TRAVESSIA: a arte e a coragem de lidar com a Vida
Faustino Teixeira
Na minha última aula do mini-curso sobre o Grande Sertão: Veredas, falei ao final de uma travessia que vou fazer ainda neste mês, que vai envolver muita energia espiritual. Sinto-me preparado, disposto, acolhido... Vejo que o momento é propício para dar mais este salto na minha vida. Trata-se de um transplante de medula óssea alogênico, que é “aquele no qual as células precursoras da medula provêm de outro indivíduo (doador), de acordo com o nível de compatibilidade do material sanguíneo”. Tive a sorte de encontrar um doador favorável na minha família, o meu irmão Henrique Teixeira, que é 100% compatível, uma chance que nem sempre acontece aos que fazem tal procedimento.
A minha história com a doença que foi me fragilizando corporalmente começou em 2005, quando tive o diagnóstico de Policitemia Vera, que é uma poliglobolia, ou seja, um excesso de produção de glóbulos brancos e vermelhos. Na ocasião, num exame de rotina com meu cardiologista, ele verificou esse aumento do hematócrito e me encaminhou para um hematologista. Fui acolhido com carinho e competência pelo dr. Ângelo Atalla, que passou a cuidar de todo o processo de tratamento. Eu talvez tenha utilizado uma estratégia equivocada no início, de ficar lendo sobre a doença na internet ou mesmo as bulas dos remédios. Foi um grande equívoco. Hoje vejo, com clareza, que a gente deve colocar a confiança no profissional que está dirigindo os cuidados, sem ficar fuxicando notícias na internet, que sempre abalam a cabeça.
Desde a consulta do cardiologista, passei a tomar medicamentos, inclusive para a pressão, pois comecei a ter pressão alta, em decorrência do engrossamento do sangue. Passei a tomar Aspirina prevent (blindada), entre outros medicamentos. Não foi uma boa solução, pois com o tempo adquiri uma úlcera duodenal de 2,5 centímetros. E foi difícil descobrir, pois todos os sintomas indicavam problemas na coluna. Uma dor nas costas e no tórax que me dificultava inclusive andar muitas horas de carro. Fiz exames para a coluna, e estava certo que a questão estava aí, até que sofri um forte sangramento nas fezes, melena, depois de uma aula no ICH. Não me dei conta da gravidade da situação e ainda desci de ônibus para a casa. No centro da cidade, onde ia pegar um taxi, a situação ficou mais difícil. Fui “socorrido” por Teita e ainda tive mais dois sangramentos durante a noite. Só na manhã, depois de ligar para o meu médico, constatei a gravidade do problema, e ele me encaminhou para uma endoscopia. Foi constatada, então a lesão, que surpreendeu a médica especialista, que há tempos não via uma úlcera tão grande. Para prevenir, passei a tomar outros medicamentos. Mudei a aspirina pelo clopidogrel e acrescentei o pantoprazol. O clopidogrel era importante, pois um dos maiores riscos que corria era de ter trombose, que nunca, felizmente, ocorreu.
A notícia da doença causou certo “estrago” no equilíbrio vital, e tive que proceder um cuidado delicado com meu mundo interior. Daí ter entrado fundo nos estudos da mística e na vida de oração. Na fase inicial da doença, o tratamento era feito através de sangrias periódicas, onde retirava mensalmente 500 ml de sangue para equilibrar o hematócrito. Foi também um período delicado para mim, apesar de ter tido uma acolhida impressionante no hemominas de Juiz de Fora. Era um pouco pesado para mim a exposição pública, ali naquela sala coletiva de transfusão de sangue e sangria, onde não dava para “esconder” a vulnerabilidade. Era igualmente tomado de compaixão pela dor dos outros que estavam ali fazendo tratamento: seja de recepção de plaquetas, sangrias e transfusão de sangue. Pude me deparar com pacientes muito jovens, tendo que viver a experiência do limite desde muito cedo. Era o caso, por exemplo, das crianças com anemia falciforme. Há um certo “constrangimento” de ver você como parte de um cenário de vulnerabilidade. E foram anos realizando esse procedimento.
Chegou um momento que a sangria não bastava para conter os índices do hematócrito, sobretudo dos leucócitos, que começaram a crescer em maior proporção. Enquanto o limite para os homens é de 10.000, os meus leucócitos chegavam a mais de 20.000. A conselho do meu médico, passei para uma segunda etapa do tratamento, através do hidróxiuréia, indicado para neoplasias, e também para o meu caso e de outros pacientes de anemia falciforme. Foi então que começou outro passo na minha vida pessoal. Aprender a lidar com um novo medicamento, eficiente para o que estava ocorrendo comigo, mas que produzia efeitos colaterais difíceis. No meu caso, tive durante o processo vários problemas de infecções da perna, sobretudo na canela. Foram várias erisipelas e algumas escamações na pele. As unhas também sofreram com o medicamento, com aquele característico traço preto, ainda que discreto. Uma das unhas do pé ficou bem comprometida. Além disso, o meu corpo foi escurecendo. Não cansava de responder a amigos que perguntavam continuamente sobre a temporada de praia que me deixou assim queimadinho. Tenho aqui em casa uma foto na minha sala, onde estou com Teita, e é impressionante como estou escurecido. Ela adora a foto, por isso a deixei na sala. É uma fotografia que sempre me faz recordar a medicação. Fiquei parecido com um indiano. Foi algo impactante. Fazia na ocasião acupuntura, e o meu médico ficava impressionado como tudo se transformava continuamente ali naquele âmbito interior, sobretudo na língua e suas proximidades. Foi também um tempo de muitas aftas, às vezes cinco ou seis ao mesmo tempo. Tive que acolher essa realidade como parte do meu caminho, e o fiz com tranquilidade. Foi impressionante o apoio que tive durante todo o tempo de minha companheira, Teita, e também dos filhos e alguns amigos queridos. Os exames de sangue eram feitos mensalmente, e toda vez que ia verificar o resultado pela internet, aquele friúme na barriga. Utilizei o caminho da oração, que precedia cada visualização mensal. Isso fez muito bem para mim.
Chegou a um momento do tratamento, quando estava com 55 anos, em 2010, nunca me esqueço, durante a consulta rotineira, o meu médico, de sopetão, fez uma pergunta difícil para mim: “Qual a sua idade? Quantos irmãos você tem?” Parou, pensou e lançou o petardo: “Penso que não é o caso de fazer um transplante de medula...”. Foi a primeira vez que ouvi dele a sugestão da ideia. Aquilo provocou um terremoto em mim, e demorou para processar no mundo interior. Teita estava comigo na consulta, e também ficou impressionada. A partir daí tive que colocar essa hipótese no horizonte, e digo sinceramente para vocês que não foi fácil.
Utilizei por anos o recurso da hidróxiuréia, mas sentia que o meu médico tinha preocupação de manter esse procedimento por muitos anos, em razão do risco futuro que podia proporcionar. O seu medo maior era o de uma leucemia aguda. A polissetemia vera pode evoluir de várias formas, uma delas é a leucemia. No meu caso, o que ocorreu foi uma fibrose da medula: mielofibrose. Descobri através de um dos procedimentos mais dolorosos que já passei na vida, que é a biópsia de medula. Tive que fazer no início do tratamento para constatar a policitemia vera. Fiz uma segunda vez para verificar o grau de fibrose da medula, que já estava avançado: grau 3 em 4. Isso também foi algo que abalou a minha consciência na ocasião. Vi que a situação não estava assim tão fácil.
Veio então, um pouco depois, a decisão de mudar de medicamento. O meu médico estava esperançoso com um novo medicamento, na ocasião ainda em experimentação, que poderia servir de grande apoio no meu caso. Quando ele entrou no mercado, entramos com processo para poder adquirí-lo pelo SUS. Arrumei uma advogada e por cerca de um ano o processo rolou, e fui vitorioso. Tinha também tentado duas vezes pelo meu plano de saúde, Unimed, uma aprovação, que não veio. Foi um ano em que a doença evoluiu e não conseguia o medicamento adequado para o tratamento. Isso foi logo em seguida à segunda biópsia, que revelou a Mielofibrose. Isso foi um pouco antes de minha aposentadoria na UFJF, que aconteceu em 2017. Passei por uma banca médica de avaliação na Universidade que reiterou a posição do meu médico. A sorte estava, porém, ao meu lado, pois no final do ano que venci o processo no SUS, o medicamento JAKAV (Ruxolitinide) saiu na lista da Anvisa, e então o plano de saúde teve que acolher a minha solicitação.
Passei então a tomar dois comprimidos diários de Jakav, um medicamento extremamente caro, mas muito eficaz. Na ocasião tomava já seis mediantes ao dia, e com ele, passei a tomar 8. Não teria nenhuma condição de bancar a compra do remédio. Como disse o meu médico: “Não é para o meu bico!”. Era um medicamento de alto custo, mas que a cada mês, religiosamente, chegava em minha casa garantindo o tratamento. Fiz o tratamento por dois anos, quando então o meu médico começou a aventar aquela antiga hipótese. Tinha receio de que o uso prolongado do Jakav poderia ocasionar alguma falha, como é verificado na prática clínica. Também não era um medicamento isento de efeitos colaterais. Muita coisa melhorou na vida: a disposição, a coloração, que voltou ao normal, e a melhora nas aftas. Praticamente deixei de habitar com elas. Outros efeitos, porém apareceram, sobretudo na pele: as escamações, a coceira, a sudorese noturna, os calafrios que me tomavam de vez em quando. A exposição a vários medicamentos de uso contínuo alterou também o meu paladar, que nunca mais foi o mesmo. Tudo que como ou bebo, tem sempre um acréscimo diferencial. Mesmo a água fica com um sabor amargo. Alguns alimentos ainda dá para perceber o gosto, mesmo que de forma um pouco obtusa, mas outras causam grande dessabor... Mas como com as outras coisas, fui me adaptando e buscando continuar a levar a vida com a alegria de sempre. Dos efeitos colaterais, o pior ocorreu no couro cabeludo. Tive uma infecção por pseudomonas que não houve jeito de me livrar, nem com o uso contínuo de antibióticos. Ela tornou-se minha companheira de jornada. Depois de certo tempo, fui para o método natural, com o recurso ao vinagre de maçã no couro cabeludo diariamente. Um procedimento apenas paliativo. Na hora melhora um pouco, mas depois retornam as coceiras, os incômodos, a ardência e irritação. São espinhazinhas por todo canto, e aquela sensação dolorida que dificulta até pentear os cabelos. Mas assumi isto também como parte de minha trajetória.
Veio então a decisão de meu médico para uma terceira biópsia de medula, sempre tão dolorida. No final da segunda biópsia tinha chegado a dizer ao meu médico que seria preferível morrer a ter que passar pela nova experiência. Foi apenas um grito/desabafo momentâneo, que não expressava a realidade das coisas. Mas foi duro! As três biópsias fiz sem anestesia apropriada. Apenas uma anestesia local que não ameniza a IMENSA dor que passei as três vezes que tive que fazer o procedimento, agarrando na mão de Teita e suando frio como nunca! O resultado do terceiro exame foi favorável, o grau de fibrose tinha regredido para 1, o que foi avaliado como muito positivo. Então, numa consulta, o meu médico sugeriu o transplante de medula, agora animado por uma razão prática: eu tinha 65 anos e o procedimento do transplante só é permitido até essa idade. Como faço aniversário no início de julho, tivemos que apressar os procedimentos preparatórios. Escolhemos quatro irmãos para fazerem o exame de compatibilidade, e um deles – o Henrique – foi compatível. Aí mais uma batelada de exames, de toda ordem, para preparar a internação. Depois de tudo realizado, era só marcar o transplante. Veio então a pandemia que adiou um pouco o procedimento. Tudo fica mais difícil com ela, até para conseguir os doadores de sangue, que são necessários nesse momento preparatório. O centro de medula óssea também fechou por causa da pandemia, e só reabriu na no final de maio. Então era chegada a minha hora. Foi marcada minha internação para o dia 12 de junho e o transplante para o dia 23 de junho. Temos antes que fazer o exame do Covid, para garantir a segurança do procedimento, e isso será feito no dia 10: eu, Teita e Henrique. Eu me interno primeiro, e depois o Henrique, por um dia, para fazer o procedimento. Ele também terá que fazer uma preparação de quatro dias para garantir o sucesso da doação.
Eu tomei todas as precauções para estar bem preparado interiormente e espiritualmente para esse novo passo na minha vida. Recorri a medicamentos para ajudarem no equilíbrio, busquei ajuda terapêutica, fazia massagens semanais e também recorri à acupuntura. O meu estado pessoal ficou nos trinques para lidar com esse novo “tranco”. Curiosamente, estou vivendo a preparação com muita tranquilidade e ansiedade mínima. Desde muito cedo na vida aprendi a lidar com a finitude e a contingência. Para vocês terem uma ideia, desde que terminei meu doutorado, em 2005, passei a sofrer de um transtorno de ansiedade que refletia nas mãos em momentos de maior tensão. Tive que lidar com isso, encontrando artimanhas e criatividade para driblar o problema, e tive sucesso. Tenho uma remota lembrança de ter tido episódios de ansiedade na juventude, e mesmo na infância. Um medo, provocado pelos irmãos. Em certos dias, para lidar com isso, tinha que dormir num ambiente mais “protegido”, como num caixote que tinha dentro do armário do meu quarto. Tudo bem fechado e protegido. Outras vezes, buscava aconchego na porta do quarto de minha mãe. Mais tarde, sobretudo depois do doutorado, tentei vária terapias, sem sucesso: lacaniana e cognitiva. Mais recentemente comecei uma terapia freudiana que foi importante, e a terapeuta é uma pessoa especial. O processo veio interrompido com a pandemia, para retornar mais adiante. O meu orientador de doutorado, o pe. Felix Pastor, que já nos deixou, dizia uma frase muito sábia, que muito ajudou no meu processo pessoal. Ele dizia: “Nós nos preparamos para ir, mas não para retornar”. Fazia menção ao doutorado no exterior. No meu caso, foram quatro anos intensos de muito trabalho e responsabilidade. Durante o processo não tive crises, como acontece normalmente com os doutorando, mas a crise veio quando recebi o diploma. Aí veio uma neblina forte que demorou a sair, temperada com angústias e insônias difíceis. Ao chegar ao Brasil, depois de quatro anos de ausência ininterrupta, não consegui corresponder à alegria dos parentes que me receberam no aeroporto. Estava meio triste e aéreo. Na verdade, nem sabia mais como começar os meus curso na PUC, naquele momento particular de ansiedade. A sorte é que cheguei num período de férias, e tive o apoio carinhoso de Ana Maria Tepedino, quando tive que iniciar os cursos: ela praticamente me pegou nas mãos e me levou aos alunos, proporcionando um clima de tranquilidade que foi essencial. Curiosamente, com essa questão do transplante, ele praticamente sumiu da minha vida, depois de 35 anos de luta para enfrentar as situações que provocavam minha ansiedade.
Em síntese, nossa vida é feita de limitações e contingências. Cada um tem as suas. Cada um tem seu lado ranzinza, seu vícios, suas dores, seus empecilhos. O desafio que se coloca para nós, é ter ou buscar a devida tranquilidade para lidar com os problemas tendo sempre a esperança como lume. Foi essa a estratégia que escolhi para lidar com meus problemas, mas sempre mantendo acesas a alegria e o entusiasmo, com a ajuda preciosa dos meus queridos e dos meus amigos.
Em telefonema com o meu médico, ontem, dia 06, ele me pediu para solicitar aos amigos de Juiz de Fora, a doação de sangue, que será muito importante para o sucesso da empreitada. Quem estiver disponível, é só ligar para o hemominas de Juiz de Fora, e agendar a colheta. Tudo é feito com muita segurança nesse tempo na Covid. Não importa o tipo sanguíneo, é só indicar que a doação está sendo feita para Faustino Teixeira.
Isso aí amigos, como dizia meu pai saudoso, tudo vai dar certo! Paz e Bem.