinaliza que o evangelho “convida insistentemente à alegria” (EG 5). Daí sua sensibilidade à capacidade de doação e misericórdia, que são dons absolutamente gratuitos. Os artesãos da misericórdia também estão por aí, ao nosso redor, com seus semblantes acolhedores e anônimos. Lembra-nos Francisco,
“de vez em quando verifica-se o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224).
Sim, estamos diante da globalização da indiferença, é o que nos lembra Francisco a todo momento. Curioso, num tempo pontuado por tantas conexões, de velocidade louca, prevalece a surdez e a desumanidade. Diz Francisco, em pensamento lapidar e certeiro: “Hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade” (FT 33).
Como bem lembrou Francisco, “a conexão digital não basta para lançar pontes” (FT 28). Esta é a dura verdade. E o ambiente das redes vem contaminado com rancor e ira, na defesa da “solidão dos que têm razão”. Francisco nos adverte contra esta acidez social, irradiada nas redes (FT 44) e convoca a um diverso sentimento, captado na Carta aos Gálatas, de amor, alegria e paz: “um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta”. Isso é o que o nosso tempo mais necessita, de uma paz que leve ao conforto e ao cuidado.
Outra mensagem que a encíclica carrega, como voz preciosa, é a do diálogo. Francisco cita o poeta Vinicius de Moraes para assinalar que “a vida é a arte do encontro” (FT 215). Só através de sua ponte o mundo é capaz de encontrar uma vida melhor (FT 198). O diálogo “tem seu próprio valor”, como diz o belo documento Diálogo e Anúncio (1991). Assim também Francisco quando diz não ser necessário saber “para que serve o diálogo” (FT 198). O diálogo é, na verdade, autofinalizado. O diálogo não requer, igualmente, nenhuma reciprocidade. É dom gratuito. Quando Francisco fala em diálogo, está pensando no diálogo entre as culturas, mas também entre as religiões.
O diálogo é um dom que preserva as belas coisas que temos em comum com os outros (FT 297). Numa sociedade pluralista, o diálogo inter-religioso firma-se como caminho essencial de ultrapassagem dos muros. As religiões são respeitadas pelo Papa na sua dignidade sagrada. Recorrendo a um dos textos mais simbólicos do Concílio Vaticano II, sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae – DH), Francisco reconhece que cada pessoa tem o dever e o direito de buscar a verdade em matéria religiosa (DH 3). Diz explicitamente em sua conversa com Eugeniio Scalfari, que cada pessoa, obedecendo sua consciência, deve buscar o bem (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 55), a “via do amor”. Isso é o que é essencial.
A centralidade do exercício do agape
O papa reage com vigor contra qualquer proselitismo. Indica que “o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o bem” (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 55). O caminho que leva à salvação não depende de um vínculo religioso específico, mas de um exercício efetivo de caridade. É o modo efetivo de amar a Deus. O agape é “o único modo que Jesus nos apontou para encontrar o caminho da salvação e das Bem-aventuranças (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 56). Para o escândalo de alguns, Francisco sinaliza que “não há um Deus católico” (Francesco/Scalfari, 2013b, p.68), mas um Deus que é movimento e criação contínua, e que se deixa surpreender em cada passo.
Com base em passagens de discursos no filme dirigido por Win Wenders sobre o seu pontificado[1], Francisco sinaliza:
“Entre as religiões é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque 'Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor'” (FT 282).
Francisco lança assim um convite ao “amor universal”, que deve animar o caminho da igreja. Isso sem perder o referencial singular da pertença. O diálogo não se opõe ao amor à própria religião. Se outros bebem de “outras fontes”, também reconhecidas como expressão de beleza, os cristãos são brindados com um “manancial de dignidade humana e fraternidade” fundados no evangelho de Jesus Cristo (FT 277). Aqui o papa tenha talvez “escorregado numa visão mais tradicional” ao falar que o que existe de positivo nas outras religiões são “raios de verdade”, que encontram o seu remate na “música do evangelho”. É a visão predominante depois de Vaticano II, e que impregna os documentos mais tradicionais da igreja católica, como a declaração Dominus Iesus. É um passo de superação que ainda precisa ser dado com certa urgência para uma mais rica integração do pensamento eclesial com o ritmo do pluralismo religioso.
Como mostra Francisco, todos são cobertos com o manto da dignidade do Mistério sempre maior. O diálogo requer uma pedagogia singular, que envolve um aprendizado de abertura do coração e ampliação do olhar (FT 254). A igreja vem convocada a tal gesto de desprendimento e escuta, do Mistério que está por aí. Quando perguntam a Francisco o caminho de solução para o entendimento e a paz entre os povos e as religiões sua resposta é sempre certeira: diálogo, diálogo, diálogo, é como expressou em sua visita ao Brasil, no encontro com a classe dirigente, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (Francisco, 2013a, p. 82-83).
Um olhar crítico sobre o Antropoceno
Numa sociedade pluralista, o diálogo inter-religioso firma-se como caminho essencial de ultrapassagem dos muros. A Laudato Si' ocupou-se do cuidado da casa comum. É uma encíclica que faz um diagnóstico severo sobre a realidade da terra no tempo do Antropoceno, com todas as consequências nefastas de uma atitude predatória do humano com relação ao seu mundo.
À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida. Sublinha o risco de catástrofes imprevisíveis caso o ritmo da aceleração produtivista continue no mesmo frenesi. Propõe uma “conversão ecológica” (LS 217) e uma espiritualidade do cuidado, na linha de Francisco de Assis. Sua Crítica ao Antropocentrismo é potente, ainda que não leve sua reflexão às últimas consequências, na medida em que mantém plausível um antropocentrismo cristão, justificando o lugar peculiar do humano “acima” das criaturas, como “administrador responsável” (LS 116). Sua crítica volta-se, mais a um “antropocentrismo desordenado” ( LS 119) ou “despótico” (LS 68). Esse é um limite, a meu ver.
Na encíclica Fratelli Tutti, o objeto de atenção é a fraternidade e a amizadesocial. Enquanto o foco da primeira encíclica, Laudato si, centrava-se mais no campo da relação de cuidado com o ambiente. Na nova encíclica o foco é mais social e político, abordando as exigências de uma fraternidade nova, distinta da “globalização da indiferença” que está em curso.
São encíclicas que se complementam. A mensagem de vídeo endereçada à ONU, em setembro de 2020, vai na mesma linha de seu pensamento, recorrente nos seus textos.[2]Retoma a ideia de uma “solidariedade baseada na justiça”, em linha de tensão com o ritmo frenético de “atitudes de autossuficiência” que desenham a plataforma de muitos governos no mundo atual. Ali aparecem sua preocupação com o mundo afetado pelo coronavírus; os efeitos tremendos que estão ocorrendo no mundo do trabalho, numa incerteza vinculada ao processo contínuo de robotização; a cultura do descarte e a violação visível dos “direitos fundamentais”. Retoma também sua preocupação social com os últimos, os desprezados do mundo, os excluídos, os migrantes e os deslocados da “música” da globalização. Aproveita igualmente a nobre ocasião para questionar o “nominalismo declamatório” da ONU, com sua escassa capacidade de cumprir suas promessas. Denuncia várias situações de devastação e flagelos, como os que vêm ocorrendo na Amazônia, acarretando graves prejuízos aos povos originários. E conclama os governos a uma responsabilidade única: “Não devemos impor às gerações futuras o fardo de assumir os problemas provocados pelas gerações precedentes”. Foi um discurso incisivo, destinado a provocar um “repensar o futuro” da casa comum. À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.
Referências Bibliográficas
ENTREVISTA exclusiva do papa Francisco ao pe. Antonio Spadaro. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013a.
PAPA FRANCESCO & SCALFARI, Eugenio. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaldi/La Repubblica, 2013b
LATOUR, Bruno. Onde aterrar ? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.-
PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013.
PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015 (abreviação: LS)
PAPA FRANCISCO. Evangelium Gaudim. A alegria do evangelho. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013 (abreviação: EG)
PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020 (abreviação: FT).
(Texto a ser publicado no livro: 3º Simpósio Internacional de Doutrina Social da Igreja – Recepção interdisciplinar da Encíclica Fratelli Tutti – Paulinas, 2021)