domingo, 30 de dezembro de 2018

Paletó e eu: relatando uma leitura

Paletó e eu: relatando uma leitura

Faustino Teixeira


livro de Aparecida Vilaça. Paletó e eu. Memórias de meu pai indígena. São Paulo: Todavia, 2018

Dediquei-me de corpo e alma nesses dias a ler o excelente livro da antropóloga Aparecida Vilaça, Paletó e eu– Memórias de meu pai indígena (São Paulo: Todavia, 2018), que será lançado amanhã – 16/10/2018 – no Rio de Janeiro. Mas claro que estarei presente no lançamento.

            O livro conta a linda história de uma relação de mais de três décadas. Vejo neste livro uma das mais lindas experiências etnográficas que pude ler ao longo da vida, e falando de algo que está tão próximo de nós. Um exemplo de antropologia, dedicada sobretudo ao aprendizado e respeito do outro. Foram longas idas e vindas às aldeias dos Wari`, no rio Negro, algumas com seus filhos ainda pequenos. 

O líder Paletó

 E assim tomou contato com o grande líder daquele povo, Paletó (Watakao´), com o qual estabeleceu uma relação única de filiação. E ela o trouxe ao Rio de Janeiro, em sua casa, algumas vezes, encantando-o com os passeios à praia, ao Pão de Açúcar, ao zoológico e também a um concerto de música clássica. Tudo descrito de forma encantadora. Fala também na parte mais dura do livro sobre a triste história do massacre sofrido pela família do Paletó, pelos brancos, onde perdeu parentes queridos, entre os quais seu pai e sua filha. E porque ela escreveu esse livro? Escreveu depois de saber da morte de seu pai indígena, no interior de Rondônia, com mais de 85 anos. 

Diz ela logo no início do livro: “Ele morreu no interior de Rondônia e eu continuei aqui, tentando imaginar seu corpo, os fios de barba brancos soltos no queixo, os braços forte. Lembro de cada um desses detalhes com muita nitidez e não consigo imaginar nenhuma dessas partes sem vida. Elas se mexem, brilham, falam comigo”. Ela não viajou para Rondônia, nem dava tempo, mas viajou nas suas memórias, nas histórias contadas por seu pai indígena, e resgatas as histórias narradas por ele e os passos da relação que se teceu, sempre com muito carinho e generosidade.

 Ela também diz, ali no início, que ele, Paletó foi “um adulto que guardou o que há de melhor de sua criança, mesmo tendo visto tanta coisa triste, inclusive vários de seus parentes próximos serem alvejados e mortos por seringueiros, sessenta anos atrás”. Diz ainda que perguntou uma vez a ele se tinha ódios dos brancos, e sua resposta veio certeira: “me respondeu que eu e meus parentes não tínhamos nada a ver com isso, pois vivíamos muito longe”. E ela respondeu, com aquele afeto singular: “Sou-lhe grata por esse perdão”. 

E porque o nome Paletó? Por que certa vez ele se encantou com um presente recebido, um paletó, “e o adotou sobre o seu corpo nu”. Um livro que aconselho muito a todos, sobretudo neste momento que vivemos no Brasil, para que possamos entender ao menos um pouco sobre a beleza, a riqueza, o patrimônio único desses nossos povos originários, e o risco que corremos se não fizermos uma escolha adequada nesse segundo turno. Viva Paletó, Viva a professora Aparecida, nesse seu dia.

Os passos da reflexão

Logo na entrada de seu livro sobre Paletó, seu pai indígena, Aparecida Vilaça cita uma bela passagem de Patti Smith: "Eu senti que escrever é quase como fazer essas pessoas vivas novamente. Você as traz de volta de um jeito que outras pessoas podem conhecê-las e compreendê-las enquanto seres humanos". 

O encantador livro fala de muitas coisas: da decisão da antropóloga em dedicar-se ao tema dos Wari`, depois de ter feito um lindo trabalho de mestrado sob a orientação de Eduardo Viveiro de Castro, "Comendo como gente" (Rio de Janeiro: Mauad); do encontro de Aparecida com Paletó; a descrição das casas dos Wari`; das investidas dos brancos contra eles; do processo de identificação com eles; da experiência dos filhos - Francisco e André - na aldeia, do carinho com que foram acolhidos e dos aprendizados ali; das guerras com os brancos e o canibalismo da raiva; do aprendizado com os xamãs, aqueles que têm os "olhos soltos"; das esposas de Paletó; dos primeiros encontro dos Wari` com os brancos; o processo gradual de "pacificação"; o medo dos brancos: "Tínhamos muito medo dos brancos, minha filha! Achávamos que eles iam nos matar a todos"; do modo como os Wari` lidavam com o sexo: "Falar livremente sobre o sexo é uma característica dos Wari`" ; o traço do cuidado com o outro entre os Wari`: "Me dei conta de que o acesso não mediado por palavras à cabeça dos outros era de fato uma deliciosa particularidade dos Wari`"; a relação peculiar com o corpo; os contatos com o catolicismo e a missão protestante americana; as epidemias que foram surgindo, e que tanto mataram, no contato com os brancos; os resultados problemáticos da chegada do trem na região; tudo que esteve relacionado ao processo de catequização dos Wari`; o tornar-se crente na vida de Paletó e o modo cuidadoso como Aparecida lidou com esta questão; as viagens de Paletó ao Rio de Janeiro; a sua linda visão sobre o mar: "Ali é que é água grande. Parece que a água se mistura com as nuvens, não se vê onde deságua, não se vê o fim"; As reações de Paletó ao visitar o Jardim Zoológico no Rio de Janeiro: "Os animais que são gente". E ao final do livro, a grande despedida do pai indígena: "Eu já vou; deixo você ir".
Um lindo livro.

O ritmo da violência

No capítulo 10 de seu livro, Paletó e eu, Aparecida descreve o horror que acompanhou o massacre aos Wari` a partir da descrição de seu pai indígena:

"Paletó e a esposa, carregando os filhos, tentaram correr, mas os brancos acertaram a menina To´o Em, que ficou caída no chão. Ela gritava: ´Pai, pai, o inimigo me acertou!. ´Como era linda a minha filha que o branco matou!`, exclamou Paletó."

"Paletó, com o filho pequeno no colo, continuou a correr, acabou batendo com a cabeça num galho e, desnorteado, pensou ter sido atingido por um tiro. O filho gritava pensando que o pai estava morto. A esposa, ao ver a filha caída, parou de correr e resolveu voltar, rastejando-se pelo chão para tentar evitar as balas, com um braço dobrado sobre o rosto na tentativa de se proteger. Um dos atiradores, ao perceber que a mãe retornava, parou de atirar até que ela se agarrou à filha, para então acertá-la. Atirou na sua vagina, mas ela não morreu naquele momento. Ficou apenas deitada..."

Num outro relato de Aparecida, dito por um homem do subgrupo OroMon:

"Lembra-se de que os branco jogavam as crianças Wari` mortas para o alto, para que caíssem sobre os terçados e fossem cortadas ao meio".

A tênue paz

Tudo "tão longe"... Tudo tão perto...

Aparecida diz em seu livro que "a paz que se supõe dar hoje a tônica da relação dos Wari` com os brancos é muito tênue, pois a tensão aflora em várias ocasiões desse convívio. No comércio da cidade, os Wari` são estigmatizados por sua aparência e por sua dificuldade com a língua portuguesa. Em algumas ocasiões recente, seringueiros entraram à noite em aldeias Wari` situadas nas margens de sua reserva e os ameaçaram com armas, causando tanto pânico que uma das aldeias, Ocaia II, foi abandonada..."

O que vem com o desenvolvimentismo... O exemplo do que acompanhou a ferrovia Madeira-Mamoré. Num trecho do Jornal O Imparcial (sic!) em 01/01/1961:

"É necessário ação e muita ação. Entrevistas chorosas não dão vida nem saúde aos que labutam em nossas matas, à busca de recursos para suas sobrevivências. É preciso protegê-los de fato contra essa horda de assassinos frios que as infestam, protegidos por leis absurdas e que privam regiões como esta de um efetivo desenvolvimento"

Tudo acontecendo ali, nas imediações de Guajará-Mirim

Como assinala Aparecida em seu relato, no livro Paletó e eu: 

"Embora Paletó vivesse muito longe dali e não tenha participado dessas expedições ao trem e aos arredores de Guajará, foi levado a essa cidade para assegurar aos brancos de que agora ´estavam bonzinhos`"

Tudo tão atual...

A questão da religião

Para concluir a minha reação ao livro de Aparecida Vilaça: Paletó e eu - Alguns trechos que abordam a questão da religião:
No capítulo 18 de seu livro, Aparecida Vilaça trata da questão da presença da igreja católica na região. Nos primeiros tempos a coisa era bem complicada:
"Padre Bendoraites visitava Sagarana esporadicamente, deixando os cuidados diários da colônia nas mãos de um jovem rapaz boliviano chamado Antenor, que usava técnicas violentas para atingir os seus objetivos. Ameaçava os índios com arma, construiu uma cadeia com porta e cadeado para trancar aqueles que cometiam infrações, como roubo de galinhas, e amarrava com correntes as mulheres que praticavam aborto..."
Naquele início, não havia ainda, praticamente, catequese, como assinala Aparecida:
"Antenor e o padre não falavam a língua Wari`, mas havia missas, que Paletó descreve assim:
´Davam para nós um pedaço de pamonha (hóstia) que, quando colocávamos na boca, sumia. Tinha também bebida realmente alcoólica (para o padre), acendiam-se muitas lamparinas, ajoelhava-se. Sentávamos e também se cantava em Sagarana. Eu não entendia o nome da música. Só ficava com os olhos fechados. Depois, Amém`"
Bem depois veio a missão do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), com outra perspectiva, nas redondez de Ji-Paraná (Rondônia). Aparecida cita, entre outros, o exemplo do padre Roberto Arruda, que depois se tornou bispo. Esse sim, tinha uma grande admiração pelos Wari`: "Os Wari` se referiam a ele como ´nosso avô`".
Mas, como assinala Aparecida, "muitos equívocos" aconteceram ao longo dos encontros com os Wari`. Os crentes também vieram atuar na região, através da missão norte americana da New Tribes Mission. Nos primórdios da catequese evangélica os índios não entendiam muito o que falava o missionário Royal: que achavam uma conversa "muito estranha".

Como relata Aparecida:

"O que finalmente levou Paletó a se declarar crente foi, segundo ele, o medo do fim do mundo, mais especificamente o medo de ser abandonado pelos seus conterrâneos e parentes, muitos deles crentes desde o fim dos anos 1960, que, por isso, seguiriam para o céu. O que se passaria com os que ficassem na terra, segundo lhe dizia Royal, era digno de um filme de terror: ´Se vocês não acreditarem, vão ficar na terra e a onça vai comê-los. Vai haver todo tipo de espírito de bicho (...). ´Tinhamos muito medo`, disse Paletó. Muito mais que o encanto pelo céu, um lugar meio sem graça, onde todos são iguais, não fazem sexo nem festas, bebem água, comem pão e passam todo tempo a escrever, é o medo do inferno que os move em direção a Deus. Longe do céu iriam queimar para sempre, ficar com a pele cheia de feridas, e sentir muita sede, que não poderia ser saciada".

Paletó chegou a largar Deus, em certo Momento, e retornou à crença crente depois de mais velho, por volta de 2001. Dizia: "Voltei para Deus. Atualmente acredito direito. Sou velho. Velhos não vivem muito".

O que detonou esse retorno foi a visão na televisão comunitária do que ocorreu em 2001, no ataque dos aviões ao World Trade Center. Como relata Aparecida: "Entenderam por meio das exegeses dos pastores, que uma guerra mundial iria acontecer, sinal da proximidade do fim do mundo".

É aqui que se revela a qualidade de antropóloga de Aparecida Vilaça, de seu cuidado em lidar com esta questão:
Ela diz em seu relato:
"Foi então que descobri que ele (Paletó) não queria que eu soubesse que estava frequentando a igreja pois temia a minha reprovação. Ciente do que se passava, comecei a acompanhar esses cultos e conversar muito come os Wari` sobre Deus, que chamavam de ´o verdadeiro invisível`, sobre Jesus, seu filho, e sobre o Espírito Santo, o ´duplo` de Deus". 

Mas Aparecida diz com clareza no livro a sua posição: "Embora seja totalmente contrária ao trabalho de conversão religiosa, sempre fui respeitosa em relação à escolha dos Wari`. Isso não me impedia, entretanto, de explicitar as minhas razões para não ser crente, mesmo causando consternação a Paletó. De todo modo, por mais que explicasse, o fato de eu frequentar a igreja era um claro sinal na direção oposta, ou seja, de que estava sim me tornando crente, especialmente considerando o fato de que as ações são, para ele, muito mais importantes do que as palavras. E eu estava na igreja".

Aparecida relata, entretanto, que os Wari` eram "naturalmente moldados à aceitação da multiplicidade de visão", e "radicalmente não dogmáticos".


terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Etty Hillesum e o canto da alegria

Etty Hillesum e o canto da alegria

(Entrevista de Faustino Teixeira no IHU-Online – Dezembro 2018)

1) Quem é Etty Hillesum? Qual sua importância no universo místico?

Ela talvez seja uma das mais impressionantes e singulares místicas do século XX. Era holandesa. Ela  nasceu em Middelburg de uma família de judeus não praticantes no dia 05 de janeiro de 1914. O seu pai, Levie Hillesum, era professor de línguas clássicas e vivia em Middelburg desde 1911. Estudou línguas clássicas na Universidade de Amsterdã, coroando sua carreira com um doutorado em 1908. Sua mãe, Rebeca Bernstein, era russa. Os pais se casaram em dezembro de 1912 e tiveram três filhos: Etty, Jaap e Mischa. Os dois meninos tinham formações distintas. O primeiro, Jaap, formou-se em medicina. Era muito inteligente mas psicologicamente frágil, tendo-se internado diversas vezes em instituições psiquiátricas. O outro irmão, Mischa, tinha um grande talento musical. Tornou-se pianista. Mas como seu irmão, tinha problemas psiquiátricos que o acompanharam por toda vida. 
Etty, como os outros membros de sua família, não frequentava a sinagoga. Isso significa que a presença religiosa explícita era rarefeita em sua vida, não estando habituada à prática religiosa. Deus era “pouco mais que um sentimento de algo que preside a natureza e tudo o que existe”[1]. Etty passou sua juventude em Middelburg. Em sua primeira formação acadêmica não se mostrou assim excepcional. Voltou-se para o direito, com estudos em Amsterdã. Encontrou guarida na casa de Hendrik (Han) J. Wegerif, um viúvo com o qual Etty vai se relacionar posteriormente. Permaneceu em Amsterdã até junho de 1943, quando então foi encaminhada para o campo de concentração de Westerbork, no Nordeste da Holanda, criado em 1939 pelo governo holandês para abrigar os refugiados judeus. Durante sua formação universitária em Amsterdã, Etty conviveu num clima estudantil de esquerda e antifascista, com empenho político militante, mesmo não pertencendo a nenhum partido político. Estudou ainda línguas eslavas em Amterdã e Leiden, um trabalho interrompido em razão da intervenção bélica alemã na Holanda. Chegou, porém a concluir sua formação em língua e literatura russa, tendo ensinado a língua numa Universidade popular de Amsterdã. Curioso destacar que quando ela foi deportada para Auschwitz, onde morreu, tinha levado consigo uma Bíblia e um livro de gramática russa.
Hoje Etty vem reconhecida por todos estudiosos como uma mística singular. O processo de seu crescimento interior foi, porém, progressivo, com uma dinâmica vital que driblou a inquietude que dominava o seu mundo interior. E vários fatores contribuíram para isso, entre os quais a presença do terapeuta e quiromancista Julius Spier (1887-1942) em sua vida, a partir do início de fevereiro de 1941. Foi lindo esse processo vital que mudou a vida desta menina que não sabia ajoelhar-se[2].

2) No que consiste a mística dessa jovem? O que a difere de místicas que, como Teresa de Ávila, encontram seu Castelo Interior através da oração?

Foi uma mística singular e original. Diferentemente dos místicos tradicionais, Etty foi alguém que viveu sua experiência de Deus na dinâmica ordinária do tempo, com suas vicissitudes, dramas e contradições. Foi uma mística “anticonvencional”. Tinha como traço peculiar uma vida fora do padrão. Com 27 anos relacionou-se simultaneamente com dois homens, o viúvo Han Wegerif e o seu terapeuta, Julius Spier. Viveu também o “trauma” de um aborto voluntário, relatado em seu diário, em 08 de dezembro de 1941[3]. O assunto será mencionado em seu diário, com dor, quando assinala a presença do “menino nunca nascido”. A leitura do diário indica que essa “carência” de instinto materno deve-se também à violência com que presenciou a retirada forçada de seu irmão, Mischa, de casa para uma de suas internações psiquiátricas. Dizia no diário, impactada com a cena, que jamais portaria em seu ventre uma criança que poderia ser infeliz. Era o trauma dessa presença do sofrimento psíquico na família[4]. Como mostrou a estudiosa Wanda Tomasi, “nem a sua liberdade sexual nem o aborto são obstáculos à sua relação com Deus, que prossegue e até se intensifica após estes acontecimentos”[5]. Distintamente de Teresa de Ávila, bem domiciliada no catolicismo, Etty foi uma mística de grande “liberdade do Espírito”, sem estar encerrada em nenhum recinto confessional: “não pertence totalmente nem ao judaísmo nem ao cristianismo”[6]. Se podemos definir de alguma forma sua santidade, o termo que melhor se adapta é o de uma santidade inter-religiosa.

3) Como compreender o Deus de que Etty Hillesum fala?

Antes de falar sobre Deus, é necessário indicar os passos que marcaram o cenário de sua vida interior. O que ocorreu em sua caminhada foi um rico e paciente processo pedagógico de crescimento interior, muito favorecido pela presença de Spier ao seu redor. Sua juventude, como a de outros contemporâneos, foi marcada por inquietude e impaciência, insegurança e solidão. Relata em seu diário que chegou em certa ocasião a pensar em suicídio[7]. Sofria também de bulimia, mesmo durante o período em que viveu em Westerbork[8]. Só aos poucos, num trabalho singular de “higiene espiritual” é que ela foi encontrando o caminho da paz em seu coração. Foi um intenso processo de busca do domínio interior, de harmonização de todas as suas contradições e dificuldades[9]. Não foi um caminho fácil até encontrar a intimidade com Deus[10].
A experiência de Deus acompanha profundamente sua experiência de mergulho no mundo interior, de cuidado com o “ponto virgem”, com o seu fundo interior, com a centelha florescente e verdejante, para utilizar uma expressão cara a Mestre Eckhart[11]. Como diz o místico alemão, “aqui o fundo de Deus é o meu fundo e o meu fundo é o fundo de Deus”[12]. Deus, para Etty, consistia na “parte melhor e mais profunda” de si mesma, aquela a quem chamava Deus[13].  A jovem holandesa, sentia-se “eleita por Deus”, eleita para permanecer atenta e viva num ambiente que se acentuava cada vez mais hostil e desumano. Dizia em seu diário, em 12 de julho de 1942, numa de suas mais lindas orações:

“Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus”[14].

            O que vai presidir a vida de Etty, a partir de certo momento, é um colóquio ininterrupto com Deus, um contínuo falar com ele, com alegria e liberdade. Um passo fundamental de acolhida gratuita ou reconhecimento de Deus em seu mundo interior. Falava sempre da necessidade de abrir caminhos para esse Mistério, deixar que ele aflorasse com seus dons inusitados e benfazejos. Deus estava para ela dentro do “poço” profundo de seu mundo interior, mas interditado por camadas de pedras e detritos, que somente através de um trabalho contínuo poderia ser desenterrado novamente[15]. É algo laborioso, que exige paciência, que se dá a cada dia, num processo de abrir passagem à fonte original que habita o nosso mundo interior e que aprendemos a nomear como Deus[16]. O acesso a Deus, segundo sua visada, só vem facultado pelo mergulho na vital “corrente subterrânea” que preside o mistério da vida. Essa “corrente” (stroom) “é a alma do mundo, o sentido e a força vital que, como uma música de fundo, permeia e sustenta todo o criado: toda criatura humana e a história mesma”[17]. Diz ainda em seu diário, em 28 de setembro de 1942:

“Creio que é justamente o medo que as pessoas têm de se esforçarem demais que lhes retira as suas melhores forças. Quando uma pessoa, ao fim de um processo longo e difícil que prossegue diariamente, atingiu as fontes primárias dentro de si, a que eu agora desejo chamar Deus, e quando uma pessoa trata de manter esse caminho até Deus aberto e livre de obstáculos – o que acontece ´trabalhando-se a si própria`-, essa pessoa renova-se na fonte e então não necessita de ter medo de oferecer forças a mais”[18].

            Foi justamente bebendo nesta corrente subterrânea que Etty conseguiu dar um significado novo à sua vida e firmar-se na resiliência essencial. Anotava em seu diário, em 17 de setembro de 1942: “Estou-te grata, meu Deus, por tornares a minha vida tão bonita onde quer que eu esteja”[19]. Daí o toque peculiar de seu mantra vital: “A vida é bela”.

4) E se o Deus de Etty Hillesum reside no seu interior, quais os desafios de encontrar a face de Deus no outro? Como ela atualiza a ideia de hospitalidade?

            A missão levada avante por Etty foi de não deixar escapar Deus, daí sua preocupação em agradá-lo de todas as formas possíveis. Na bela oração de 12 de julho de 1942 dizia:

“O jasmim nas traseiras da minha casa encontra-se agora completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos dias. As suas florzinhas brancas boiam dispersas na lamacentas poças negras do telhado raso da garagem. Mas, algures em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu. E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus. Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei-de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás-de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível. E já agora para te dar um exemplo ao acaso: se eu tivesse encerrada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos ainda tivesse forças para isso”[20].

            Etty sentia-se, verdadeiramente, nos braços de Deus, em seu aconchego misericordiosos e hospitaleiro[21]. O mistério de sua resistência encontrava também na presença de amigos especiais, como Spier, Liesl e Werner[22]. Os dois sentimentos fundamentais que delineavam o percurso espiritual de Etty foram Deus e o Amor. O amor ao próximo era um desdobramento natural de sua experiência de Deus[23]. Dizia com frequência que nossa tarefa no tempo é a de “aumentar a escolta de amor sobre esta terra”, evitando a todo o custo o acirramento do ódio. O amor, sim, é o valor essencial que ela buscava deixar como herança para os tempos futuros. E assim o fez. Como num belo gesto eucarístico, doou o seu corpo, partiu-o, para reparti-lo entre os seres humanos[24]. Etty estava movida pelo sentimento de amor universal, que envolvia alemães e holandeses, judeus e não judeus[25]. Com seu finíssimo olho espiritual, Etty era capaz de amar a todos, sem pensar em reciprocidade. Esse amor estava firmado em seu mundo interior e irradiava como perfume. Dizia que o amor ao semelhante é como “um brilho elementar que nos sustenta”[26]. Era uma mística apaixonada pelo capítulo 13 da primeira carta aos Coríntios, que fala do hino à caridade: “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, seu eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine” (1 Cor 13, 1)[27]. Etty tinha muita clareza sobre a urgência da hospitalidade. Acentuava a importância de “hospedar o outro no espaço interior e deixar que se expanda”, de buscar conservar um lugar para ele, um lugar de destaque, onde possa amadurecer e revelar sua potencialidade única[28].

5) A jovem judia é completamente desterrada e condenada a viver o mundo que lhe sufoca a liberdade. Mas, ao mesmo tempo, ela mergulha em si mesma e alarga seu espaço interior. Quais os desafios para se apreender esses movimentos em Etty Hillesum? Como é possível em tanta dor ainda ser capaz de perceber um céu azul?

            Dentre os diversos místicos que ajudaram a delinear a vida espiritual de Etty Hillesum, podemos indicar o poeta Rainer Maria Rilke. São diversas vezes que ele aparece citado no seu diário[29]. Nas Cartas a um jovem poeta, Rilke aconselha ao aprendiz de poesia, Franz Kappus, a “entrar em si mesmo”, como condição essencial de iniciação ao mundo dessa arte. Igualmente nas Elegias de Duíno, Rilke assinala que “em parte alguma o mundo existirá, senão interiormente”[30]. Etty adentra-se no mundo interior e busca ouvir o canto da profundidade, a escuta da paisagem de si mesma. Diversas vezes utiliza a expressão hineinhorchen, ou seja, o prestar atenção dentro, que envolve o mundo de si, dos outros e de Deus, ou em outras palavras, o canto das coisas. Ela seguia a risca o conselho de reservar um momento especial e garantido para o devido tempo interior, a hora de quietação (stille stunde), o repousar em si mesma (ruhen in sich). Ali naquele espaço interior é que ela podia acessar com alegria a “corrente subterrânea da vida”, que aquece os dias e fornece o significado essencial da dinâmica existencial. Ali ela encontrou a força necessária para manter acesa a sua resistência contra a dor e a perseguição. Ela dizia em seu diário, em 12 de março de 1942: “Quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo”[31]. Com o olhar iluminado do mundo interior ela era capaz de ver jardins nas paisagens mais sombrias e irradiar o toque da alegria. Em página de seu diário, em 30 de maio de 1942, afirmou:

“Num momento inesperado, abandonada a mim própria – encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me de modo muito protetor, e nem sequer consigo descrever o bater do coração: tão lento e regular e tão suave quanto abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse, e também tão bondoso e compassivo”[32].

            Animada interiormente ela podia dizer ao final de cada dia, a plenos pulmões, que a vida é bela, que “apesar de tudo é muito bela”[33]. A cada momento que se seguia à sua submersão em si, retornava com a alegria essencial. Uma escuta luminosa que fazia repercutir e irradiar o canto do amor e da esperança. Tinha também o hábito de se recolher no banheiro, numa esteira de fibra de coco, para fazer suas orações, ali tranquila como Buda, e participar vitalmente de sua “hora quieta”, fazer sua “higiene da alma”[34]. Aprendeu a escutar o mundo da profundidade, a estar atenta no aqui e no agora, com as marcas do despojamento e da simplicidade. Quanto mais equilibrada se sentia, tanto mais forte e solidificada para enfrentar os desafios. Anotara no diário de sua amiga cristã, Tide:  “Mesmo se estivesse numa cela subterrânea, aquele pedacinho de céu se estenderia dentro de mim e o meu coração voaria até ele como um pássaro, e é por isto que tudo é assim simples, extraordinariamente simples e belo, e rico de significado”[35]. Seu desejo mais forte era o de viver a simplicidade dos lírios do campo e poder “tocar com a ponta dos dedos os contornos da época”, ou então ser como o pequeno pastor que guia suas ovelhas tocando alegremente a sua flauta e olhando o céu[36]. Era uma jovem mulher ensolarada. Tinha dentro de si uma porção da eternidade. Dizia: “Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim”[37]; ou ainda: “Através de mim correm os largos rios e situam-se as altas montanhas. E por detrás dos matagais do meu desassossego e confusão estendem-se as largas planícies do meu sossego e entrega. Todas as paisagens estão dentro de mim”[38]. Tinha a viva consciência de que a construção da paz interior repercutiria na paz universal[39]. Chegou a cunhar uma palavra, com base em Eckhart, Gelatenhaid, que poderia ser definida como abandono fiducioso.
            
6) Qual o papel de Julius Spier nas descobertas de Etty Hillesum? A partir dessa relação, como “experiencia” o amor?

            Foi Julius Spier um dos personagens mais importantes na tessitura do mundo interior de Etty Hillesum. O primeiro contato aconteceu em 03 de fevereiro de 1941, quando ela o procurou para fazer terapia. Era grande a diferença de idade entre os dois: ele tinha 54 anos e ela 26. Era um judeu alemão que veio para a Alemanha em razão da perseguição nazista. Incentivado por Jung, desenvolveu uma técnica terapêutica que se utilizava da leituras das formas e linhas das mãos para abordar o tratamento e cura das pessoas. Era um profissional competente, muito amado pelas mulheres, com uma vida espiritual destacada[40]. Assim ocorreu com Etty, que foi tomada de encanto por ele. Em várias páginas de seu diário relata o traço sedutor de sua personalidade, o fascínio causado por ele. Dizia que dez minutos com ele valiam um dia inteiro. Em página de seu diário, em 9 de março de 1941, fala sobre ele: “Os seus olhos límpidos e puros, a grande boca sensual, a corporalidade maciça, quase taurina, os movimentos livres e ligeiros como pluma”[41]. Diante dele conseguia recuperar suas forças. Ocorria também na dinâmica terapêutica lutas corporais entre os dois, onde muitas vezes ela saía exaurida[42].  Ao longo do processo ela acabou apaixonando-se por ele. Foi também uma relação que abriu novos caminhos espirituais na vida de Etty, com conselhos importantes dados por ele a ela em torno de sua formação espiritual, indicando autores que foram fundamentais para o seu aprimoramento pessoal: a leitura da Bíblia e de Agostinho, por exemplo[43]. Etty assinala em seu diário que foi ele, Spier, quem libertou suas forças interiores e quem a ensinou a pronunciar com naturalidade o  nome de Deus[44]. Foi também com Spier que Etty deu-se conta da centralidade do amor universal. Em carta a Spier, datada de 5 de agosto de 1941, reconhece que foi ele quem ensinou a ela “que o amor por todas as coisas é mais belo do que o amor por uma só pessoa”[45]. Foi por incentivo de Spier que Etty deu início à redação de seu diário. 

7) De que forma o exercício da escrita contribui para a constituição de um caminho que leva para o conhecimento e fortalecimento interior?

            O processo da escrita em Etty Hillesum ocorreu como passo de seu tratamento terapêutico. Foi Spier quem, provavelmente, a incentivou a começar a escrever o seu diário[46]. Foi quando então ela pôde expressar com sentimento vivo os traços de sua vida, seus temores, alegrias e esperanças. Não há dúvida alguma sobre a importância desta arte de escrever na conformação do pensamento de Etty, bem como de seu equilíbrio interior e de sua espiritualidade. Dizia em página de seu diário, que não tinha acesso ao significado profundo da dinâmica de sua escrita[47]. Mas certamente era algo que marcou e firmou o seu itinerário. No processo de sua criação, deve-se destacar o influxo importante de Rilke. Com ele, alguns conselhos essenciais para o processo formativo, que incidiu na sua redação, como os traços da paciência e da humildade, bem como uma porta de entrada significativa para adentrar-se nos mistérios de Deus. De forma semelhante ao que ocorreu com Thomas Merton[48], Rilke teve um lugar de destaque na vida de Etty. Dizia no seu diário que ele é alguém que se leva junto a vida inteira, um marco referencial para a existência[49].

8) Etty Hillesum fala em abrir o espaço interior todas as manhãs. Podemos associar essa perspectiva à ideia cristã de que os valores evangélicos devem ser vividos a cada dia e em todos os atos, por mais insignificantes que possam parecer? Por quê?

            Foi também um conselho dado por Spier a Etty no processo terapêutico, o de levar ao coração aquilo que se encerra na cabeça. Ou seja, o caminho de busca essencial do mundo interior e da prática da oração continuada. Aconselhou Etty a dedicar-se pelo menos meia hora por dia à prática da meditação, e também a ajoelhar-se[50]. Tudo isso fazia parte de um programa de “higiene da alma”, mesmo reconhecendo que já antes Etty tinha feito contato com a obra de Rilke, que também aconselha esse exercício interior. É evidente a associação com a prática cristã, cujos livros inspiradores foram também indicados para leitura de Etty, como a Bíblia e Santo Agostinho. Aos poucos, Etty foi acordada para o valor capital da oração, do ajoelhar-se, de se entregar humildemente ao Mistério Maior. Dizia em página de seu diário que queria ser “uma única, grande oração. Uma única, grande paz”[51]. Dizia ainda: “Ainda me restam duas mãos juntas e um joelho dobrado”, algo que aprendeu com dificuldade[52]. Em momentos ainda mais sombrios, quando os apuros se acirraram dizia: “Há de haver sempre uma nesga de céu visível em alguma parte e tanto espaço em meu redor, que as minhas mãos sempre se poderão juntar em oração”[53]. Quanto mais o cerco se apertava no campo de Westerbork, mais significado alcançava a oração na vida de Etty, formando como que uma “cela monástica” protetora, onde podia encontrar a paz[54].

9) A jovem judia também fala em “respeitar as pausas”. No que consiste isso? E como difere a ideia de “pausa” a de “paralisia” e “medo”?

            As pausas foram sendo fundamentais na vida espiritual de Etty, como já falei anteriormente. Trata-se do cuidado com o mundo interior e com o repousar em si mesmo para poder escutar o canto das coisas. É nesses momentos de calma, tranquilidade e atenção que se consegue captar o rumor da corrente subterrânea da vida. Para que isto ocorra é necessário todo um trabalho para vencer as barreiras do pequeno eu (kleine ik). Essa dinâmica de quietação não significa, em hipótese alguma, em fuga do mundo ou temor da dinâmica do tempo, mas um processo de equilibração interior para poder adentrar-se no tempo e nas suas lutas com mais empenho e eficácia. É o que também dizia Teresa de Ávila em suas Moradas: “O amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus” (V M 3,9).

10) O que é a liberdade em Etty Hillesum?

            A liberdade para ela é algo de essencial, que vem coroar uma dinâmica de vida pautada pela gratuidade e pelo pleno desabrochar da espontaneidade. Dizia com razão a teóloga Wanda Tommasi, a liberdade do Espírito é o que caracteriza a mística de Etty Hillesum. Ela trouxe consigo e inspirou para o mundo uma santidade colada no tempo, aberta aos ventos da espontaneidade, ancorada na certeza da Presença de um Mistério que é sempre maior, e que não se conforma exclusivamente a nenhum recinto confessional.

11) Etty Hillesum manifesta claramente a potência do amor e da alegria, mas ela chega a refletir acerca de sentimentos contrários a esses, como o ódio?

            O amor é a chave de compreensão da espiritualidade de Etty Hillesum. Dizia com vigor em suas cartas e em seu diário que é tarefa nossa contribuir para que a “escolta de amor” cresça sobre a terra.  A seu ver, “cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio já exorbitante, torna esse mundo inabitável e insustentável”[55]. Etty tinha todos os ingredientes para deixar-se tomar pelo ódio ali no campo de concentração, em Westerbork. Ali viveu num pedacinho “terrivelmente triste e vergonhoso” da história da humanidade[56]. Um motivo de vergonha. Ali visualizou o potencial de sofrimento que um ser humano é capaz de enfrentar, da dor e da humilhação. Naquele local, como assinalou em carta, “não se podia fazer muito com palavras, e por vezes, uma mão sobre o ombro era demasiado pesada”[57]. Duras são suas palavras sobre as condições vividas ali no campo de Westerbork[58]. Mas não se deixou tomar pelo ódio, ao contrário, continuou celebrando a alegria da vida, num abandono fiducioso e arrebatador ao Deus misericordioso. Com todas as condições para dizer o contrário, Etty rechaça em sua reflexão qualquer possibilidade de adesão ao ódio. Abrir espaços para sentimentos de vingança era para ela ampliar a dinâmica da dor e do sofrimento[59]. Assinalou em carta de dezembro de 1942: “Lá (em Westerbork), experimentei com vigor como cada átomo de ódio que se introduz neste mundo torna-o ainda menos acolhedor”[60]. Etty, com seu exemplo e sua prática não nega a existência do mal, mas o desarma, “subtraindo-o do poder de definir em última instância o que é a vida”[61]. Há que alargar, sim, os espaços e sentimentos de amor. 

12) Na sua opinião, qual a grande lição de Etty Hillesum?

            Para mim, a grande lição é a da resistência e alegria. Vejo como um de seus legados mais importantes, o desafio de alargar sempre mais os espaços de alegria e paz nos caminhos de nosso tempo. E também de acender sempre os meandros da resistência, encontrando brechas para apontar caminhos alternativos em favor de um mundo melhor. Apesar de todas as opressões, exclusões e marginalizações a que nós humanos, e também as outras espécies companheiras, sofrem, faz-se necessário criar novos espaços de acolhida, cuidado, ternura e hospitalidade. São valores essenciais que aprendemos com práticas como as de Etty Hillesum. Uma jovem provada, que em situações de extrema opressão conseguiu manter acesa a chama da alegria e partiu cantando para Auschwitz[62]. É um exemplo que deixa rastros na nossa memória e que nos anima a irradiar algo semelhante em nosso tempo sombrio.

13) De que forma, inspirados na mística de Etty Hillesum, podemos encarar os desafios de nosso tempo erguendo uma barreira interior para evitar que a apatia e o desânimo tomem conta de nosso ser? Como diante da afronta e da intolerância responder com alegria e amor?

            Sem dúvida, esse é um desafio essencial. Ampliar o campo energético de nosso mundo interior. Já dizia um grande humanista, “revolucionários tristes só fazem uma triste revolução”. É cuidando de nosso mundo interior e ajudando os nossos amigos a fortalecerem o seu mundo, que poderemos manter acesa a chama da esperança. Em nosso tempo, a doença mais terrível e quantitativamente mais presente é a depressão. Exemplos e testemunhos como os experimentados por Etty são alvissareiros. Daí a importância de resgatar e alimentar o seu fantástico legado. 

14)   Deseja acrescentar algo?

            Gostaria ainda de dizer algo a respeito de como Etty Hillesum encarou a proximidade de sua morte. É impressionante a serenidade com que ela enfrentou a dura situação no campo de Westerbork. O sofrimento estava presente. Ela dizia: “A cada dia se envelhece dez anos”[63]. Tão difícil verificar que diariamente morriam duas a três crianças naquele campo, e ter que testemunhar continuamente o medo e o desespero de tantos companheiros e companheiras não foi nada fácil. Tudo muito difícil. Apontava em seu diário – citando Mechanicus -  que se sobrevivesse naqueles tempos difíceis, sairia mais madura, mas se morresse, também sairia mais madura e profunda[64]. Tão duro ver a cada semana o trem partir levando seus amigos para Auschwitz; tão difícil acompanhar o sofrimento de seus pais, e se maravilhar ao ver seu pai dizer que estava pronto para suportar viver o que tantos outros passaram antes dele[65]. Tudo isto se explica pela presença de um brilho incomum em seu coração, de potencialização vital. Uma força dinamogênica que a fazia manter acesa a alegria em seu coração. Dizia numa clássica carta que era fundamental manter “uma grande dose de sol dentro de si” para evitar o choque psicológico[66]. Permaneceu aquecida sob o mote central de sua vida: “A vida é bela!”, apesar de tudo. Em outra passagem de seu diário sublinha: “Quero estar lá no meio daquilo a que as pessoas chamam ´terrores` e ainda dizer que a vida é bela”[67]. Sabia como enfrentar suas “depressões”, encarando-as como “pausas criativas”[68], sempre com o olhar voltado para o alto e para o centro de si mesma. Sabia aceitar com honradez os momentos “não criativos”  e mais vazios que às vezes “distraíam” o seu coração, e tudo enfrentado com muito garbo e paciência[69]. Sabia que tinha uma missão essencial naquele campo de dor: “Desenterrar Deus no coração dos atormentados”, resguardando neles o sentido da própria dignidade”[70], o desafio de despertar para a vida aquilo que já morreu nos vivos[71]. Desde aquela data central de sua vida, em 3 de julho de 1942, compreendeu o plano dos alemães e se deu conta da proximidade de sua morte[72]. Começa a falar sobre a morte com tranquilidade e a aceita em seu itinerário. Diz numa carta: “A possibilidade da morte é um dado tão absoluto na minha vida, como se a morte, por assim dizer, a tivesse ampliado tanto que o enfrentar e aceitar a morte, a destruição, qualquer espécie de destruição, passou a fazer parte desta vida”[73]. Mas foi adiante com segurança e fé, pois sabia que tinha um destino a cumprir e que estava amparada por Deus. Sabia como se colocar diante das circunstâncias adversas, e de forma otimista. Estava ali para poder testemunhar que Deus viveu também naquele tempo[74]. Daí ser reconhecida no campo de Westerbork como o “coração pensante”, que mantinha a chama da esperança sempre acesa. E concluo com um lindo pensamento tirado de seu diário: “Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o teu grande céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de vez em quando”[75]. Esse pode ser, sem dúvida, o mantra de todos nós nesses momentos sombrios em que também vivemos.

(Publicada no IHU-Online n. 531, dezembro 2018:
http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7476-etty-hillesum-canta-a-alegria-contra-o-odio)




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[1]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera. Firenze: Le Lettere, 2018, p. 18 (a cura di Beatrice Iacopini),
[2]Etty Hillesum. Diario. Edizione integrale. Milano: Adelphi, 2012, p. 794. Utilizei também a tradução portuguesa. Etty Hillesum. Diario1941-1943. 3 ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
[3]Ibidem, p. 265.
[4]Ibidem, 260.
[5]Wanda Tommasi. A liberdade do Espírito: Etty Hillesum, uma santidade nova. Concilium, v. 351, n. 3, 2013, p. 116.
[6]Ibidem, p. 117.
[7]Etty Hillesum. Diario, p. 737 e 796.
[8]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 8 e Etty Hillesum. Cartas1941-1943. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 199. A edição italiana: Lettere. Edizione integrale. Milano: Adelphi, 2013.
[9]Etty Hillesum. Diario, p. 687.
[10]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 92.
[11]Mestre Eckhart. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 50 (Sermão 2).
[12]Ibidem, p. 67 (Sermão 5b).
[13]Etty Hillesum. Diario, p. 141-142. Na edição portuguesa, p. 251-252.
[14]Ibidem, p. 713.
[15]Etty Hillesum. Cartas, p. 112.
[16]Etty Hillesum. Diario, p. 777.
[17]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 158.
[18]Etty Hillesum. Diario, p. 777. Na edição portuguesa, p. 310.
[19]Ibidem, p. 758.
[20]Etty Hillesum. Diario, p. 714-715. Na edição portuguesa, p. 253.
[21]Ibidem, p. 711.
[22]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 16.
[23]Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo. Il problema del male in Etty Hillesum e Simone Weil. Milano: San Paolo, 2009, p. 117.
[24]Etty Hillesum. Diario, p. 797.
[25]Etty Hillesum. Cartas, p. 55. 
[26]Ibidem, p. 190.
[27]Ibidem, p. 98.
[28]Etty Hillesum. Diario, p. 416. E também: Etty Hillesum. Pagine mistiche. Milano: Ancora, 2007, p. 83,
[29]Etty Hillesum. Diario, p. 363, 368-369, 450, 464,466,592-593, 730.
[30]Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 22 e 33; Id. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 63 (sétima elegia).
[31]Etty Hillesum. Diario, p. 413.
[32]Ibidem, p. 568. Na edição portuguesa,p. 187-188.
[33]Ibidem, p. 414.
[34]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 12.
[35]Etty Hillesum. Diario, p. 752.
[36]Ibidem, p. 766. 
[37]Ibidem, p. 638.
[38]Ibidem, p. 792-793.
[39]Ibidem, p. 778.
[40]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 10
[41]Etty Hillesum. Diariop. 31 e 599.
[42]Ibidem, p. 42 e 71.
[43]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11.
[44]Etty Hillesum. Diario, p. 752.
[45]Etty Hillesum. Cartas, p. 23.
[46]Etty Hillesum. Diario, p. 22 (palavras do editor do diário: Klaas A.D. Smelik).
[47]Etty Hillesum. Diario, p. 452.
[48]Veja Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 302.
[49]Etty Hillesum. Diariop. 368-369 e 592-593.
[50]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11.
[51]Etty Hillesum. Diario, p. 786.
[52]Etty Hillesum. Diario, p. 793.
[53]Ibidem, p. 718. Na edição portuguesa, p. 256.
[54]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 20.
[55]Etty Hillesum. Diario, p. 688.
[56]Etty Hillesum. Cartas, p. 92.
[57]Ibidem, p. 93.
[58]Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork. Roma: Srl, 2014.
[59]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 110.
[60]Ibidem, p. 147.
[61]Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, p. 35 (citando P.King).
[62]Etty Hillesum. Cartas, p. 238 e 261.
[63]Etty Hillesum. Diario, p.715.
[64]Etty Hillesum. Cartas, p. 159.
[65]Ibidem, p. 171.
[66]Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork, p. 29.
[67]Etty Hillesum. Diario, p. 791.
[68]Etty Hillesum. Cartas, p. 28-29.
[69]Etty Hillesum. Diario, p. 796.
[70]Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 30.
[71]Etty Hillesum. Diario, p. 755.
[72]Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, p. 39.
[73]Etty Hillesum. Cartas, p. 219.
[74]Etty Hillesum. Diario, p. 738.
[75]Ibidem, p. 773. Na edição portuguesa, p. 305.