sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Lula e sua espiritualidade terrenal

Lula e sua espiritualidade terrenal

Faustino Teixeira
PPCIR/UJFJ e ISER-Assessoria

“Vamos aproveitar  toda a
nossa capacidade crítica  e criativa
para construir  paraquedas coloridos”

Ailton Krenak


            Já dizia um dos mais clássicos autores que trabalham a espiritualidade, o catalão Raimon Panikkar, que ela deve ser entendida como passo “integral”, como caminho de experiência da vida, como “carta de navegação”. Ela não se confunde com religião, pois diz respeito às qualidades de vida, entre elas a compaixão, a hospitalidade, a cortesia e a delicadeza. São valores que se encontram distanciados de nossa vida cotidiana, tomada pelos imperativos do mercado e da eficácia. A vida espiritual envolve sobretudo “estar presente”, como indica Thomas Merton, outro grande nome da vida contemplativa. Para ele, a contemplação é um dom que potencializa as pessoas a despertarem para a infinita Realidade que habita dentro de tudo o que é real.
            Esses traços encontram-se profundamente presentes em Lula, que, sem dúvida, é um dos personagens mais carismáticos e proféticos que marcam o nosso cenário latino-americano e mesmo internacional. Como disse o historiador inglês Eric Hobsbawm, Lula “ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas”. Dificilmente vai surgir alguém com um carisma assim tão vivo e cativante, que repercute e irradia um sentimento popular dos mais nobres e convidativos. Tendo em conta essa perspectiva mais ampla da vida espiritual, entendida como experiência compatível com todas as coisas, Lula reverbera em sua prática, caminhada e experiência uma nobreza espiritual rara, diria uma honradez que é exemplo para todo aquele que busca uma vida justa. Sua presença na presidência da república por dois mandatos, no início do segundo milênio, resgatou o que há de mais bonito e fundamental da vida dos pobres: sua cidadania. Seu trabalho mais decisivo foi reduzir o campo da pobreza num país marcado pela cotidianidade da opressão. Daí a alegria que ele deixou entre os mais excluídos, que retorna a cada momento que ele entra em cena, aquecendo sobretudo o coração dos desvalidos, que puderam com ele sonhar com uma vida diferente.
            Numa de suas mais recentes e expressivas canções, Gilberto Gil assinala que a razão mais viva de sua busca é a nobreza da alma. Vejo isso com nitidez na presença de Lula. Em visita a Lula, em maio de 2018, Leonardo Boff pôde testemunhar a espiritualidade do amigo, no primeiro mês de sua prisão. O que mais o impressionou foi o “ânimo” e a “esperança” de Lula, naquele momento difícil de sua vida. Tudo isso não surge à toa, mas é fruto de uma experiência escaldada numa pratica cotidiana, mas também num exercício meditativo, que acompanha Lula ao longo de sua trajetória. Ninguém mantém viva a esperança sem um cuidado com o mundo interior. Boff pôde perceber esse traço religioso – espiritual – na cela do amigo, em que um crucifixo orna a cabeceira de sua cama. Não é uma religiosidade qualquer, mas uma religiosidade experimentada, onde Deus emerge como “uma evidência existencial”. E uma espiritualidade semelhante ao do personagem Riobaldo do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que acolhe com alegria a diversidade como um bem: “Muita religião, se moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio”. Espiritualidade e Vida se compõem na vida de Lula como uma linda melodia. Como alguém do povo, exclui qualquer privilégio pessoal, quer se inserir no caminho singular de sua gente e participar de suas agruras e alegrias, dores e esperanças. Num momento como o atual, onde tanta gente vem “adoecendo de Brasil”, como mostrou tão bem Eliane Brum em recente artigo, o grito de Lula se faz ainda mais necessário e urgente. São tantas as pessoas que estão adoecendo, deprimindo-se com a ausência de horizontes, com a falta de sentido. Tudo em razão de uma perversidade em curso, que estreita os caminhos do futuro e aponta para um horizonte assombroso. Nesse momento particular, o Brasil precisa de um grito que venha de entranhas populares, que traga à baila a serenidade de um outro caminho, de uma outra proposta, fundada na ética e no bem-viver. O momento é difícil e urge um cuidado muito especial com a vida interior, para evitar que o desespero ocupe o lugar da sensatez e da disposição de caminhar para um horizonte mais seguro.
            Em sua experiência na prisão, que já se aproxima de ano e meio, Lula tem meditado cotidianamente. Vive uma prática de oração e leitura, de ponderação crítica, podendo aprofundar seu caminho passado, seu momento atual e seus projetos futuros. Como ele diz: “Eu passo o tempo inteiro sozinho”. Muita coisa vem sendo gestada nesse tempo propício, e diria que também muitos sonhos são acalentados, alguns novidadeiros, que podem acionar um rumo distinto para esse momento sombrio. Das coisas que mais me chamam a atenção em sua experiência na prisão é sua busca reiterada por não deixar o ódio tomar conta de seu coração. Como profeta certeiro, Lula prioriza um trabalho interior que exclui o ódio, a mágoa e a revanche. Desvela-se para ele, ao contrário, um caminho que é de serenidade. Diz que vai sair dali melhor do que entrou, isto também em razão desse trabalho interior. Expressa claramente que não quer que seu coração seja tomado pelo ódio. Isso podemos perceber vivamente em seu olhar. Tudo me faz lembrar uma singular mística holandesa, Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz em 1943, aos 29 anos de idade. Marcada também por uma vida interior trabalhada, dizia que seu trabalho fundamental era contribuir para que a “escolta de amor” pudesse crescer sobre a terra. Indicava em seu diário que “cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio já exorbitante, torna esse mundo inabitável e insustentável”. Sua grande tarefa, como “coração pensante” do campo de concentração, era despertar para a vida aquilo que estava morto dentro dos vivos. Vejo também essa a grande tarefa de Lula nesse momento do Brasil. E aqui fica um convite particular, para animar a reflexão de Lula em seus momentos de prisão: o de ampliar sua rede de compaixão, de modo a poder envolver toda a natureza e o cosmos. Trata-se de um dos mais essenciais desafios de nosso tempo, que avança arriscadamente  para uma catástrofe. Lula poderia erguer-se  agora como um paladino da Florestania, da defesa da Amazônia e dos povos originários; da luta em favor da integridade da criação e da inter-conexão de todos os seres. Não defender exclusivamente os humanos, mas todas as espécies companheiras ameaçadas. Nessa nobre luta, tão assinalada por alguns brasileiros especiais, como Leonardo Boff, assinala-se a ampliação das malhas da hospitalidade, a “ampliação da personalidade jurídica da floresta”. Não somos apenas nós os humanos que merecemos destaque, mas toda a criação, com seus direitos característicos. Hoje se torna cada vez mais claro que o âmbito do “nós” se amplia com novos parceiros, que merecem o nosso grito de apoio. Mantemos acesa a nossa luta em favor dos pobres, que são os privilegiados de Deus, mas também ampliamos nossa luta em favor do direito da floresta, dos animais, dos vegetais, dos minerais e de nossa mãe Terra. Como apontou Boff, temos que incluir a Terra, esse super organismo vivo, no “rol dos cidadãos”. Aí sim, a nossa luta será completa e espetacular, mostrando a linda malha que nos une e nos agrega como povos de Gaia.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Francisco e o Pluralismo Religioso

Francisco e o Pluralismo Religioso

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


Resumo

O papa Francisco tem assumido um papel protagonista neste século XXI, diante de um mundo que avança perigosamente para os nacionalismos mortíferos e os fundamentalismos. A grande riqueza de seu pensamento está em defender o desafio dialogal, o respeito à consciência e o direito ao pluralismo religioso, como expressões de um jeito novo de evangelizar pontuado pelo testemunho, solidariedade e acolhida.

Introdução

O pluralismo religioso emerge hoje como uma das questões mais essenciais do século XXI. Não há como pensar o nosso tempo fora desse desafio fundamental, que insere as pessoas num novo campo de relação, envolvendo a consciência num jeito peculiar de lidar com o outro e com as espécies companheiras. A teologia se deu conta da importância deste tema, situando-o como o novo horizonte da reflexão e entendendo-o como algo que “corresponde  a uma vontade misteriosa de Deus” (GEFFRÉ, 2004, p. 135). São inúmeros os caminhos que levam ao mistério maior, e nem sempre são caminhos religiosos, mas também seculares, e todos são situados num mesmo abraço misericordioso. Daí se falar com mais pertinência em nosso tempo em diálogo inter-convicções, um modo mais apropriado de lidar com um tempo que é secular e plural. É bonito compreender o mundo com esse olhar plural, de “existir numa situação em aberto” (OZ, 2017, p. 45), reconhecendo a riqueza de uma vida compartida em liberdade. Esse traço de multiplicidade certamente concorre “para uma melhor manifestação da plenitude inesgotável do Espírito de Deus” (GEFFRÉ, 2004, p. 138).

Um tempo difícil

            Esse desafio plural ainda permanece em aberto, na medida em que o século XXI sofre as sequelas de um período doloroso da história humana, marcado por tantas obscuridades e violências. Como apontou com razão o historiador inglês Eric Hobsbawm, o século XX terminou num “estado de inquietação, sendo “o século mais assassino” de que se tem registro, tanto na frequência e extensão das guerras, como no volume impressionante de catástrofes diversificadas, envolvendo igualmente a violência com a Terra (HOBSBAWM, 1995, p. 22). E o século XXI vai pelo mesmo caminho crepuscular e sombrio (HOBSBAWM, 2002, p. 448).

            Dentre as ameaças presentes nesse tempo, situa-se o crescimento considerável dos fundamentalismos e fanatismos, que brilham nesse período de afirmação radical do pensamento identitário e xenófobo. Assiste-se com preocupação o revigoramento de “guerras religiosas” relacionadas com esse retorno preocupante de novos fundamentalismos religiosos (HOBSBAWM, 2007, p. 128). Trata-se de algo que sensibiliza sobremaneira o papa Francisco que fala em “ecumenismo do ódio” (POLITI, 2019, p. 53), bem como de extremismos intolerantes que espocam por todo lado, sinalizando a presença de uma “terceira guerra mundial aos pedaços” (FRANCISCO & AL-TAYYEB, 2019).

            O mais triste é perceber que este fanatismo já começa em casa, se expandindo vigorosamente por outros espaços. São movimentos que crescem afirmando certezas, diante do risco ameaçador de uma sociedade plural. O pluralismo provoca temor, inquietação e insegurança, na medida em que enfraquece as convicções petrificadas e abre um horizonte novidadeiro de escolhas (BERGER, 2017, p. 33 e 52). Os fundamentalistas temem isto e reagem com vigor e violência, na busca de “proteção” da comunidade. E o que mais preocupa no tempo atual é a ação fundamentalista liberada. Os fanáticos atuam “com o rosto descoberto, quase com orgulho”. É como se enfraquecesse o efeito parcial da vacina contra a anterior presença nazifascista e os novos fanáticos recobrassem vigor na luz do dia (ARIAS, 2019).

            Essa nova sede de comunidade, de busca de nômadas protegidas e isoladas é também um fenômeno de nosso tempo. A identidade, como lembra com acerto Zygmunt Bauman, é a “palavra do dia e o jogo mais comum da cidade” (BAUMAN, 2003, p. 20), e ela grugueja com muito som e fúria, com violência e sangue. A cada esquina surgem novas fronteiras que demarcam a proteção comunitária. Na comunidade protegida os indivíduos encontram “um lugar “cálido” e “aconchegante”, que fornece proteção contra a “chuva pesada” que acompanha o mundo plural.

Francisco em rota de contramão 

            O papa Francisco emerge, assim, nesse tempo difícil, com uma linguagem e prática inovadoras, que trazem “tumulto” às consciências acomodadas. Sua proposta não é a de fixação identitária, mas de saída, de compromisso e solidariedade. Daí perturbar a tantos e provocar resistências que a cada dia crescem, mesmo dentro do cenário eclesial. Ele rompe com o discurso tradicional da igreja católica e traz um desafio novo, que é o de “deixar-se surpreender por Deus” (FRANCISCO, 2013a, p. 24). Seu discurso é pontuado pela abertura ao secular e de diálogo com o tempo e as religiões, e também com todo o cosmos. Traz na sua vida e testemunho a marca da coragem e da ousadia. A ele não interessa mais o proselitismo tradicional, mas a defesa intransigente da consciência, em linha de continuidade com o que há de mais arrojado no Concílio Vaticano II. O proselitismo para ele é um “pecado” problemático, pois fere o direito da consciência (FRANCESCO & SPADARO, 2017, p. 162; FRANCESCO & SCALFARI, 2013, p. 55). O Deus que proclama é um Deus que surpreende, acolhedor e misericordioso. Não é um “Deus católico”, mas um Deus que vem colorido pela diversidade (FRANCESCO & SCALFARI, 2013, p. 68). É um Deus que acolhe com doçura e gratuidade a pluralidade. A ele ninguém pode acreditar com certeza cerrada ou total, pois ele é dom que advém a cada momento e de forma surpreendente. Não pode haver “prova” de Deus e nenhuma religião ou crença é portadora de sua verdade. Ele é alguém que escapa a qualquer convicção. Em entrevista ao pe. Antonio Spadaro, Francisco foi claro: 

“Se alguém tem a resposta a todas as perguntas, esta é a prova de que Deus não está com ela. Quer dizer que é um falso profeta, que usa a religião para si próprio. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a dúvida. Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas” (FRANCISCO & SPADARO, 2013, p. 27-28).

                  O caminho para entender a proposta evangelizadora de Francisco só se descortina para aquele que tem humildade. Ele diz com tranquilidade: “Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas. É necessário ser humilde” (FRANCISCO & SPADARO, 2013, p. 28). O traço de seu projeto transborda gratuidade, como expressou de forma tão singela às crianças que se preocupavam com o destino de seus parentes que não eram católicos. Numa das respostas de Francisco a um jovem chinês de 13 anos, Ivan, preocupado com o seu avô, Francisco respondeu com clareza: “Jesus nos ama muitíssimo e quer que todos vamos para o céu. A vontade de Deus é que todos nos salvemos” (FRANCISCO, 2016, p. 19; POLITI, 2019, p. 3-6).

O pluralismo como um valor irrevogável

            Em momento de grande felicidade, em sua exortação apostólica sobre a alegria do evangelho, Francisco sublinhou que “a diversidade é bela” (EG 230). Não era uma expressão qualquer, mal algo que provinha do mais íntimo da alma, uma convicção arraigada na dinâmica de seu pontificado. Francisco tem plena consciência de que o pluralismo não é um mal, mas algo de profundo e bonito, que advém do querer mais sagrado de Deus. O pluralismo é sobretudo um valor sagrado. No recente documento sobre a fraternidade humana, assinado por Francisco e o Grão Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinala-se que 

“a liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que que Deus criou os seres humanos” (FRANCISCO & AL-TAYYEB, 2019).

                  Em exemplo bonito, expresso no diálogo com os judeus, em linha de sintonia com João Paulo II, o papa Francisco recorda que “a Aliança com Deus nunca foi revogada” ( FRANCISCO, 2013b, p. 138 - EG 247). Algo semelhante tinha dito João Paulo II aos representantes da comunidade judaica de Roma, em abril de 1986, quando assinalou que os judeus são portadores de uma “vocação irrevogável” (PCDI, 1994, p. 395). Era o passo que preparava a consciência de abertura da igreja católica ao pluralismo religioso. Assim como o judaísmo, as religiões são igualmente portadoras de um patrimônio irrevogável. Sábia é a percepção do Talmude, em sua vocação hermenêutica e sua explosiva leitura da palavra do Senhor: “Palavra de uns e de outros, palavras do Deus vivo” (QUAKNIN, 2001, p. 64; OZ, 2017, p. 66).

            O novo logotipo desta busca de paz é o ramo de oliveira, como indicou Francisco em seu discurso no importante encontro inter-religioso de Abu Dhabi, em fevereiro de 2019 (FRANCISCO, 2019a). E explica essa simbologia:

“Segundo a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus pede a Noé para entrar na arca com sua família. Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a arca da fraternidade” (FRANCISCO, 2019a).

                  Nesse mesmo encontro, Francisco fala da importância atual de uma “coragem da alteridade”, para além dos fundamentalismos e afirmações identitárias. Esse é o desafio maior, de um “diálogo diário e efetivo”, que sem desconhecer o essencial valor das convicções, possa igualmente acontecer na abertura plural e no “pleno reconhecimento do outro” e da sua liberdade (FRANCISCO, 2019a). O caminho que se abre é o da abertura à pluralidade religiosa, que convoca à “coragem da alteridade”, que não se confunde nem com a “uniformidade forçada”, nem com o “sincretismo conciliador”.

O caminho do diálogo e da acolhida da alteridade

            Em seu encontro com os núcleos intelectuais e dirigentes do Brasil no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em julho de 2013, o papa Francisco falou com vivacidade sobre sua convicção numa “cultura do encontro”. De forma expressiva, sublinhou que quando os líderes de diferentes setores pedem a ele um conselho, a resposta é sempre a mesma: “Diálogo, diálogo, diálogo” (Francisco, 2013a, p. 82-83). E para esta disposição essencial requer-se muita humildade, bem como uma atitude permanente de abertura e disponibilidade, longe de qualquer preconceito. E esse diálogo não é só com as religiões, mas também com as espiritualidades. O que é mais essencial é a “obediência à própria consciência”. É um diálogo que se abre a todos aqueles de “boa vontade”, que têm uma “alma nobre”, para utilizar aqui uma expressão cara ao compositor e cantor Gilberto Gil. O diálogo requer um profundo respeito “aos caminhos misteriosos de Deus no coração das pessoas” (GEFFRE, 2004, p. 176). Diz Francisco em seu diálogo com Eugenio Scalfari, “o mundo vem percorrido por estradas que nos avizinham e distanciam, mas o importante é que nos levem ao Bem” (FRANCESCO & SCALFARI, 2013, p. 55; POLITI, 2019, p. 9). Esse imprescindível caminho dialogal não é assim simples, mas requer “paciência, ascese e generosidade” (FRANCISCO, 2015, p. 161 - LS 201).

            Não há como julgar o outro com clareza e respeito senão mediante um novo olhar, pontuado pela acolhida e largueza (GEERTZ, 2001, p. 85). É um aprendizado que vem da antropologia e que deve regar o mundo da teologia e da pastoral, sobretudo aqueles que buscam se dedicar ao diálogo. Falando aos teólogos da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, em Nápoles, em junho de 2019, o papa Francisco falou de uma “teologia da acolhida”, de uma “teologia em rede”, solidária “com todos os náufragos da história” (FRANCESCO, 2019b). Com base em sua bela imagem de uma igreja “em saída”, Francisco tem advertido sempre contra o risco de domesticar as fronteiras. Há que abraçar e acolher com carinho e abertura as diferenças. Adverte contra o risco do fechamento nas mônadas peculiares. Há que ter a audácia de “viver nas fronteiras” e deixar-se transformar por elas (FRANCESCO & SPADARO, 2017, p. 71-72).

Conclusão

            O desafio maior de construir pontes é o que marca o pontificado de Francisco. E no coração de todo o seu empenho evangelizador está o diálogo. Alias, a ideia que move Francisco no seu trabalho evangelizador é a que bem definiu Paulo VI na exortação apostólica Evangelii nuntiandi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo (1975), identificando-a como um compromisso de “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). O modo mais bonito de amar a Deus, diz Francisco, é o que ocorre no caminho do ágape, do amor. É ele que situa o ser humano diante do núcleo da pregação de Jesus. O amor aos outros “é o único modo de amar a Deus”, aquele que “Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças” (FRANCESCO & SCALFARI, 2013, p. 56).

            E com a notável carta encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si(2015), Francisco expande a sensibilidade dialogal para toda a criação, animado por uma reverência essencial à vida em todas as suas formas de expressão: os humanos, as espécies companheiras e toda a criação. É o grande salto de Francisco para o Mistério sempre maior, capaz de perceber o rosto de Deus numa “folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (FRANCISCO, 2015, p. 184 - LS 233). Tudo é vida e mistério, tudo necessita de um cuidado reverencial. E todos esses seres queridos por Deus estão estreitamente interligados (FRANCISCO, 2015, p. 15 - LS 16). O que se requer como pista fundamental de uma nova espiritualidade da criação é a disponibilidade para ouvir cada movimento e som deste mundo, como expressou o mestre espiritual Ali al-Khawwas, citado pelo papa em nota da Laudato si (FRANCISCO, 2015, p. 184, nota 159 - LS 233).

Referências Bibliográficas

ARIAS, Juan. Radiografia do fanático “que só sabe contar até um”. El Pais. 28 jun 2019:
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca de segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade. Rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo.  São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
OZ, Amós. Mais uma luz. Fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
PAPA FRANCISCO. Palavras do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013a.
PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium(EG). A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013b.
PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
PAPA FRANCISCO. Querido papa Francisco.  O papa responde às cartas de crianças do mundo todo. São Paulo: Loyola, 2016.
PAPA FRANCISCO. Encontro inter-religioso. Discurso do Santo Padre. Founder´s Memorial (Abu Dhabi). 04/02/2019a:
PAPA FRANCISCO. Discurso do Santo Padre. Visita do Papa Francisco em Nápoles, por ocasião do Simpósio “A teologia depois da Veritatis Gaudiumno contexto do Mediterrâneo, promovido pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional – 21/06/2019b:
PAPA FRANCESCO & SCALFARI, Eugenio. Dialogo tra credenti e non credenti. Milano: Einaldi/La Repubblica, 2013c.
PAPA FRANCISCO. Entrevista exclusiva ao pe. Spadaro. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013d.
PAPA FRANCESCO & SPADARO, Antonio. Adesso fate le vostre domande. Conversazioni sulla chiesa e sul mondo di domani. Milano: Rizzoli, 2017.
PAPA FRANCESCO & AL-TAYYEB, Ahmad (Grande Imã de Al-Azhar). Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Viagem apostólica do papa Francisco aos Emirados Árabes – 04/02/2019):
PAPA PAULO VI. A evangelização no mundo contemporâneo. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
POLITI, Marco. La solitudine di Francesco. Un papa profético, una chiesa in tempesta. Bari-Roma: Laterza, 2019.
PONTIFICIO Consiglio per il Dialogo Interreligioso (PCDI). Il dialogo interreligioso nel magistero pontifício (Documenti 1963-1993). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994.
QUAQNIN, Marc-Alain. O Deus dos judeus. In: BOTTÉRO, Jean & QUAKNIN, Marc-Alain & MOINGT, Joseph. A mais bela história de Deus. Rio de Janeiro: Difel, 2001.

(Publicado na Revista Vida Pastoral, de jan/fev de 2020)

                  

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O desafio de habitar a complexidade de um mundo vital

O desafio de habitar a complexidade de um mundo vital

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

            Tenho refletido ultimamente sobre a crise civilizacional que vai tomando conta de nosso mundo, com consequências previsíveis desastrosas. O “excesso antropocêntrico”, como assinala o papa Francisco na Laudato si (2015), vem nos levando ao risco de um caminho catastrófico para a humanidade (LS, 116 e 161)[1]. É o tempo do Antropoceno, que revela “a grande aceleração dos limites planetários”[2]. As resistências dos povos terranos estão em curso, mas são frágeis para enfrentar a voracidade dos humanos em seu projeto sedento e ilimitado, que domina tudo. Apesar disso, os virtuosos da diversidade, mesmo sendo uma minoria cognitiva, alçam suas vozes em favor de uma nova reverência para com o criado.

            No curso do processo antropocêntrico, a afirmação da excepcionalidade humana, numa visão teleológica que situa o ser humano no cume da criação, com consequências bem precisas, e que estamos assistindo com perplexidade. Já dizia Lévi-Strauss, que essa predileção pelo humano com respeito às outras espécies, provocou, na verdade, um processo progressivo de exclusão, acompanhado de muita violência[3].

            Uma gama de antropólogos firma-se hoje na crítica a essa “excepcionalidade” humana, como no caso de Eduardo Kohn, em seu precioso livro: Comment pensent les forêts (2017)[4]. Ali ele propõe uma antropologia “para além do humano”, que se revela capaz de acolher uma ecologia que abrange outros si-mesmos, incluindo as florestas e demais seres da criação. O humano deixa de ser o “umbigo do mundo” e entra na ciranda da criação como parte do vivente, como uma “espécie a mais entre outras”, como “espécies companheiras”[5].

            A bonita proposta que vem da antropologia, e penso aqui na reflexão de Donna Haraway, entre outras (os), é enriquecer o presente com novas reflexões, “fazer de nossa concepção do presente algo mais denso, para que não apenas se fixe no intante atual, como também abarque nossa memória e nossa história” (Haraway). O caminho que se abre é o da “regeneração”, num aprendizado cotidiano de “aprender a florescer na complexidade”[6]. Abarcar a memória é também recuperar, com urgência, a sabedoria contida nas cosmologias antigas e tradicionais, cujas inquietudes revelam-se hoje plausíveis e ameaçadoras[7]. Na clássica Carta da Terra, fala-se em “reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”[8].

            Por diversas vezes, na Laudato si(LS), o papa Francisco toca na nervura das inter-relações. Reitera a convicção de que há uma interligação entre todas as coisas: “Visto que todas as criaturas são interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros” (LS 42). Para delinear esse significado, Gilles Deleuze e Félix Guattari, recorrem à ideia de rizoma, que expressa linhas que se remetem umas às outras. São linhas de “desterritorialização”, com diversas rotas de fuga. Na dinâmica dessa reflexão, não há centralidade definida, mas conexões que espocam em todos os lugares. O rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”[9].

            Tim Ingold prefere recorrer à imagem do micélio fúngico, como algo prototípico dos organismos vivos[10]. É um exemplo que quebra qualquer rigidez. A vida, diz Ingold, não pode estar contida ou encerrada dentro de “limites absolutos de formas fixas”, mas se desenrola num processo vital que se dá num campo de fluidez. O habitar humano concretiza-se no entrecruzar de linhas, onde inexiste uma separação rígida entre dois mundos: natureza e sociedade. O cosmos participa de uma rica dinâmica onde o movimento é o traço comum. O desafio que se coloca para nós é justamente o da inserção do ser humano e o seu devir “no interior da continuidade do mundo da vida”[11]. O crescimento humano se dá nesse campo vital, e inserindo-se vitalmente no mundo, o mundo cresce nele, revelando dimensões únicas e singulares. A vida é sempre um movimento de abertura e descoberta. Os organismos e pessoas estão, juntos, participando desse espetáculo vital, como num “tecido de nós”. O “ambiente” onde se processa o crescimento humano é envolvido por um emaranhado de fios: “É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou ´emanam` ao longo das linhas das suas relações”. E é esse entrelaçamento que adorna a textura do mundo.

            A crítica ao excepcionalismo humano foi igualmente desenvolvida pela antropóloga Anna Tsing, que ensina na Universidade da Califórnia em Santa Cruz (USA) e na Universidade Aarhus, na Dinamarca. Suas reflexões, embasadas em rica etnografia, revelam-se para nós de originalidade singular, com pistas essenciais para pensar o nosso tempo. Em sua visão, o excepcionalismo humano é problemático, e algo que “nos cega”, pois nos incapacita a prestar atenção à rica diversidade que nos rodeia. Junto com o excepcionalismo, uma visão míope da “autonomia” humana, que traduz o reforço de um controle nocivo, ou um impacto predatório sobre a natureza. É uma visão que acaba por bloquear o caminho essencial de pensar a interdependência das espécies[12]. Segundo essa autora, 

“a maioria das espécies dos dois lados da linha, incluindo os humanos, vivem em complexas relações de dependência e interdependência. Prestar atenção a essa diversidade pode ser o início da apreciação de um modo interespecífico de ser das espécies”[13].

 E por que esse cuidado ? Justamente pelo fato dessa diversidade biológica e social estar “camuflada” em “margens despercebidas” de nosso olhar superficial. Anna Tsing, sublinha que essa diversidade está ali, “oculta” em selvas urbanas ou nos recantos rurais, e ganha, por exemplo, expressão na vida dos fungos do solo e outros micro-organismos, que preferem sempre as “pequenas propriedades”. Ali está exemplificada a grande riqueza da diversidade.

            Anna Tsing chegou a tal conclusão estudando os cogumelos e fungos. Gosta de dizer que os cogumelos são nossos “companheiros”, delineando a dinâmica de uma simbiose benéfica e vital. Como assinala, 

“na longa história da Terra, os fungos foram responsáveis por enriquecer os solos e assim permitir que as plantas evoluíssem. Há árvores capazes de crescer em solos pobres por causa dos fungos que trazem fósforo, magnésio, cálcio e outros nutrientes às suas raízes”[14].

O que seria das florestas sem os fungos ? Na verdade, seriam “pilhas de madeira morta”. Os fungos revelam-se “companheiros de outras espécies”, e traduzem a beleza da uma interdependência entre os seres da criação, uma “relacionalidade multiespécies”.

            O desafio de nosso tempo é este de ampliar o olhar e prestar vivamente a atenção nessa diversidade. A riqueza está ali. Essa atenção cuidadosa à especificidade de mundos de vida abre um campo novo e fundamental para os estudos em ciências humanas e sociais. É o desafio de “repensar o ´humano` após o estouro da bolha antropocêntrica”[15]. Novos estudos nos ajudam a quebrar a nefasta dicotomia que se firmou na modernidade entre natureza e cultura, indicando que os limites são bem mais “porosos” do que se configuraram na reflexão instalada. Há que “multiplicar a atenção às diferenças”[16].

            Com base em experiência etnográfica nas Montanhas Meratus, na Indonésia, durante os anos de 1990, Anna Tsing concentrou sua reflexão na dinâmica da expansão do capitalismo pelo globo. Reage criticamente ao empreendedorismo ligado à liberalização econômica e a afirmação de um capitalismo regional que acabou abafando os direitos das comunidades locais, com a progressiva destruição dos meios de sua subsistência. O tema foi desenvolvido no seu livro: Friction: An Ethnography of Global Connection(Princeton University, 2005)[17]. Em vez de falar em globalização, a autora prefere utilizar o termo “fricção” (atrito). Em vez da noção usual de globalização, Tsing propõe falar “em composições sempre contingentes e emergentes entre agendas e interesses heterogêneos, alguns dos quais logram universalizar, embora de modo sempre instável”[18].

            É mais que um desafio tratar dessa complexa questão das “relações multiespécies em paisagens perturbadas”. A fricção traduz de forma feliz os fluxos globais, que envolvem atritos de bens, ideias, pessoas e dinheiro. É o modo como as trajetórias globais ganham forma. Nesse mundo complexo, a atentividade pressupõe interações baseadas na diferença. Acolher o atrito é “permitir que o irregular e o inesperado façam parte de nossas estórias de história global”[19].

            Num tempo marcado pela migração e indigência, há que aprofundar ainda mais a relacionalidade interespécies e romper com o desgaste da compaixão, com um quadro mais amplo de reflexão, que adiciona de forma radical a dimensão ética, o trabalho ético. Nesse tempo de interatividade, não há como manter aceso o pensamento que, de forma simplória, universaliza o particular, exclusivizando o pensamento do “nós”, em oposição aos “outros”. Trata-se do tempo difícil das bolhas identitárias e da impermeabilidade: “nós somos nós, eles são eles”. Como bem expressou Clifford Geertz, 

“obscurecer essas lacunas e assimetrias, relegando-as ao campo da diferença passível de ser reprimida ou ignorada, da mera dessemelhança (...) equivale a nos isolar desse conhecimento e dessa possibilidade: da possibilidade, em termos literais e rigorosos, de mudarmos de ideia”[20].

A atenção aos outros, incluindo aqui o campo diverso das vidas na natureza, significa abrir o coração para novos relacionamentos e novas responsabilidades.



            

            

            


[1]PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
[2]Bruno LATOUR. Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Decouverte, 2015, p. 12 e 148.
[3]Eliane BRUM. Diálogos sobre o fim do mundo. El País, 29/09/2014 (em conversa com Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski):
[4]Eduardo KOHN. Comment pensent les forêts. Vers une anthropologie au-delà de l´humain. Paris: Zones Sensibles, 2017, p. 48.
[5]Donna HARAWAY. Manifeste des espèces de compagnia. Paris: Éditions de l´éclate, 2003; Philippe DESCOLA. L´ecologia degli altri. L´antropologia e la questione della natura. Roma: Editions Quae, 2013; http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592682-estamos-diante-de-uma-crise-do-modelo-de-civilizacao-entrevista-com-donna-haraway(acesso em 13/11/2019).
[6]Donna HARAWAY, na entrevista do IHU, citada acima.
[7]Bruno LATOUR. Enquête sur les modes d´existence. Une anthropologie des modernes. Paris: La Décourvert, 2012, p. 452. E ainda: o prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, O recado da mata, no livro de Davi KOPENAWA & Bruce ALBERT. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 35.
[8]Leonardo BOFF. Do iceberg à Arca de Noé. O nascimento de uma ética planet´ria. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 154.
[9]Gilles DELEUZE & Félix GUATTARI. Mil platôs.vol. 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 43.
[10]Tim INGOLD. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 140.
[11]Ibidem, p. 26.
[12]Anna TSING. Margens indomáveis: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2015v17n1p177(acesso em 13/11/2019)
[13]Ibidem.
[14]Ibidem.
[15]Thom van DOOREN; Eben KIRSKEY; Ursula MÜNSTER. Estudos multiespécies: cultivando artes de atentividade: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/estudos-multiespecies-cultivando-artes-de-atentividade/(acesso em 13/11/2019)
[16]Ibidem.
[17]E mais recentemente: The Mushroom at the End of the World (2017).
[19]Ibidem.
[20]Clifford GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 76. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Jacques Dupuis: a nobreza da coerência evangélica

Jacques Dupuis: a nobreza da coerência evangélica

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

            O objetivo desta minha reflexão é divulgar o excelente livro-entrevista de Gerard O´Connel, “Il mio caso non è chiuso”. Conversazioni con Jacques Dupuis (Bologna, EMI, 2019), que é a tradução italiana da obra, Do Not Stifle the Spiriti (Maryknoll, Orbis Books, 2017). É um livro impressionante, que comove a todos que o leem, pela integridade e honestidade com que um dos maiores teólogos do século XX, o belga Jacques Dupuis, relata o seu caminho teológico e as dificuldades por que passou com a Congregação para a Doutrina da Fé, na era Ratzinger. Eu, que fui orientado por Jacques Dupuis no pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), entres os anos de 1997 e 1998, saí muito emocionado da leitura, que causou em mim um impacto impressionante. Nunca tinha visto, em detalhes, um livro que pudesse relatar com tanta coragem a dinâmica de “impiedade” e “dureza” de um dicastério romano voltado para o controle da ortodoxia teológica, embora a sua função, desde a criação por Paulo VI, ao final do Concílio Vaticano II (1962-1965), com o nome de Suprema Congregação para a Doutrina da Fé (CdF), fosse “promover e encorajar a teologia na igreja, e não aquela de emitir condenações”[1].

            O livro, com prefácio de Giancarlo Bosetti e introdução de Gerard O´Connel[2], vem dividido em duas partes: Na primeira parte, intulada “Um olhar em voo de pássaro”, aborda-se os antecedentes do processo que levou à Notificação do livro principal de Jacques Dupuis, “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso” (1997), bem como as dores e consequências do processo; na segunda parte, intitulada “À busca da verdade”, vem desenvolvido o tema da teologia do pluralismo religioso revisitada. Um balanço provisório. O objetivo aqui não é tratar pormenorizadamente de todo o livro, mas apontar alguns aspectos que mais me chamaram a atenção na leitura e suscitar uma maior divulgação da obra e, quem sabe, uma tradução brasileira.

            O livro-entrevista nasceu de uma proposta do jornalista Gerard O´Connel, que reside em Roma e é correspondente do Vaticano para a revista americana dos jesuítas, America. A ideia veio durante o processo sofrido por Dupuis, em razão de seu livro, e o teólogo belga hesitou muito no início em aceitar a empreitada, pelo fato de grande parte do material conter questões que eram tidas como “reservadas” (CJD, 140). Depois aceitou contribuir para o livro, que foi precedido por muitas entrevistas realizadas em Roma. A proposta recebeu a acolhida positiva da editora Orbis Books, e depois a EMI, de Bologna, que logo providenciou a tradução para o italiano. O livro veio definido por Gerard O´Connel como “o último testamento do padre Jacques Dupuis” (CJD, 27).

            Jacques Dupuis foi grande pioneiro no debate da teologia cristã do pluralismo religioso, tendo trabalhado 36 anos na Índia, como missionário e professor de teologia, até que em 1984 foi convocado pelo então Geral do Jesuítas, pe. Peter-Hans Kolvenbanch, a assumir  o trabalho docente na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG). Tinha estado já na PUG como professor visitante por duas vezes, a convite do pe. René Latourelle, nos anos acadêmicos de 1981-1982 e 1982-1983. Durante o terceiro período como convidado é que veio então a convocação de Kolvenbach (CJD, 78). Jacques Dupuis atuou como professor no curso de Cristologia (no primeiro e segundo ciclo) e também no curso especial de teologia das religiões. Na ocasião, sua acolhida como membro permanente da comunidade dos jesuítas e do staff da universidade “foi muito calorosa”, sobretudo por parte dos superiores (CJD, 79).

            Um traço característico de Jacques Dupuis, percebido por todos que tiveram a sorte de conviverem com ele, assistirem suas aulas ou participarem de sua orientação, era a coerência profunda. Foi esta coerência e honradez que marcou todo o seu itinerário de sacerdote jesuíta e professor de teologia. Dizia sempre para seus alunos, e pude testemunhar isso, que não sabia ensinar o que não pensava. Buscou assegurar-se, sempre, de manter uma profunda coerência na sua vida, evitando a todo custo a discrepância entre a vida e o discurso (CJD, 105). No livro-entrevista ele reforça isso algumas vezes, evitando “esconder” suas reflexões. Isso não fazia parte de sua pedagogia, que envolvia a partilha honesta e digna daquilo que adornava o seu ser e que constituía o objeto fundamental de sua crença (CJD, 235 e 232). Dizia: “Devo confessar que jamais renunciei a dizer e ensinar o que considerava verdadeiro. E acredito que os estudantes que seguiam os meus cursos reconheciam em mim a honestidade e sinceridade, a completa coerência entre o que pensava e ensinava” (CJD, 81).

            Durante a entrevista apontou as três escolhas que marcaram a sua vida: a decisão de entrar na Companhia de Jesus (os Jesuítas), a sua experiência na Índia e o seu exercício acadêmico (CJD, 277). Falava com alegria da certeza de sua vocação sacerdotal, sobretudo sua vocação jesuíta (CJD, 303). Dizia: “Quando repenso minha vida, em todas as graças acumuladas em quase oitenta anos, não posso senão admirar a providência de Deus, o seu cuidado paterno e sua constante solicitude. As três escolhas realizadas em resposta à chamada pessoal de Deus, trouxeram tanta alegria e satisfação à minha vida.” (CJD, 278). Reconhece a alegria de ter convivido sessenta e dois anos na Companhia de Jesus, “sob a guia de grandes superiores e junto a colegas estudantes e depois a colegas docentes e jovens estudantes” (CJD, 336). Reconhece que nesses longos anos a vida foi “uma festa”, tendo recebido muitas graças na experiência comum com os jesuítas.

      O precioso trabalho de Dupuis veio reconhecido por muitas autoridades religiosas e acadêmicas. Foi o grande mestre e pioneiro no campo da teologia cristã do pluralismo religioso, tendo a “ousadia” de ensinar no “olho do furacão romano”, com coragem a alegria, numa das Universidades católicas de maior evidência e repercussão internacional. Durante todo o processo que se viu envolvido, recebeu o apoio do cardeal Franz König[3], do arcebispo de Calcutá  (Henry Sebastian D´Souza), do superior dos Jesuítas, Peter Hans Kolvenbach, do provincial jesuíta da Ásia (Lisbert D´Souza), do colega da Gregoriana, Gerald O´Collins, de Monsenhor Fitzgerald, e de outros tantos teólogos: Claude Geffré, Luigi Sartori, Hans Küng, Paul Collins, Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino, Tissa Balasuriya, Peter Phan, Terrence Merrigan e outros (CJD, 165-166, 320, 149-150, 155, 186). Cito aqui a reação que Monsenhor Fitzgerald, que era na ocasião secretario da PCDI (Pontifícia Comissão para o Diálogo Inter-Religioso) e hoje é cardeal. Sua fala aconteceu durante o lançamento da obra pioneira de Dupuis na Gregoriana, em 22/11/1997, e eu estava presente no evento, junto com o pe. José Oscar Beozzo, podendo presenciar o discurso. Sublinha que o livro revela-se “extremamente útil nas faculdades de teologia, nos institutos teológicos, nos seminários e nas casas de formação de todo o mundo”. Uma obra que permanecerá “por muito tempo a melhor obra de síntese e o texto standard de referência” (CJD, 149-150). O teologo dominicano francês, Claude Geffré, na sua obra, Profession Théologien(Paris: Albin Michel, 1999, p. 202-203), fala sobre a mudança de paradigma provocada pela reflexão de Dupuis, como “verdadeiro ´momento epocal`”, favorecendo uma singular ampliação da percepção ecumênica que traduz o diálogo inter-religioso (CJD, 148).

 

            A grande virada teológica na vida de Dupuis começou a ocorrer na sua experiência indiana. Foi ali, a partir de sua exposição à Ásia, que aconteceram os primeiros passos de abertura de sua teologia. Foi a oportunidade essencial para romper com o modo tradicional de fazer teologia e dar início à perspectiva indutiva, que caracterizará sua reflexão sequencial (CJD, 60). A abertura se deu igualmente em sintonia com os primeiros passos do Concílio Vaticano II, que ofereceram ao autor a oportunidade de se destacar criticamente dos caminhos teológicos tradicionais, “aparentemente intocáveis” (CJD, 60). Abria-se também para ele ali a possibilidade de nova abertura às tradições religiosas, e o convite à perspectiva dialogal (CJD, 61). Pode-se também registrar o seu esplêndido trabalho de assessor junto à Conferência dos Bispos da Ásia (FABC), com contribuições importantes nos documentos produzidos pela Conferência, e também no Sínodo sobre a Evangelização dos Povos, de 1974, que vai resultar na Exortação Apostólica de Paulo VI, Evangelii nuntiandi. Dupuis vai assinalar no livro-entrevista que sua experiência na Índia, foi “a mais alta graça” que recebeu de Deus em sua vocação profissional de teólogo e professor (CJD, 336). A Índia foi, assim, tão importante para ele, que resistiu renunciar ao seu trabalho para se deslocar a Roma, sob pedido do superior jesuíta, Kolvenbach. Na Índia ensinou primeiramente em Kurseong e depois em Nova Delhi. Curioso que na ocasião era visto pelos indianos como um professor conservador em teologia, e depois em Roma, será visto como um “progressista extremado” (CJD, 269)[4]

 

            Dupuis começa o seu trabalho na Gregoriana de Roma como professor visitante, no ano acadêmico de 1981-1982, a convite de René Latourelle, decano da Faculdade de Teologia. Suas aulas eram dadas em inglês, depois passando a lecionar em italiano, a partir do ano acadêmico de 1985-1986. Foi aos poucos introduzindo o método indutivo e a perspectiva hermenêutica na sua reflexão teológica. Estava convencido que “a tarefa do teólogo não consistia simplesmente em repetir o que sempre tinha sido dito pelos clássico, e muito menos repetir para seu público o conteúdo das recentes encíclicas papais ou os decretos da CdF” (CJD, 103).

 

            As aulas do professor Jacques Dupuis eram muito concorridas, tendo que recorrer à Aula Magnada Faculdade para poder acolher todos os alunos inscritos, que chegavam a 200. Dupuis relembra que suas aulas eram muito procuradas, e se “sentia em casa com os alunos” (CJD, 102). Assim como nas aulas, a busca se dava também para o trabalho de orientação na Licenza(Mestrado) e no Doutorado. Não desconhecia o “clima” complexo que envolvia o ensinamento numa prestigiosa faculdade teológica, ali perto do Vaticano, e que tinha um papel decisivo na formação dos quadros da igreja católica. O clima era de certo “medo”. Já se falava na ocasião, com base nas reflexões e temores do cardeal Ratzinger[5], do risco do relativismo e da defesa da identidade cristã. Os teólogos das pontifícias tinham “medo de falar por temor de receber represálias por parte da autoridade doutrinal” (CJD, 105). Foi nesse clima que ele atuou na Gregoriana. No livro-entrevista chegou a fazer uma sugestão aos candidatos provenientes dos países do Terceiro Mundo que estudavam em Roma: o conselho de “não se deixarem seduzir facilmente pela perspectiva de um eventual encargo de ensinamento numa universidade romana” (CJD, 105).

 

            Além das aulas na Gregoriana, Dupuis trabalhou como assessor da Pontifícia Comissão Para o Diálogo Interreligioso por dez anos, entre 1985 e 1995, tendo participado intensamente na elaboração de um dos documentos mais abertos do Magistério católico sobre o tema do diálogo interreligioso: o documento Diálogo e Anúncio(DA), de maio de 1991.[6]

 

            Durante o período de ensino na Gregoriana tinha lançado o seu primeiro livro envolvendo o tema da teologia das religiões: Gesù Cristo incontro alle religioni. (Assisi: Cittadella, 1989). Trata-se do primeiro volume do que será visto como uma trilogia do autor em torno do tema da teologia das religiões (CJD, 93). Nessa obra já buscava tratar o complexo tema da conciliação entre a fé em Jesus Cristo e o significado positivo das outras tradições religiosas. Foi o livro que deu início à divulgação mais ampla da reflexão aberta de Jacques Dupuis, ganhando sequência com sua obra de referência: Verso una teologia Cristiana del pluralismo religioso(1997)[7].

 

 Esta obra de Dupuis, que se tornou um clássico, teve dois grandes lançamentos. O primeiro foi realizado em 27 de outubro de 1997, no Instituto Católico de Paris. O livro foi lançado na prestigiosa coluna Cogitatio Fidei. Estavam presentes, além do autor, os teólogos Claude Geffré e Joseph Doré. O segundo, em 22 de novembro de 1997, na Pontifícia Universidade Gregoriana, com as presenças do reitor da PUG, pe. Giuseppe Pitau, do Presidente da Associação dos Teólogos Italianos, Giacomo Canobbio, Monsenhor Michael Fitzgerald[8], então Secretário do Pontifício Conselho para o Diálogo-Interreligioso e o prof. Gerald O´Collins, da Gregoriana, além do próprio Jacques Dupuis.

 

            Apesar dos elogios à obra durante seu lançamento em Paris e Roma, logo foram aparecendo resistências dos setores mais tradicionais da cúria romana e da teologia tradicional. Como mostrou Dupuis no livro-entrevista, o livro rapidamente tornou-se objeto de intensas discussões e críticas, o que ainda ocorre até hoje. Ele suscitou “controvérsias apaixonadas” (CJD, 120). Os primeiros sinais de contestação pública vieram com dois artigos publicados em Roma: um no Jornal L´Avvenire(14/04/1998), de autoria de Inos Biffi (CJD, 151-152)[9]; e outro na revista La Civiltà Cattolica(no número 3, 1998), de autoria de Giuseppe De Rosa (CJD, 152-153)[10]. Em reação ao artigo de Inos Biffi, Dupuis apresentou ao reitor da Gregoriana uma nota de comentário, de dez páginas, visando publicar no mesmo jornal. O reitor considerou o texto muito grande e redigiu uma nota mais sintética, e enviou ao diretor do jornal. Essa nota jamais foi publicada (CJD, 152).

 

            Com o artigo amplo de De Rosa estava indicada a senha que marcava o início do processo ao livro. Da publicação do artigo no periódico jesuíta para a reação da CdF foi um passo curto. A resposta crítica da CdF veio depois de sua sessão ordinária, realizada no dia 10 de junho de 1998, quando então se decidiu pela “contestação do livro” (CJD, 121). A reunião veio precedida de um encontro dos consultores da CdF, alguns dos quais eram professores da Gregoriana, e que haviam chegado a um consenso a respeito da avaliação negativa da obra (CJD, 177).

 

            Como ocorre acontecer nesses casos, o procedimento adotado pela CdF não envolve diretamente o responsável pela obra, mas passa antes pelo superior religioso do envolvido. O que ocorreu nesse caso foi uma correspondência entre o Prefeito da CdF, o cardeal Ratzinger, e o superior de Dupuis, pe.  Peter-Hans Kolvenbach. Em carta de 26 de setembro de 1998, o cardeal Ratzinger comunicou a decisão ao superior de Dupuis. Junto com a carta um documento de nove páginas contendo as questões levantadas pela CdF ao livro de Dupuis, indicando um prazo de três meses para o teólogo responder às questões levantadas. O procedimento deveria ser realizado com toda prudência e reserva, como normalmente ocorre nos processos da CdF (CJD, 121). Dupuis ficou sabendo da questão por intermédio do reitor ad interinumda Gregoriana, o padre Francisco Javier Egaña, em 02 de outubro de 1998, que o convocou ao seu gabinete para dar a informação e passar a Dupuis uma cópia dos documentos. Na ocasião, Dupuis recebeu todo o apoio do padre Egaña (CJD, 180). Em seguida, Dupuis marcou um encontro com o pe. Geral, Kolvenbach, que o recebeu prontamente. Na conversa entre os dois, nasceu a decisão de cancelar o curso de Dupuis, que estava previsto para começar no primeiro semestre letivo de 1998, em outubro (CJD, 180). Dupuis sugeriu que a decisão conjunta fosse comunicada aos alunos, com um aviso que foi afixado no átrio da Universidade, assinado pelo pe. Sergio Bastianel – decano da Faculdade de Teologia,  e que causou muita discussão (CJD, 122-123). O que era para ser mantido em segredo acabou tornando-se público, para o desgosto da CdF, que advertiu depois o pe. Geral (CJD, 122-123).

 

            Eu pude participar do último curso dado por Dupuis na Gregoriana, bem como do seminário que ele ofereceu para os alunos de doutorado. Isto foi no ano letivo de 1997-1998. Ao final da última aula, na sala magna da Gregoriana, o teólogo foi aplaudido de pé pelos alunos, por vários minutos. Isto também vem relatado por Dupuis em seu livro-entrevista: “Recordo, em particular, quando me levantei, e recebi um longo e forte aplauso, na sala magna, naquela que foi, com efeito, minha última lição na Universidade”. Sublinha ainda que parecia que os alunos estavam prevendo o que vinha pela frente, e quiseram responder com um “generoso aplauso” (CJD, 184-185)

 

            As reações à decisão da CdF dividiram as opiniões na Gregoriana. Alguns queriam ver logo a condenação de Dupuis; outros torciam para um desfecho da história, de forma a não deixar traços no futuro. Há que lembrar que cinco professores da Gregorina faziam parte do núcleo de assessores da Cdf: Karl Becker, Bartholomew Kiely, Rini Fisichella, Luis Ladaria e Gilles Pelland. Dentre tais professores, Rino Fisiquella, que depois se tornou bispo auxiliar em Roma e reitor da Universidade Lateranense, tinha emitido um parecer bem crítico ao livro de Dupuis (CJD, 178). A favor de Dupuis, o único dentre eles que se manifestou positivamente com respeito ao caso foi o professor Karl Beckr, que o defendeu na mencionada reunião dos consultores da CdF (CJD, 178).

 

            Jacques Dupuis teve diversos encontros com o pe. Geral, Kolvenbach, durante aquele longo período em que seu livro esteve sob o exame da CdF. Assim que ocorreu a decisão do dicastério romano, Kolvenbach escreveu uma declaração a todos os jesuítas do mundo falando sobre a questão. Dizia: “Esperamos que padre Jacques Dupuis possa continuar o seu trabalho pioneiro de pesquisa no campo do diálogo interreligioso que João Paulo II encoraja, na sua recente carta apostólica Novo millennio ineunte” (CJD, 227).

 

            E o teólogo dedicou-se ao trabalho de elaborar sua resposta ao Ex-Santo Ofício, que resultou num texto de 188 páginas, assinado em 25 de dezembro de 1998 e entregue ao superior Kolvenbach, que o encaminhou ao cardeal Ratzinger (CJD, 123). As respostas de Dupuis, e suas ponderações, foram julgadas insatisfatórias pela Cdf, que providenciou mais nove páginas de interrogações dirigidas a Jacques Dupuis, indicando um novo prazo para sua resposta. O documento insistia na necessidade de respostas “pontuais e precisas” (CJD, 124). Dupuis volta ao trabalho, produzindo desta vez 66 páginas, concluídas em 01 de novembro e encaminhadas à CdF no dia 02 de novembro de 1999, por intermédio de Kolvenbach. 

 

            Mais uma vez as respostas foram consideradas insuficientes, sendo que a CdF decidiu fazer uma Notificação sobre o livro em questão, e o esboço da Notificação foi encaminhado ao Geral dos Jesuitas através de carta do secretario da CdF, Tarcisio Bertone, em 25 de agosto de 2000. A carta indicava ainda a necessidade de um encontro de Dupuis com o cardeal Ratzinger, como parte de um “processo judiciário”. O encontro realizou-se no dia 04 de setembro de 2000, com as presenças de Dupuis, o Geral Kolvenbach, e o “advogado” de Dupuis, o pe. O´Collins, e por parte da CdF, o cardeal Ratzinger, o secretário Tarcisio Bertone, e o consultor Angelo Amato, que já tinha anteriormente se manifestado contra o livro (CJD, 124-125).

 

            Um pouco antes da reunião tinha sido publicada a declaração Dominus Iesus, da CdF, assinada pelo cardeal Ratzinger em 06 de agosto de 2000.  Não há dúvida que a reunião esteve pontuada pelo “clima” da declaração de Ratzinger, que foi, em verdade, redigida por Angelo Amato, com exceção do capítulo 4 sobre o ecumenimo (CJD, 158). Durante a reunião, o cardeal Ratzinger indagou a Dupuis se ele estaria disposto a declarar que seu livro “deveria ser interpretado à luz da Dominus Iesus”, ao que ele respondeu que “isso seria pedir demais” (CJD, 217). Era a primeira vez que Dupuis se encontrava com Ratzinger na vida, mesmo já vivendo 16 anos em Roma (CJD, 127). O colóquio durou duas horas, sem nenhuma pausa, e foi definido por Ratzinger como um “diálogo”. Na visão de Dupuis, não foi propriamente Ratzinger que tratou do caso pessoalmente,  mas delegou toda a investigação a seus consultores, que eram de sua extrema confiança (CJD, 290). Mesmo o papa João Paulo II, que chegou a assinar cinco vezes documentos críticos à Dupuis, autorizando sua publicação, não tinha um conhecimento da obra do teólogo inquirido (CJD, 342). Quem teve mesmo um papel decisivo na dinâmica interpretativa foi o consultor Angelo Amato. Esse teólogo chegou a afirmar em obra organizada pela CdF que a Dominus Iesus“oferecia um quadro de referência essencial para a teologia das religiões e o diálogo interreligioso”[11].

 

            Jacques Dupuis estava bem consciente desses métodos de procedimento da CdF, que considerava – como outros – “injustos, impessoais e desumanos” (CJD, 142). Em seu livro-entrevista ele cita as diligências utilizadas contra o grande teólogo do Vaticano II, Yves Congar, que igualmente passou por processo doloroso, e que relata o que se passou com ele em seu Diário de um teólogo[12]. É impressionante o relato de Congar, que chega a comparar os métodos do então Santo Ofício com os exercidos pela Gestapo nazista. Dupuis sublinha que se esse diário tivesse sido publicado antes de 1993, dificilmente Congar teria se tornado cardeal da igreja romana (CJD, 243 e 241-242)[13]

 

            O cardeal Godfried Dannels tinha prevenido Dupuis sobre a dolorosa dinâmica que move os processos da CdF. Em conversa com ele, em novembro de 1999, tinha advertido: “tenha coragem; tudo isto pode durar ainda vinte anos” (CJD, 259). Se teólogos como Congar e De Lubac sofreram algo semelhante, foram privilegiados por isto ter ocorrido quando ainda eram jovens, tendo o privilégio de serem reabilitados pelo papa João XXIII, e exercido um papel de destaque na assessoria dos documentos do Vaticano II. Dupuis, ao contrário, não dispunha desse tempo, nem alimentava desejo de endossar nenhum barrete vermelho (CJD, 259).

 

            A dinâmica que marcou a Notificação contra o livro de Dupuis foi também complexa e demorada. Não houve acordo em torno do primeiro esboço, e um novo texto foi apresentado a Dupuis, com as mudanças requeridas. Não se falava mais, como anteriormente, em “erros contra a fé”, mas de “ambiguidades a serem esclarecidas” (CJD, 133). Com a intermediação do Geral dos Jesuítas, Kolvenbach, Dupuis acabou assinando, meio a contragosto. O texto com a assinatura foi enviado à CdF por intermédio de Kolvenbach, em 16 de dezembro de 2000, sendo publicado no jornal L´Osservatore Romano, em fevereiro de 2001.  Junto à notificação assinada, uma carta de Dupuis que explicava o significado dado à sua assinatura. Dizia ali que em suas publicações ou conferências realizadas no futuro levaria em conta o texto da DI e da Notificação, e nada além disso (CJD, 134). Apesar disso, Dupuis vai se surpreender com o teor da Notificação em sua publicação definitiva, em razão dela apresentar um parágrafo novo, que não tinha sido acordado. Ali se dizia que Dupuis com sua assinatura se empenharia em assentir às teses enunciadas na Notificação e ater-se no futuro, tanto em sua atividade teológica e publicações aos “conteúdos doutrinais indicados na Notificação, cujo texto deverá igualmente aparecer nas edições ou reedições do livro em questão” (CJD, 134). O que ocorreu, aborreceu profundamente Dupuis, que de certa forma já temia isso antes de assinar o documento. Avaliou como um ato de “desonestidade”. E assinalou: “Era difícil acreditar que altos funcionários da Cúria romana – em particular o cardeal Ratzinger em pessoa – pudessem recorrer a públicas mentiras para esconder a mesquinharia dos procedimentos que seguiam” (CJD, 240).

 

            Apesar de todo esse “clima”, Dupuis continuou o seu trabalho teológico, ainda que com restrições. Retomou o sentimento de “liberdade” e os percursos de sua reflexão. Depois da publicação da Notificação, ele continuou escrevendo. Seguindo a trilha da coerência de sua reflexão, Dupuis consegue publicar um novo livro em setembro 2001, com a Imprimi potest(autorização) de Francisco Egaña, vice retor da Gregoriana. No prefácio da edição italiana, o belo texto do teólogo Luigi Sartori: “Reflexões confidenciais de um amigo”. Como indicou Dupuis, o livro “manteve a posição teológica do livro precedente”, com o reforço de novos argumentos e considerações (CJD, 255). Inserido na obra iam sair dois apêndices com a reação de Dupuis aos recentes documentos da CdF: a DI e a Notificação[14]. Não houve, porém, o aceite dos superiores, que ponderaram sobre a conveniência da presença daqueles textos no livro, que poderia soar como uma ofensa à CdF. O que então fez Dupuis foi redigir um breve Post scriptum, onde faz menção aos documentos recentes da CdF e defende a plausibilidade da “manutenção de um diverso modo de expressar a doutrina”, ou ainda, “uma distinta percepção da mesma fé num diverso contexto”[15]. Curiosamente, o livro não provocou reações da CdF. Mas o futuro previa novas dificuldades, com a nomeação de Angelo Amato para secretário da CdF, em dezembro de 2002 (CJD, 139)[16].

 

            O cerco vai se apertar para Dupuis nos dois anos seguintes, com as negativas de autorização de outras publicações. Por recomendação do cardeal Ratzinger, Dupuis deixa também a direção da revista Gregorianum, onde atuava como editor há dezoito anos (1985-2002) . Por meio de carta do reitor da Gregoriana, Franco Imoda, Dupuis vem destituído do cargo, assim como O´Collins  perde a função de consultor da revista. A carta com esse informe vem recebida por Dupuis em 28 de maio de 2002 (CJD, 139 e 256).

 

            As viagens ainda aconteceram, mas as restrições foram se ampliando. Ele tinha dado três conferências no exterior, duas em Bruxelas (maio de 2001) e outra na Polônia (setembro de 2001). O tema das conferências em Bruxelas foi publicada no número de outubro/dezembro de 2001 na Nouvelle Revue Théologique, em torno ao “desafio da teologia das religiões e do diálogo interreligioso hoje” (CJD, 248-249). A resposta da CdF veio logo em seguida, com uma carta do cardeal Ratzinger ao pe. Kolvenbach, solicitando medidas específicas contra Jacques Dupuis. Na carta, datada de janeiro de 2002, Ratzinger cobrava do Geral um posicionamento, uma vez que, em seu parecer, Dupuis estava descumprindo o prometido, pois as coisas que andava dizendo em suas conferências estavam em contradição com a Notificação que ele tinha assinado (CJD, 251). E reitera em sua carta, que Dupuis deveria abster-se no futuro de intervenções ou discursos que contrariassem a Notificação.

 

            Os manuscritos que Dupuis escreveu no período, em número de 4, foram todos recusados por seus superiores; um deles, em torno de um balanço provisório do pluralismo religioso, foi proposto para publicação na Gregorianum (CJD, 209). Vale citar, em particular, o livro proposto por Dupuis, intitulado Pluralismo religioso e diálogo, que foi apresentado ao vice-reitor pe. Francisco Egaña, que tinha antes dado o imprimaturao livro de Dupuis sobre o cristianismo e as religiões (2001), e não recebe desta vez sua aprovação[17]. O circuito estava agora bem mais apertado, e o temor das represálias da CdF tinha se acentuado. Em carta, Egaña lembra a Dupuis que a CdF tinha insistido com os superiores da Companhia de Jesus para exercerem uma particular vigilância sobre seus escritos, e que a abertura da discussão poderia reabrir um debate que provocaria dano para todos, e também para os jesuítas (CJD, 345). A posição do vice-reitor vem corroborada pelo delegado do Geral, Guilhermo Rodrigues-Izquierdo, que em carta a Dupuis, de 07/02/2012, solicita a suspensão de abordagens que polemizem com a Santa Sé. Em outra carta, de 13/02/2002, o Geral manifesta também sua inquietação. Ele diz: “Deixa que eu te diga (...) francamente e sem ambiguidade, que nas tuas publicações e conferências não pode defender posições doutrinais que a Notificação claramente desaprovou”. Ressalta ainda a importância da prudência, no sentido de “preservar a reputação de ortodoxia da Gregoriana” e pontua que o tema do diálogo interreligioso é um “campo minado”.  (CJD, 137, 254 e 353). A reação de Dupuis foi de muita tristeza. Foi para ele uma carta “traumática” (CJD, 253) e dizia: “Nessa situação não me resta senão decidir parar de escrever livros e artigos, esperando que os manuscritos referidos possam ser publicados depois de minha morte” (CJD, 345). Não se pode, porém, negar o papel de Kolvenbach em todo o processo. Talvez seja em razão de sua intermediação que a reação da CdF não foi ainda mais violenta, como o próprio Dupuis admitiu (CJD, 337)

 

            A verdade é que com todo esse sofrimento, Jacques Dupuis adoeceu, literalmente. Em sua réplica ao cardeal Ratzinger,  König já percebia isso, ao falar sobre o “dano humano” provocado em Dupuis com toda essa polêmica. Fala em piora de sua saúde e em estado de depressão (CJD, 169). De fato, Dupuis relata que sua saúde saiu bem comprometida, ressentindo-se daquele clima desfavorável. Foram vários distúrbios, incluindo uma trombose pulmonar, além de uma depressão; foram também várias internações (CJD, 195 e 235). Relatou ainda:         

 

“Me senti, e ainda sinto-me um homem destruído, que não poderá jamais recuperar-se da suspeita que a autoridade da minha igreja – uma igreja que amo e a qual servi toda a minha vida – jogou sobre mim. A alegria de viver terminou, e talvez não virá jamais. Não recordo, nem mesmo, o momento em que, depois daquele 02 de outubro de 1998, consegui soltar uma bela risada” (CJD, 236 e 365-366)

 

                  Além disso, Dupuis sentiu-se abandonado e renegado por sua comunidade. Sublinhou que a ferida instalada não poderia jamais curar-se, e não poderia mais ser aquela pessoa feliz, marcada pelo “senso da liberdade a que todo ser humano tem direito” (CJD, 260). Ao final, sentia-se sozinho na Gregoriana, fazendo suas refeições solitariamente, num cenário onde conviviam censores do Ex-Santo Ofício. Da comunidade jesuíta não recebeu nenhum apoio ou nota de solidariedade, com exceção do amigo de sempre, Gerald O´Collins. Até questões de ordem financeira foram aventadas para livrar-se de seu “peso” ali na comunidade, como as indiretas do padre responsável pela administração econômica da casa (CJD, 369)

 

E o mais duro é dar-se conta que a igreja mesma foi a propulsora dessa situação, a igreja que amava. Conseguia, entretanto, diferenciar a igreja verdadeira, do “fator igreja”, ou seja, daqueles que na igreja “exercem a autoridade como imposição e não como serviço” (CJD, 260). Em torno desse “fator igreja” chegou a levantar novas questões, a alimentar dúvidas e interrogações. Foram “sérias” as ponderações suscitadas, que envolviam mesmo a indagação sobre a perseverança. Reconhecia, com alívio, que esse dom estava firme em seu coração. Não tinha dúvidas com respeito à sua fidelidade a Deus e a Jesus Cristo, que para ele era “a única paixão de sua vida” (CJD, 335). Agradece a Deus por ter mantido nele a sua fé e em Jesus, aos quais reconhece ligado com todas as fibras de seu ser (CJD, 236). Quanto ao “fator igreja”, não tem dúvida que ela produziu nele muito sofrimento. Ficaram os sinais dolorosos da “insensibilidade e desumanidade da autoridade central”. Como Jó, chegou a colocar questões: “Por que? Que coisa fiz para sofrer tanto assim?” (CJD, 236). Conseguiu, então, entender a dor de teólogos como Küng, Congar, Chenu, Schillebeeckx e Leonardo Boff. Aprendeu, duramente, que “a igreja não é a cúria romana com sua burocracia. A igreja é o povo reunido em torno a Jesus Cristo” (CJD, 237). Ao rever com atenção os passos da sua vida, mesmo reconhecendo tanto sofrimento ao final da caminhada, percebe que a providência de Deus e o cuidado paterno, evitaram um dano maior, regando sua trajetória com uma constante solicitude (CJD, 278).

 

Dupuis reconhecia que na sua “tormentosa experiência” estava em boa companhia. E agradece à sua fé por tê-lo poupado dos ataques de raiva e das tentações. Recorda ter lido uma ocasião, com certa perturbação, uma declaração de Leonardo Boff anunciado sua saída da ordem e do sacerdócio. Decidia “permanecer fiel a si mesmo e à própria vocação”. Aquilo que na ocasião causou impacto, passou a ser verossímil, e daí em diante, ele ganhou grande simpatia no coração de Dupuis, que passou a entender e aceitar a sua decisão (CJD, 237-238)

            

Ao completar 80 anos, a editora Orbis Books, que tinha publicado muita coisa de Dupuis, resolveu fazer um livro de homenagem ao grande teólogo belga (Festschrift). A obra foi publicada em 2003, sob a direção de Daniel Kendall e Gerald O´Collin, com o belo título: “In many and diverse ways. In honour of Jacques Dupuis”. O livro foi lançado na Gregoriana, apesar de protestos de membros da comunidade jesuíta, particularmente do pe. Ladaria, que atualmente preside a Congregação para a Doutrina da Fé[18]

 

Ao final de sua vida, Dupuis teve ainda um outro desgosto. Não recebeu a autorização de seu superior para viajar ao Canada e proferir um curso, além de ganhar o título de doutor honoris causa na Regis College. Teria que passar sete semanas no Canada e para isso precisava da autorização do padre Germán Arana, que na ocasião era o superior da comunidade dos jesuítas da Gregoriana. A reação do superior foi negativa, e a viagem vista como “inoportuna”. A autorização veio então recusada, provocando muita angústia em Dupuis. No meio de todo esse “furacão”, Dupuis buscou novo contato com o Geral, escrevendo a ele uma longa carta, em 16/12/2004, detalhando tudo o que estava ocorrendo (CJD, 370-373). Não deu tempo de receber resposta, pois faleceu em 28 de dezembro de 2004, depois de ter desfalecido um dia antes no refeitório da Gregoriana. A missa de exéquias ocorreu na capela da comunidade da Gregoriana, em 30 de dezembro de 2004, celebrada por um representante do pe. Geral, Kolvenbach. Ali estavam presentes os amigos mais fiéis, entre os quais, Michael Fitzgerald, que concelebrou a missa, e  Gerald O´Collins, seu advogado nas horas mais decisivas.

 

A comunidade teológica e a igreja perderam um grande teólogo, alguém de “alma nobre”, cuja reflexão sobre o cristianismo e as outras religiões abriu um horizonte novo para o mundo eclesial. Vemos isso com clareza na presença do papa Francisco, também jesuíta, mas com um toque de sensibilidade franciscana, que também vem abraçando o diálogo com todo carinho e rebate a cada dia a ideia de que a “diversidade é bela”. O editor do livro-entrevista de Jacques Dupuis, Gerald O´Connell, perguntou a Dupuis no final de junho de 2003, como ele prestaria contas a Cristo no final dos tempos, tendo em vista a sua produção teológica. E ele respondeu muitas coisas, entre as quais: “Acredito que o Senhor, que lê os segredos do coração, saberá que a minha intenção ao escrever o que escrevi e dizer o que disse foi simplesmente expressar da melhor forma a minha fé nele e minha total dedicação” (CJD, 35).

 

             

            

 

            

 

 

 

 

 

            



[1]Geraldo O´Connel. “Il mio caso non è chiuso”. Conversazioni com Jacques Dupuis. Bologna: EMI, 2019, p. 107. No artigo o livro sempre será citado com o número da página entre parêntesis, siglado com os palavras iniciais do subtítulo do livro: CJD (Conversazioni con Jacques Dupuis).
[2]E também um testemunho de Gerald O´Collins (CJD, 21-25).
[3]O apoio de König provocou a reação de Ratzinger, que escreveu uma réplica no mesmo jornal onde o cardeal König tinha escrito (CJD, 165-169).
[4]O teólogo Raimon Panikkar, mesmo sem sublinhar o nome de Dupuis, relata a questão no seu livro-entrevista: Entre Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwndoline Jarczyk. Paris: Albin Michel, 1998, p. 168. Sublinha que na Índia Dupuis era identificado por sua “atitude ocidental e conservadora”, e depois em Roma passa a ser visto como um “símbolo de progressismo e abertura”.
[5]O ambiente romano estava marcado pela presença da obra recém lançada do cardeal Ratzinger: Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985 (em colóquio com Vittorio Messori). Era o livro que pautava o campo da restauração católica.
[6]Durante a elaboração da DA, as tensões com o cardeal Tomko, então Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, estavam evidenciadas. Houve também protestos do bispo brasileiro, Boaventura Kloppenbug contra o número 29 do documento (CJD, 85-87). Não sem razão, o documento sofreu 5 redações, resultando num documento de “compromisso” entre tendências evangelizadoras dissonantes.
[7]Na tradução brasileira: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. As primeiras edições saíram em italiano, francês e inglês, seguidas de traduções de outras diversas línguas. Na ocasião da publicação do livro-entrevista, tinham saído sete edições em inglês (Orbis Books), duas em francês (Cerf), quatro em italiano (Queriniana), uma em espanhol Sal Terrae), português (Paulinas) e indiano (Gujarat Sahitya Prakash) (CJD, 118).
[8]O discurso favorável de Monsenhor Fitzgeraldo ia ser publicado na revista Pro Dialogo(da PCDI), mas para evitar uma possível tensão com a CdF, sua publicação veio cancelada. Posteriormente, quando foi publicado, a redação tinha sido remodelada (CJD, 150).
[9]Como curiosidade, neste mesmo dia o professor Jacques Dupuis tinha feito uma visita à minha casa em Roma, e estava visivelmente aborrecido com o sucedido.
[10]No original o artigo se intitulava: “Uma teologia do pluralismo religioso”. Depois de passar pela CdF, ele retornou com um acréscimo: “Uma teologia problemática do pluralismo religioso” (CJD, 153).
[11]CONGREGATIO Pro Doctrina Fidei. Documenta. Inde a Concilio Vaticano Secundo expleto edita. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2006, p. 8 (Praenotanda).
[12]Yves Congar. Journal d´un thélogien. 1946-1956. Paris: Cerf, 2000.
[13]Relata ainda que ele, Congar, chegou na ocasião a urinar no muro do palácio do Santo Ofício, como expressão de seu total desprezo pelo dicastério romano (CJD, 243).
[14]Esses textos foram depois publicados no livro: Perché non sono eretico. Teologia do pluralismo religioso: as acusações, a minha defesa. Bologna: EMI, 2014.
[15]Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni. Brescia: Queriniana, 2001, p. 484.
[16]Angelo Amato tinha escrito um duro artigo contra o livro de Dupuis na revista Seminarium, n. 4, 1998.
[17]Três dos avaliadores da Gregoriana que examinaram o livro, a pedido de Egaña, tinham desaprovado sua publicação em razão de julgarem que o texto apresentava afirmações incompatíveis com a doutrina da igreja, e em particular com a DI (CJD, 344-345).
[18]Na ocasião em que o clássico livro de Dupuis foi lançado, Ladaria fazia parte da Comissão Teológica Internacional, que em 1997 publicou um documento mais restritivo sobre o tema do cristianismo e as religiões, que foi na ocasião objeto da crítica de Dupuis. Da comissão fazia igualmente parte o teólogo jesuíta brasileiro, Mário França de Miranda.