Desafios e impasses na experiência profunda dialogal
Faustino Teixeira
Minha opção fundamental de vida foi sempre ligada ao diálogo inter-religioso. Agora chegou o momento, meio tardio, de fazer uma experiência mais profunda nesse campo. Leio aqui com carinho a excelente dissertação de mestrado de um amigo querido, Sérgio Brissac, que foi meu aluno de filosofia no Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro. Uma pessoa muito especial. Acabou dedicando-se à vida religiosa, ingressando nos Jesuítas.
Fez filosofia e teologia em BH, no ISI. Foi ordenado festivamente no Colégio Santo Inácio, por nada menos do que Dom Luciano Mendes de Almeida. No caminho, descobriu a União do Vegetal, e partilhou sua experiência cristã com a bebida do vegetal Ayauasca. Não recebeu a acolhida que merecia, numa igreja do pós-vaticano.
Na ocasião em que conversou com o seu provincial, foi desincentivado a dar continuidade à comunhão do vegetal. Depois acabou desvencilhando-se dos jesuítas. Uma perda para a igreja no Brasil, ainda incapaz de entender experiência duais, como a que fez, por exemplo, Henry Le Saux, Panikkar, Christian de Cherger e Paolo Dal´Olio.
Estamos, assim, longe de um verdadeiro diálogo inter-religioso, que requer necessariamente uma abertura bem maior do que a teórica. Um dos documentos mais abertos da igreja católica a respeito, muito pouco lido, aliás – Diálogo e Anúncio - DA (Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso – 1991), sinaliza com clareza uma importante disposição para o diálogo: “A vontade de se empenhar em conjunto, ao serviço da verdade, e a prontidão em se deixar transformar pelo encontro” (DA 47).
Em documento anterior, do então Secretariado para os não-cristãos, assinado por Francis Arinze e Marcelo Zago (esse, um homem de diálogo), Diálogo e Missão - DM (1984), fala-se em níveis de diálogo, sendo o mais profundo o da experiência religiosa, onde “homens radicados nas próprias tradições religiosas podem compartilhar as suas experiências de oração, de contemplação, de fé e de compromisso, expressões e caminhos da busca do Absoluto. Esse tipo de diálogo torna-se enriquecimento recíproco e cooperação fecunda, na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos dos homens” (DM 35). E conclui dizendo que “a fé não se detém diante das diferenças”. E ainda: “Só Deus conhece os tempos, ele a quem nada é impossível, e cujo misterioso e silencioso espírito abre, às pessoas e aos povos, os caminhos do diálogo para superar as diferenças raciais, sociais e religiosas, e enriquecer-se reciprocamente. Eis, pois, o tempo da paciência de Deus” (DM 44).
O mesmo documento DA sublinha que nenhum cristão pode assumir a pretensão de posse absoluta da verdade, pois ela, para os cristãos “não é algo que possuímos, mas uma pessoa por quem nos devemos deixar possuir” (DA 49). Como diz Panikkar, o Cristo encontra-se também escondido no cristianismo.
Estou lendo no momento a dissertação de Mestrado em Antropologia defendida por Sérgio Brissac no Museu Nacional (UFRJ – 1999), em que o orientador foi um dos mais competentes antropólogos daquela renomada instituição, o professor Otávio Velho (secundado por Luiz Fernando Dias Duarte e Regina Novaes). O título é lindo: A estrela do norte ilumina até o sul. Uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano.
O que se percebe ao longo da leitura do texto é de alguém profundamente apaixonado pelo diálogo, e que foi obrigado por um tempo a ter que tomar água nos encontros da União do Vegetal, por impedimento de um provincial. Isso foi o FIM. Mas trago aqui uma passagem de seu trabalho, na p. 73, no capítulo segundo, onde aborda o lado plural da União do Vegetal. Fala da bela relação que se estabeleceu entre dois grandes Mestres espirituais daquela tradição, M. José Luiz de Oliveira e José Gabriel da Costa, mestre superior da UDV.
Oliveira tinha vivência no rosacrucionismo. Brissac recolheu uma impressionante fala dele numa entrevista de campo:
“Fiquei 27 anos na Ordem Rosacruz, dos quais uns 15 anos paralelos entre a Ordem Rosacruz e a União do Vegetal, sabendo que um dia eu ter que fazer uma opção (...). O Mestre Gabriel nunca exigiu que eu tomasse alguma posição, fizesse uma opção, ou se eu quisesse seguir na União do Vegetal deixasse a Ordem Rosacruz. Não. Ele nunca exigiu isso de mim. E isso para mim foi muito bom. Eu entendi que ele achava que seguir a Deus é uma opção. Porque Deus nos deu o livre arbítrio e a gente não é toda hora que pode ter opção. Chega o momento da opção. Quando você chega na encruzilhada da sua vida, que você tem bifurcação das veredas da vida, que você tem que tomar uma opção, você vai para a esquerda ou vai para a direita ou vai em frente (...). Enquanto não chegou o momento da opção não adianta você querer tomar a opção que não é o momento da opção. Não pode precipitar as coisas. Quando chega o momento, você sente. Se a opção é da própria pessoa. Não pode ser uma opção direcionada por quem quer que seja (...). Então, meu amigo, chegou o momento de minha vida em que tive que fazer a opção, mas pela minha livre e espontânea vontade”.
A meu ver, ele podia ter permanecido, de forma tranquila numa dupla pertença, como tanto ocorre no Brasil. Não tenho nada contra o sincretismo, pelo contrário. Como diz com razão Regina Novaes, em precioso artigo na revista Comunicações do ISER (Ano 13, 1994 – num número sobre A dança dos sincretismos), sincretismo está nas malhas mais fundas do catolicismo vivido. Sincretismo pensado “não como falta ou falha de um catolicismo que deveria ocupar todos os espaços das representações e práticas de seus fiéis, mas resultado de processos que incluem encontros – periféricos, múltiplos e constantes – entre crenças e práticas sem pretensão de ou necessidade de se integrar harmoniosamente no sistema católico”. No mesmo número da revista, comenta Pierre Sanchis que o sincretismo é um fenômeno universal que sempre se dá quando ocorre o contato com os outros. Ou seja, a “tendência a utilizar relações aprendidas no mundo do outro para ressemantizar o sentido”.
Retomando à dissertação de Brissac, ele comenta que foi significativa “a atitude do Mestre Gabriel, não impondo a José Luiz, nem mesmo após este ser convocado por ele ao Quadro de Mestres, o seu afastamento da Rosa Cruz. E conclui: “O criador da UDV reafirma sua posição de estimular os discípulos para que eles mesmos ´examinem`, decidam segundo a sua consciência e exerçam o seu livre arbítrio. Em última análise, essa atitude pode ser relacionada à característica da experiência com o chá da Hoasca na União do Vegetal, de propiciar um englobamento de múltiplas vivências espirituais e religiosas do indivíduo”
Vejo aqui um testemunho exemplar do que é diálogo, e que nos cristãos deveríamos estar abertos e atentos para viver, experimentar e aprender.