quinta-feira, 26 de março de 2020

Essas pessoas na sala de jantar

ESSAS PESSOAS NA SALA DE JANTAR

Faustino Teixeira

Fico extremamente feliz ao perceber que os articulistas brasileiros começam a explicitar que esse problema do coronavírus tem a ver com nossa ação predatória sobre a Terra. Não há há como dissociar o que vem ocorrendo com essa expansão do vírus com a dinâmica do Antropoceno.

Nesse sentido, o fabuloso livro de Isabelle Stengers, "No tempo das catástrofes" (2009) ganha uma atualidade impressionante. O seu grande valor foi apontar um outro lado de "Gaia" que nem sempre está presente na nossa visão romântica: da Gaia Mãe, da Gaia Protetora. O que Stengers nos apresenta é uma face bem mais complexa e "ameaçadora":

Gaia, diz Stengers, é uma mãe mais "irascível, que não se deve ofender. E ela é anterior à época em que os gregos conferem a seus deuses o sentido do justo e do injusto, anterior à época em que eles lhe atribuem um interesse particular por seus próprios destinos. Tratava-se, antes, de ter cuidado para não ofendê-los, para não abusar de sua tolerância".

Gaia, na verdade, vem hoje abordada por um grupo de filósofos, antropólogos e biólogos, como "um ser". E a autora continua: "Já não estamos lidando com uma natureza selvagem e ameaçadora, nem com uma natureza frágil que deve ser protegida, nem com uma natureza que pode ser explorada à vontade."

Como relata Stengers, "a hipótese é nova. Gaia, a que FAZ INTRUSÃO, NÃO NOS PEDE NADA, sequer uma resposta para a questão que se impõe. Ofendida, Gaia é INDIFERENTE à pergunta ´quem é responsável?`e não age como justiceira - parece que as primeiras regiões da Terra a serem atingidas serão as MAIS POBRES DO PLANETA, sem falar de todos esses viventes que não têm nada a ver com a questão".

Mais adiante, Stengers sublinha que "teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas (...). Não haverá resposta se não aprendermos a articular luta e engajamento nesse processo de criação, por mais hesitante e balbuciante que ele seja".

Em linha de fina sintonia com a reflexão de Stengers, Eliane Brum em artigo do El Pais (25/03/2020), toca na nervura da questão:

"A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O INIMIGO SOMOS NÓS. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra."

Vamos então, gente, tentar tratar essa complexa e dolorosa questão do coronavírus a partir desta nova perspectiva. Temos, sim, que mudar o nosso modo de habitar a Terra, pois senão outras epidemias, ainda mais violentas e necrófilas, estarão nos aguardando...

E outras quarentenas virão, ainda mais longas, para serem vividas em nossas salas de jantar:

"Essas pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer"

sábado, 21 de março de 2020

Tempo de Solidariedade

Tempo de solidariedade 

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF



O que estamos vivendo no Brasil nesses dias e que vai se acentuar no mês de abril é um TEMOR fora do controle. Agora é que vai caindo a ficha na população, sobre a gravidade da situação. As imagens que vemos da Itália são atemorizantes e muito tristes. O número de mortos ali já passa de 4.032. Só ontem, dia 20, morreram 627. Não há quem não se comova diante daquele corteja de caminhões militares transportando os mortos... Está faltando terreno para enterrar os que faleceram. Tudo é muito triste. 

Escrevia num texto recente sobre o temor da peste que sempre ameaçou a humanidade. Em tempos passados a situação foi bem difícil, como na Idade Média, com o medo das epidemias, particularmente a peste. Como dizia o historiador Georges Duby:

“É o fogo do mal dos ardentes que queima as populações do ano 1000 Uma doença desconhecida que provoca um terror imenso. Mas o pior está por vir: a peste negra devasta a Europa e ceifa um terço de sua população durante o verão de 1348”.

                  Em artigo no El País, de 18/03/2020, o escritor Mario Vargas Llosa falava desse temor da peste, como um dos “maiores pesadelos da humanidade”. Naquela ocasião, porém, a peste era vista como coisa do demônio, que deixava os seres humanos desarmados e afogados no caos do sem sentido. O velho terror, como diz o escritor, não desapareceu jamais. Vira e volta ele retorna com alguma epidemia universal, como é o caso hoje do Coronavírus. Assis como ocorreu com outros vírus que tomaram conta de regiões da humanidade, esse também vai passar, mas o que não passará jamais é o “medo da morte”. Esse permanece, como tão bem mostrou Ingmar Bergman no filme “O sétimo selo”. A gente pode brigar com ela, buscar razões plausíveis para esvaziar a mente de sua presença desinstaladora, mas ela retorna com vigor. É um temor que se aninha no coração. Como diz Llosa, a religião busca aplacar esse medo, e às vezes consegue, de forma impressionante. Como indica Berger, numa de suas frases mais célebres da obra “O dossel sagrado”, “a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo”. Émile Durkheim também mostrou em sua obra sobre “As formas elementares da vida religiosa” o poder da religião, um poder de enfrentar e vencer o sofrimento, com sua força dinamogênica. Tem em verdade um “poder” especial para lidar com o “mundo em pedaços” (Geertz).

            Quando dei meu curso sobre o Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, no segundo semestre de 2019, defrontamos com essa questão ao tratar o momento do livro, fortíssimo, que fala da epidemia de varíola que tomou conta de uma região do sertão. A descrição do romancista sobre o episódio é impressionante. Aquele povoado – a gente do Pubo – ficou isolado com a peste e o preconceito. As estradas que levavam à região estavam também resguardadas, como hoje... A coisa era tão grave, que eles nem estavam enterrando mais os defuntos. O que Riobaldo mais queria era sair daquele inferno, passar adiante; o “inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade”. Aquela “horrorosa doença” reinava “por cima da pior miséria”. É o que também poderá ocorrer aqui no Brasil em breve se não houver uma decisão política, pública, de defesa da saúde. Ainda no romance de Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo refletia: “Eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos”.

            Para enfrentar tudo isso Riobaldo se cercou da proteção de todos os santos e rezas, e conseguir fazer a travessia. Tinha no fundo da alma uma convicção: “Deus é paciência. O contrário é o diabo”. Tinha certeza da força da religião, da “reza que sara da loucura”, e então deixou-se envolver pelo diversificado repertório delas: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas”. Para enfrentar a diversidade, sabia da força singular de Deus, que “faz é na lei do mansinho” e “ataca bonito, se divertindo”.

            Para enfrentar essa adversidade que nos acomete hoje com o coronavírus, vale também o sábio conselho do papa Francisco, talvez uma das poucas lideranças no tempo atual que está lidando de frente com o sufoco desse vírus implacável. Sua presença e sua fala estão tendo um impacto de serenidade que é essencial para todos nós. Não se fecha no seu mundo, mas vai para rua, evidenciando sua tese de uma “igreja em saída”. E vem nos convocar para a atenção aos pequenos gestos, nesse momento duro de confinamento:

"Precisamos reencontrar a concretude das pequenas coisas, das pequenas atenções em relação aos que estão próximos, familiares, amigos. Entender que nas pequenas coisas existe o nosso tesouro. Existem gestos mínimos, que às vezes se perdem no anonimato da vida cotidiana, gestos de ternura, de afeto, de compaixão, que, no entanto, são decisivos, importantes. Por exemplo, um prato quente, um carinho, um abraço, um telefonema ... São gestos familiares de atenção aos detalhes do dia a dia que fazem a vida ter sentido e que exista comunhão e comunicação entre nós (...) Às vezes, vivemos entre nós apenas uma comunicação virtual. Em vez disso, deveríamos descobrir uma nova proximidade. Uma relação concreta feita de atenção e paciência."

            Para este tempo de quaresma, de preparação para a Páscoa – festa central para os cristãos – Francisco aconselha “penitência, compaixão e esperança”. E também muita humildade. Um tempo também de oração, onde possamos viver de frente, e sem temor, nossa situação de vulnerabilidade e finitude. Não é, porém, motivo ou razão, para fechamento ou ensimesmamento, mas tempo kairológico de exercício de compaixão e solidariedade. Neste tempo propício não há separação entre crentes e não crentes, mas uma corrente igualitária de solidariedade que rompe as fronteiras de crença, raça e gênero, e nos lança ao desafio essencial de serviço ao outro. Francisco sinaliza que estamos diante de uma “emergência planetária” e ninguém pode ficar fora do compromisso comum com os mais sofridos.
            

quinta-feira, 19 de março de 2020

A dimensão espiritual da crise do coronavírus

A dimensão espiritual da crise do coronavírus

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


"Eles passavam em multidões, olhando para o céu. Seus olhos eram como abismos jubilantes, e nesses olhos vi a síncopa do voo. Vinham com passo deslizante, cobertos de flores (...). Eu, um mendigo cego e trêmulo, parado à beira da estrada, e dentro da minha alma de mendigo a mesma ideia continuava repetindo: grite para eles, conte - oh , conte que na mais esplêndida das estrelas de Deus existe uma terra - que está morrendo em agonizante escuridão"[1].

Introdução

            Estamos vivendo hoje em ordem planetária um momento de crise muito forte. A presença irradiadora do Coronavírus desestruturou todos os mundos socialmente construídos. O Ser humano, como diz Peter Berger, precisa de um mundo socialmente ordenado. O que ocorre nos últimos meses em âmbito mundial é uma desestruturação de mundo. O universo simbólico vem balançado como um furacão, levando grupos inteiros à experiência da anomia. O medo volta a tomar conta da sociedade, desequilibrando todos os mecanismos de engenharia social voltados para manter o mundo significativamente em pé. As estruturas de plausibilidade se vêm abalados pelo “caos”. Na visão de Berger, que compartilho, “a constante possibilidade do terror anômico torna-se atual sempre que as legitimações que obscurecem esta precariedade são ameaçadas ou entram em colapso”[2]. Em momentos de forte crise, como a que estamos vivendo, fica muito mais difícil o exercício de canais legitimadores do campo da plausibilidade do sentido, uma vez que ficam fragilizadas as práticas normais destinadas “a silenciar dúvidas e prevenir lapsos de convicção”[3]. Com a entrada irrompente e impetuosa do Coronavírus no cenário mundial, reaparece com energia inusitada o medo, que ronda os países, as cidades, as casas e as pessoas. 

O quadro das pandemias que assolaram o nosso tempo

Essa não é a primeira nem será a última pandemia vivida em nosso tempo. Em 1918 tivemos a gripe espanhola, que contaminou 500 milhões de pessoas[4]e ceifou entre 17 e 50 milhões de vítimas. Em 1957, foi a vez da gripe asiática, com outros milhões de mortes. Em seguida outras tantas epidemias quebraram o ritmo cotidiano da vida das pessoas, como a gripe de Hong Kong (1968), a gripe suína (2009), a SARS (2003), o HIH-Aids (a partir de 1981), o Ebola (2013), e a Zica (2015)[5]

Em tempos mais remotos, como relata o historiador Jean Delumeau,  outras epidemias que acometeram a humanidade geraram muito pânico, como a peste entre os séculos XIV e XVIII. Mas outros contágios estiveram presentes: o Tifo nos exércitos da Guerra dos Trinta Anos; também a Varíola, a Gripe Pulmonar e a Disenteria, todas ativas no século XVIII) Também o Cólera, que marcou presença no século XIX [6].

            Outro historiador francês, Georges Duby, fala do medo das epidemias que marcou períodos importantes de nossa história, como no ano mil. Ele relata:

“É o fogo do mal dos ardentes que queima as populações do ano 1000. Uma doença desconhecida que provoca um terror imenso. Mas o pior está por vir: a peste negra devasta a Europa e ceifa um terço de sua população durante o verão de 1348. Como a Aids para alguns, essa epidemia é vivida como uma punição do pecado”[7].

            E quando um terço da população vem dizimada por epidemias, como mostra Duby, as consequências sociais e psicológicas são imensas, com repercussões vivas no campo cultural. Foi, porém, a partir do século XIV que grandes catástrofes sanitárias começaram a ocorrer, como no caso da peste negra: “Ela era transmitida essencialmente pelos parasitas, principalmente as pulgas e os ratos. Era uma doença exótica, contra a qual os organismos dos europeus não tinham defesas”. Ela vinha da Ásia pela rota da seda e foi devastadora. Era um dos efeitos do progresso e do crescimento[8].

Hoje vamos nos dando conta com cada vez mais clareza sobre o traço da terra como Gaia, mas a Gaia intrusa que provoca mal-estar. Gaia como um “chamado a resistir ao Antropoceno”. Na verdade, “o inimigo somos nós”, os “humanos”[9]. Como dizem Danowski e Viveiros de Castro, “há sobretudo, gente de menos com mundo demais e gente demais com mundos de menos”[10]. Dizem ainda esses autores que já podemos ter saído da zona de segurança em pelo menos três processos – a taxa da perda da biodiversidade, a interferência humana no ciclo do nitrogênio e as mudanças climáticas,  estando perto de outros limites relacionados ao uso da água doce, da mudança no uso da terra e a acidificação dos oceanos[11].

Como diz Daniel Teixeira, em texto publicado no IHU, nessa crise global que vivemos temos uma oportunidade única de “repensar radicalmente nossas práticas e modos de estar no mundo, quando mais do que nunca o indivíduo como categoria não dá conta dos seres sociais que somos”[12].

Os temores que rondam o Coronavírus

            O colunista do jornal Folha de São Paulo, Antonio Prata, traduz em seu texto o dado que todos temiam: “A grande ficha cósmica finalmente caiu: habemus pandemia[13]”. Com o novo vírus o panorama se transforma. As universidades se fecham, os restaurantes se esvaziam, os grandes shoppings mudam drasticamente o seu ritmo, os controles sobre circulação de pessoas apertam, e ocorre o passo difícil do recolhimento dos indivíduos no “antiisséptico aconchego do lar”. Na nova conjuntura, as redes sociais ganham importância singular: são sete bilhões e setecentos milhões de pessoas se comunicando em rede, vinte e quatro horas por dia. Talvez o mais difícil será mesmo as primeiras semanas de confinamento, sobretudo para aqueles que não estão acostumados à experiência de retirada do mundo social. Em seguida, pode até ocorrer, positivamente, como alerta Prata, a emergência de habítos antigos e salutares do século passados, já esquecidos, como as conversas em família, a leitura de livros, a prática de jogos caseiros como o War. Uma ocasião propícia, igualmente, para o refazimento dos laços e contatos.

            O que assistimos hoje em muitos países é o que o antropólogo Bruno Latour definiu como “o sentimento de perder o mundo”. Fazia menção ao sentimento que ganha terreno na população mundial em razão dos acontecimentos relacionados à mudança climática, mas pode muito bem ser aplicado à atual catrástrofe epidemiológica. Sublinha Latour,

“Antes, a angústia que a natureza nos causava vinha do fato de que éramos pequenos demais, e a natureza era imensa. Agora temos o mesmo tamanho, influímos em como a Terra se comporta. E é desorientador, por exemplo, para os jovens que se manifestam [contra a mudança climática]. Da extrema esquerda à extrema direita, todas as posições políticas estão marcadas pela angústia.[14]” 

                  Assim como Bruno Latour fala em sentimento de “perda do mundo”, Luis Nacif fala em “tempo de incertezas” e Zizek em “estado de medo”. A médica e psicanalista italiana, Simona Argentieri, professora da Associação Italiana de Psicanálise, explica como todos fomos pegos de surpresa com essa crise no Covid 19, estando “despreparados para a emergencia”[15]. Estudiosa do campo da família, a especialista italiana fala sobre as repercussões da quarentena forçada a que estão submetidas as pessoas:

“Imagino que vamos ver de tudo. Por um lado, há a esperança de que este seja um momento de redescoberta da intimidade, dos valores primários, do diálogo e da união; por outro lado, a família pode se tornar o local máximo da intolerância, o ambiente onde descarregar a raiva, lançar acusações mútuas. Para muitos de nós, o ´fora` era um meio importante de equilíbrio; de investimento intelectual e emocional, essencial para não colocar na linha de frente os déficits dos relacionamentos de casal ou as dificuldades entre pais e filhos. Faltará também aquela preciosa ´zona intermediária`, que são os relacionamentos com os amigos. Não vamos esconder que a situação é muito difícil.[16]

                  O tema também foi objeto do recente livro da estudiosa italiana, Nicoletta Gosio, Nemici miei. La pervasiva rabbia quotidiana (Inimigos meus. A disseminada raiva cotidiana), publicado pela editora Einaldi (2020). Ela aborda ali o clima de intolerância que vem marcando as relações quotidianas, incluindo as relações familiares. Com a reclusão imposta pelo coronavírus, as relações familiares vão sofrer, certamente, impactos importantes, com a irrupção de desequilíbrios e tensões que vinham amortecidos com as “fugas” providenciais que acabavam por ajustar as tensões e o desequilíbrio no campo familiar. 

            Junto com a irradiação do coronavírus, o risco crescente da xenofobia. É o que mostra Donatella di Cesare no cotidiano comunista, Il Manifesto(01/03/2020)[17]. Trata-se do “medo do estrangeiro, da xenofobia, que impulsiona a erigir barreiras e muros, do medo de tudo que vem de fora, e que obriga as pessoas a fecharem-se em seus nichos, a imunizar-se e proteger-se”. É o que o psicanalista italiano, Massimo Recalcati, chama de “retirada fóbica do mundo”. Toda a crise instalada servirá, também, de pretexto para um novo tempo de demarcação de fronteiras e protecionismo, com consequências sociais nefastas.

As possibilidades oferecidas pelo coronavírus

            O Covid-19 não encerra apenas temores, mas oferece igualmente possibilidades singulares para o nosso tempo. Como indicou o historiador Massimo Faggioli, trata-se também de um “momento extraordinário para o mundo”[18]:

“´Se você tem um diário, continue escrevendo. Se você não tem, comece um. Este é um momento extraordinário.` Foi o que eu disse aos meus alunos de graduação no início da nossa última aula presencial no dia 11 de março, pouco antes do intervalo de cinco semanas decidido pela Villanova University.[19]

É um momento kairológico, extraordinário, que pode possibilitar um campo novo de reflexão para as religiões, igrejas e espiritualidades do mundo. É um tempo que provoca também humildade, como sinalizou o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker:

“Do ponto de vista de de nossa angústia, o coronavírus não poderia ter um nome melhor: ele nos tira do trono de nós mesmos e coloca a coroa de nossas vidas em sua justa dimensão. É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa em nossa época: a humildade. Diante desta pequena e destrutiva força da natureza, nosso narcisismo se dobra como um vassalo encurralado. Apesar de dolorosa como um espinho na alma, esta pode ser uma experiência profundamente transformadora. Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos pode ser muito benéfico. Pode ser uma verdadeira terapia para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso de sua coroa de espinhos narcísicos.[20]

            É igualmente uma oportunidade de “novas sociabilidades”, como apontou Marco Lucchesi, presidente da Academia Brasileira de Letras, em entrevista ao jornal O Globo:

"A epidemia vai trazer novas sociabilidades. É o momento de reconfigurar novos fluxos, novas biopolíticas. Esta ´peste` metafórica, por assim dizer, nos ajudará bastante a reinventar o nosso lugar, a nossa janela, a nossa relação social e as nossas instituições culturais. Não vai faltar essa capacidade, seja com trabalhos online, seja diálogos compartilhados de forma mais ampla”[21].

Curiosamente, o terremoto do coronavírus acabou favorecendo a diminuição do aquecimento global, na medida em que a situação gerada pelo vírus diminuiu menos um milhão de toneladas de dióxido de carbono (CO2)  por dia. Pelo que se pode observar, “as emissões mundiais de CO2 podem reduzir-se este ano em cerca de 7%, um valor próximo do que o planeta deve atingir em 2020 com os esforços dos países para cumprir o Acordo de Paris sobre alterações climáticas”[22].

            Vislumbra-se ainda uma possibilidade bonita, de emergência do sentido nobre da solidariedade. Como indicou o pensador italiano Massimo Recalcati, “a liberdade separada da solidariedade é puro arbítrio”. O que nos vem à mente de forma singela, é o exemplo do papa Francisco, abençoando todos numa Praça de São Pedro vazia, e depois caminhando na Via del Corso, em Roma, em direção à Igreja de São Marcelo, onde está o crucifixo milagroso que em 1522 foi levado em procissão pelos bairros de Roma para abençoar a cidade tomada pela Grande Peste. O gesto de Francisco foi lembrado por muitos pensadores e articulistas, como Claudio Monge, Enzo Bianchi, Luiz Alberto Gómez de Souza e também o vaticanista Marco Politi. Este último, em artigo no jornal Il Fatto Quotidiano, de 17/03/2020, sublinhou que Francisco, como bispo de Roma, quis “romper o assédio do vírus”, e convocou a abertura de todas as igrejas romanas para o acolhimento do povo[23]. Queria indicar que a igreja “respeita todas as normas sanitárias, mas não fecha”, não pode fechar. É verdadeiramente uma “Igreja de saída”, aberta aos excluídos e que sofrem. Ao final do Angelus de 15 de março de 2020, Francisco bradou: “Nessa situação de pandemia, em que estamos a viver mais ou menos isolados, somos convidados a redescobrir e aprofundar o valor da comunhão que une todos os membros da Igreja”[24]. Nas recentes celebrações de Francisco na capela de Santa Marta, Francisco tem fornecido um apoio essencial, convocando os fiéis a recuperarem a verdadeira solidariedade, afetividade e a criatividade em família; uma presença terna nesses momentos de isolamento e dor, de “globalização da indiferença”.

Um tempo propício para a Espiritualidade

            O Coronavírus tem obrigado as pessoas a ficarem reclusas e isoladas. Nem todos têm esse hábito de recolhimento e solidão. É uma realidade que pode, positivamente, suscitar uma “chispa” de vida espiritual, de entrada no mundo interior e retomada de um caminho distinto para a vida. Um tempo propício para começar a “desintoxicar o nosso modo de vida”, para além do fechamento egoísta e da fixação identitária,  como mostrou Edgar Morin[25]. Temos assim a possibilidade única de buscar uma “vida de baixa definição”, para utilizar uma expressão de Thomas Merton; de romper o ritmo frenético de nossas atividades, dessa sede de produtividade e consumo para auscultar o mundo interior. A felicidade, diz Merton, “não é questão de intensidade, mas de equilíbrio, de ordem, de ritmo e de harmonia”[26].

            Os tempos de crise são favoráveis à vida espiritual, pois convocam as pessoas ao ritmo de adentramento. Abre-se a rota do caminho interior, do “ponto virgem”, suscitando energias singulares para enfrentar o ritmo sombrio das dificuldades e recuperar o tecido da alegria. A espiritualidade, como diz Leonardo Boff, é inspiração para um “horizonte de esperança e de capacidade de auto-transcendência”. Ela é capaz de provocar em nós mudanças substantivas e apontar caminhos jamais traçados e que são essenciais para a nossa sanidade. A espiritualidade é o momento “necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação” e o “espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”[27].

            A espiritualidade convoca-nos ainda para algo que é essencial e que estamos perdendo nos tempos atuais: a reverência para com a natureza e todas as criaturas. Ela nos ajuda a repensar nossa postura no mundo, a reconduzir o nosso olhar e suscitar uma nova atenção e sensibilidade. Como diz o grande Ailton Krenac,

"Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente"[28].

                  Como dissemos anteriormente, essa epidemia vai passar, mas não vai ser a última. Muitos morrerão, não há dúvida. E os que ficarão bebem dessa oportunidade de refletir sobre a impermanência e a não substancialidade do ser humano. É uma pandemia que nos ajuda a endender a nossa limitação e a precariedade de qualquer posição que defenda arrogâncias, excepcionalismos e auto-suficiências. Ninguém é e nem poderá ser auto-suficiente. Precisamos medularmente dos outros. Como diz Rilke na segunda elegia de Duíno:

“E aqueles que são belos, oh, quem os deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto e se dissipa. Tal o orvalho da manhã e o calor do alimento, o que é nosso flutua e desaparece”[29].

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[1]Vladimir Nabokov. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 786.
[2]Peter L. Berger. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 141.
[3]Peter L. Berger. Rumor de anjos. A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 66.
[4]27% da população mundial na época.
[5]Glauce Cavalcante. O Globo – 27/03/2020 - Economia, p. 23.
[6]Jean Delumeau. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 107.
[7]Georges Duby. Ano 1000 ano 2000 na pista de nossos medos. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 78.
[8]Ibidem, p. 81.
[9]D.Danowski e E. Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os meios e os fins. Cultura e Barbárie, 2014, p. 145.
[10]Ibidem, p. 129
[11]Ibidem, p. 20-21.
[12]Daniel Bustamante Teixeira. O novo coronavírus e as ecologias da plantation. IHU-Notícias, 18/03/2020:
[13]Antonio Prata. Quarentena on-line apocalíptica. Folha de São Paulo, 15/03/2020:
[16]Ibidem
[19]Ibidem.
[20]Christian Dunker. O tolo, o confuso, o desesperado e a coroa de espinhos. O Globo, 17/03/2020 – Segundo Caderno, p. 2.
[21]Marco Lucchesi. “A epidemia nos ajudará a reinventar o nosso lugar”. O Globo,15/03/2020 – Segundo Caderno, p. 6.
[23]Marco Politi. Coronavirus, il gesto de Francesco segna una distanza siderale dall irresponsabile Trump. Il Fatto Quotidiano, 16/03/2020: 
 (acesso em 18/03/2020).
[26]Thomas Merton. Homem algum é uma ilha. Rio de Janeiro: Verus, 2003, p. 117. Ver também a reflexão feita por Zizek a respeito: 
[27]Leonardo Boff. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 166.
[28]Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 30-31.
[29]Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 21.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Desfile da Mangueira 2020

“Eu vim para que todos tenham vida”. Impressões sobre o desfile da Mangueira em 2020

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

            Sempre fui um grande apaixonado pela Mangueira, desde meus tempos de menino. Nunca estive num desfile da escola na avenida, que imagino deve ser algo de arrepiar o coração. Neste ano de 2020 o interesse era ainda maior em razão do enredo escolhido, com destaque para o “Jesus da gente”. Estava realmente empolgado para assistir ao desfile, o que fiz pela televisão, ficando atento e desperto para uma explosão de alegria. 

            A Escola veio, como sempre imponente, com seus mais de 4.000 componentes, um número bem maior do que as outras Escolas que desfilaram na Sapucaí, em 19 alas e cinco carros alegóricos. O espetáculo se anunciava com a presença de uma imponente comissão de frente, comandada por Priscila Mota e Rodrigo Negri, retratando a realidade humana de Jesus, agora aproximado do excluído, do favelado, que participa da vida cotidiana daqueles que são marcados pela desconfiança da polícia e que tomam rotineiramente uma “dura” da polícia ao longo de sua jornada. Como mostrou com pertinência Anderson França em seu artigo na Folha de São Paulo (25/02/20), 

“foi na Sapucaí, um lugar onde a igreja afirma existir apenas para festas e sacanagem, foi nesse lugar, numa escola de samba, do mesmo povo negro, oprimido, pobre e do morro, um povo irmão e filho de Jesus, com Maria negra, com José negro, com doze discípulos negros, foi preciso a Sapucaí gritar a mensagem de amor das Boas Novas de Jesus, pois a igreja evangélica decidiu se calar e, em alguns casos, dar voz a Satanás, e destruir um país inteiro”.

                  A Escola se colocou em favor da luta do povo oprimido, como outras escolas igualmente fizeram, daquele povo que “numa noite, samba debaixo de holofotes e câmeras e, no dia seguinte, volta a ser alvo das miras das 762 da Polícia Militar do Rio de Janeiro ou de São Paulo ou de Sobral no Recife”. A escolha foi importante, particularmente nesse momento sombrio em que vive o Brasil. A Escola optou por apresentar “um Jesus não identificado com nenhuma instituição religiosa: um “Jesus da gente”, como canta o samba enredo de Manu Costa e Luiz Carlos Máximo. Como mostrou o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, em artigo no IHU-Notícias (26/02/2020), a Escola trouxe “uma forma inovadora de evangelização, que apresenta Jesus encarnado no mundo dos excluídos para salvar-nos e alegrar-nos sem pedir a aprovação ou autorização de alguma instituição religiosa”. E a proposta era bem clara, também indicada no samba enredo: “Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem messias de arma na mão”.

            O que vinha com vigor na avenida era uma “Estação Primeira de Nazaré”, de “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, do “moleque pelintra no buraco quente”. O que o carnavalesco Leandro Vieira queria mostrar para o público era um Jesus diferente, traduzindo e denunciando cenas corriqueiras presenciadas por ele desde 2016, quando passa pela comunidade que buscou retratar: 

“São incontáveis cenas de jovens pretos com a mão na cabeça, a revista no muro, a abordagem nos carros. Muitos reconheço como integrantes de algum segmento da Escola e isso embrulha o sentimento da gente. Nos últimos anos, subi o morro da Mangueira três vezes. Se eu contar pra vocês a pobreza que assola logo os primeiros becos de quem sobe o morro, vocês certamente não acreditariam. Saber que a Mangueira canta, assusta e emociona”.

                  Foi movido por todo esse sentimento que Leandro criou esse extraordinário roteiro, inspirado também por um canto de Cartola: “Habitada por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como pode Mangueira cantar?”. Como indicou o carnavalesco, esse verso “revira ao avesso”. Quis então colocar o verso em cena no projeto singular que marcou o roteiro da Escola.

                  Havia a marca infusa da Teologia da Libertação, com o privilégio dado aos pobres, à paixão dos pobres. E isso se viu retratado em várias alas, mas particularmente na ala “Bandido bom é bandido morto”, com aquela pletora de cruzes, de figuras ensanguentadas, relembrando o cenário vivo da dor dos pobres. Impressionante o monumento do Cristo negro, de altura imensa, com um jovem crucificado, com tatuagem e cabelo platinado. O foco centrava-se nesse personagem excluído, que retrata bem as principais vítimas da violência no Brasil: jovens, pobres e negros. Faltou a representação de Jesus como uma pessoa trans, como apontou Cris Serra em sua rede social, lembrada pelo teólogo André Musskopf (Revista Senso – 25/02/2020).

                  O Jesus que desfilou na Mangueira era o “Jesus dolorido”, numa representação comportada, com o claro intuito de não escandalizar tanto os padrões estabelecidos da religiosidade. Escandalizou, sim, pela dimensão do protesto social, presente não só na Comissão de Frente, mas também no Jesus revoltoso, representado por Humberto Carrão, que expulsa os vendilhões do templo. 

                  Faltou, porém, mostrar um outro lado da figura de Jesus, tão bem anunciada pelo mestre-sala Matheus Oliveira, com seu sorriso aberto, seus passos impecáveis, sua delicadeza e leveza. Era um Jesus negro, mas tomado de generosidade. Talvez tenha sido para mim o momento mais forte do desfile da escola, apesar do casal de Mestre Sala e Porta Bandeira não ter alcançado a nota máxima no desfile. Mas estava ali em germe o lado de Jesus que me encanta; do Jesus que desperta uma vontade de viver, que sinaliza a resiliência de um povo que não se deixa dominar pela apatia e resignação. De um povo, que como diz o samba canção, sabe “que a esperança brilha mais na escuridão”. É o Jesus que nós teólogos apreciamos tanto, e que foi magistralmente descrito no clássico livro de José Antonio Pagola (Jesus, aproximação histórica). Trata-se do Jesus curador e mestre da vida, do amigo das mulheres e das crianças, o poeta da compaixão. Não foi, porém, esse Jesus que predominou no desfile. Teria sido maravilhoso dar um destaque ao Jesus rodeado de crianças e mulheres, celebrando a vida, esse mínimo que é o máximo dom de Deus. Como assinala Pagola em seu livro, Jesus é alguém que provoca entusiasmo. Ao contrário do estilo austero de João Batista, Jesus nos traz um “estilo de vida festivo”, que é o estilo querido por Deus, de plenitude de vida.

                  Seria bonito ver o Jesus dialetizado, que reconcilia o Cristo sofredor e o Dionísio. O lado dionisíaco ficou mais na sombra, e ele poderia trazer com mais força o elemento luz de Jesus, que provoca a efusão e esperança. Do Jesus que vem anunciado pelo anjo no evangelho de Lucas como germe de “uma grande alegria” (Lc 2,10). O desfile da Mangueira podia pontuar com energia o “segredo” que se esconde nesse fascinante galileu que estremece o mundo há mais de dois mil anos, trazendo no peito o anuncio essencial: “Para que todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo, 10,10). Na minha opinião, esse deveria ser o grande lema do desfile, e não o que foi escolhido: “A verdade vos fará livre” (Jo 8,32 - “a verdade vos libertará”).

                  Leandro Vieira foi tocado pelo verso de Cartola que fala da dor da Mangueira que não pode cantar. Mas poderia igualmente ser tocado por outro verso do mesmo compositor da comunidade, na linda canção “O sol nascerá”, que canta: “A sorrir eu pretendo levar a vida”. Seria privilegiar o roteiro da resiliência e não simplesmente o da dor, enfatizando o passo do samba enredo que aponta a esperança “que brilha mais na escuridão”. Seria seguir a indicação da jovem poeta portuguesa, Matilde Campilho, que nos convida a dançar sobre os escombros. Essa alegria conseguimos perceber na linda ala das baianas, que destoava daquele ritmo ensombrecido. Elas estiveram lindas na avenida, num figurino magnífico.

                  Nessa linha de reflexão, teríamos elementos mais fantásticos para fazer explodir de alegria a arquibancada na avenida, que não reagiu com tanto entusiasmo à passagem da Escola. Foi um desfile que poderia ter trazido muito mais emoção. A própria melodia da linda composição do samba enredo não contribuiu para esse contágio popular. Foi uma melodia que não empolgou o público, e era difícil de ser cantada. O elemento dolorista da paixão predominou sobre a ressurreição, que ficou relegada a um segundo plano, e que apareceu discretamente no final do desfile, mas carente de força simbólica.

                  Não consegui entender a razão daquela sombria ala da bateria, tomada pela cor escura, com seus componentes dessaranjados com baclavas negras e caveiras na face. O figurino era sombrio, que tensionava com o espírito de uma fantástica bateria. E isso para poder aludir ao exército romano e sua postura brutal e truculenta. Teria escolhido algo bem diverso, pois a bateria é a alma de uma escola. Ela deveria transparecer o espírito de alegria do Mestre Sala, com sua exuberância e alegria.

                  A ala que trazia o bom pastor com sua ovelhas pecava pela pobreza estética. Nos evangelhos, a cena do bom pastor é maravilhosa: daquele que dá sua vida pelas ovelhas, que as conhece muito bem, e por elas dedica um carinho tão especial. Elas o reconhecem pelo seu suave assovio. O que vimos na avenida foi uma apresentação estética empobrecida, com as ovelhas caídas ou dependuradas nos ombros dos passistas, com uma expressão de mortandade. Tudo podia ser bem diferente, quem sabe com os passistas trazendo as ovelhas no colo, sendo acariciadas com ternura.

                  O desfile podia mostrar com muito mais vigor o que expressou Leandro Vieira, ao falar dos bastidores da criação: “É preciso ver heroísmo nessa gente”. O fato de tratar um tema central dos evangelhos, a presença do Jesus da Gente, não poderia ser motivo de acanhamento ou moderação. Não há nenhuma contradição entre samba e evangelho. Aliás, o samba é uma forma de oração: “Teu samba é uma reza”. Daí não entender os motivos que levaram o carnavalesco a “bloquear” o samba vivo e aberto da rainha da bateria, que desfilou comportadamente, sem nem mesmo sambar. Ela deveria estar ali na frente com toda a sua alegria e samba no pé, com as marcas de uma verdadeira passista. Por que cobrir o seu corpo, como se ele fosse algo contraditório ao mote evangélico ? Ela deveria vir como toda rainha da bateria, com a naturalidade que lhe pertence.

                  Em seu texto sobre o desfile da Mangueira, o teólogo André Musskopf assinalou que havia no ar um “cheiro de naftalina”. Talvez seja forte a expressão, mas ela provoca reflexões importantes para nós. Ele queria dizer que o influxo de certo ritmo da teologia da libertação provocou esse acento na “paixão” e, quem sabe, na compostura presenciada. Como ele disse, “a mangueira fez um carnaval decente e comportado”. E isto se manifestou de forma mais clara “no corpo de mulheres”, cuja decência foi garantida na sua respeitabilidade. Ele sublinha: “Nunca se viu um desfile com tanto pano cobrindo os corpos e impedindo os movimentos de quem desfilava na avenida”. Talvez tenha sido outro fator que provocou menos empolgação. Curiosa também a decisão da cantora Alcione, que representou Maria, em cortar as unhas e pintá-las com descrição. Ao final do desfile ela justificou a decisão como passo de “respeito ao sagrado”. O recato era o mote do desfile. Citando a teóloga feminista, Marcella Althaus-Reid, André assinalou que faltou “levantar a saia de Deus”. Isso me fez lembrar um trecho do fabuloso poema de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), o Guardador de Rebanhos, que fala do Jesus-Menino que habita em nossa aldeia, da “criança nova” que nos dá uma mão e a outra abraça “tudo o que existe”. É a “eterna Criança, o deus que faltava”, é o “humano que é natural”. Uma criança irreverente, o “divino que sorri e que brinca”. A criança que é o “Menino Jesus verdadeiro”. É essa criança, divertida, “bonita de riso e natural”, “que atira pedra aos burros, rouba a fruta dos pomares” e “corre atrás das raparigas”. É a criança que nos ensinou a olhar com carinho todas as coisas. Esse poema poderia também ter inspirado a Escola na sua designação do “Jesus da Gente”.

                  O desfile da Mangueira me fez lembrar a cerimônia da ECO-92, no aterro do Flamengo, onde a tenda do cristianismo era a mais triste de todas as outras. Ali reinava um clima “sombrio” de dor e lamento. Nas outras tendas, como na Afro, dos Ananda Marga, Hare Krishna e Santo Daime, o clima era outro, de muita alegria. Isso provocou um êxodo de muitos católicos para os lugares da festa. O contraste era imenso. Foi o mesmo contraste que percebi, comparando o desfile da Mangueira com o da Viradouro ou Grande Rio, vibrantes e exuberantes.

                  O tema inter-religioso, fundamental no enredo, que celebra as malhas do respeito e a recusa da intolerância, poderia ganhar uma força mais decisiva. Os líderes das várias religiões, que desfilaram antes da Comissão de Frente – com amigos queridos desfilando - poderiam estar inseridos em outro setor do desfile. Eles sequer apareceram nas transmissões televisivas, como se fosse algo “à parte” do desfile. O lema que traziam era essencial: “Independente da sua fé, o respeito deve prevalecer”. Na minha opinião, a temática inter religiosa não podia ser essa “mônada” isolada, mas permear todas as alas, ou ganhar um destaque maior numa das alas.

                  Eu vi o desfile da Mangueira pela televisão, o que já é um limite. Outra coisa seria ver ao vivo e a cores na avenida. Revi depois mais uma vez antes de escrever esse breve e limitado texto. Não sou um especialista de carnaval, nem escrevo sobre o tema. O que fiz foi trazer algumas pontuações que acompanharam meu olhar particular sobre o desfile. O intuito foi simplesmente acentuar o traço da alegria, que para mim guarda o que há de mais essencial na trajetória do Jesus, portador da vida. Essa dimensão festiva de Jesus, de seu cuidado e carinho para com os excluídos, poderia ter ganho uma ênfase mais decisiva, favorecendo um desfile de maior potencialidade, explodindo a arquibancada com um entusiasmo novidadeiro.