O humano na malha das relações
Faustino Teixeira
Duas noções básicas estão presentes no chamado ensinamento de Buda (Buddhadharma) e são fundamentais para entender a teia de conectividade que marca o universo: a originação interdependente (pratîtyasamutpâda) e a dinâmica da impermanência. Por um lado, a percepção de que todas as coisas não podem ser compreendidas de forma separada, mas estão inseridas num jogo relacional; por outro, a compreensão de que nada do que existe ganha um traço de substancialidade estanque ou estatuto de entidade independente. Com base no conceito de anâtman, nenhum ser é dotado de substancialidade ontológica. Disto segue que “o conceito de sûnyatâ(´vacuidade`): na medida em que os seres são interdependentes e complexos, não se pode afirmar a existência deles enquanto entidades autônomas; pelo contrário, é a vacuidade de uma suposta substância que caracterizaria de forma mais apropriada tanto a ´existência` quanto os ´indivíduos`”[1].
Com a percepção viva da originação interdependente somos capazes de perceber os vínculos que estão por toda parte. É também o que captou o mestre Dôgen, da tradição Soto Zen, no século XIII, repercutindo as palavras do 27º patriarca indiano, Han.nyatara: “Quando uma flor eclode o mundo inteiro se levanta”[2]. A abertura das pétalas de uma flor traduzem a abertura de seu coração para a recepção da água, a escuta do vento e a dinâmica da luz. Instala-se, assim, o universo da ressonância essencial, onde todas as coisas repercutem-se mutuamente, manifestando o caminho do Despertar.
Essa ressonância foi destacada por papa Francisco na sua encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum (2015). Por diversas vezes ele sinaliza sua convicção sobre a estreita interligação entre tudo[3]. Como assinala Francisco, é a própria base da existência do ser humano que se desmorona quando ele busca declarar-se autônomo (LS 117). O antropocentrismo revela, na verdade, uma problemática relação do ser humano com o mundo e os outros seres da criação. Uma espiritualidade ecológica, profunda, resgata a dinâmica relacional: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233).
Uma nova compreensão veio favorecida pela antropologia, e aqui podemos lembrar a presença de Tim Ingold, com suas esclarecedoras reflexões sobre o ser humano, entendido em seu “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos”[4]. O autor lança o singular desafio de uma atenção nova ao tempo. Todo ser que se move deve estar atento, pois “estar atento significa estar vivo para o mundo”[5]. Nesta obra, Ingold recorda-nos de que cada ser é um “feixe de linhas”. Somos assim lançados como “um redemoinho na corrente da vida”, situados não num “lugar” mas “ao longo de caminhos”[6]. A textura do mundo é marcada por entrelaçamentos, um tecido de nós: “É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou ´emanam` ao longo de suas relações”[7]. Organismos e pessoas formam “nós em um tecido de nós”. E ingold reflete com acerto: “As coisas são suas relações”. Estamos todos envolvidos na textura do mundo da vida, sem privilégios ou excepcionalidades.
Ingold bebe também na reflexão de Gilles Deleuze e Félix Guattari, sobretudo o passo reflexivo presente no primeiro volume da obra Mil platôs, quando os autores abordam a instigante questão do rizoma[8]. Vejo aqui uma porta importante de acesso para celebrar o valor do múltiplo, do plural. O Rizoma, dizem nossos autores, é diferente da árvore, que é símbolo muito querido no Ocidente. A árvore e a raiz fixam-se num ponto e indicam a presença de uma ordem. O rizoma não, ele se espalha “como manchas de óleo”[9]. Ele produz bulbo, evolui “por hastes e fluxos subterrâneos”. Em verdade, “as multiplicidades são rizomáticas”. Num rizoma não existem “pontos” ou “posições”, como numa árvore, mas linhas de segmentaridade, que podem até dissolver-se, desterritorializar-se, mas logo encontram seus pontos de fuga. As linhas “não param de se remeter uma às outras”[10].
Deleuze e Guattari indicam que no Ocidente há uma relação privilegiada com a floresta, com as árvores (e também o desmatamento). No Oriente, por sua vez, a relação se dá com a estepe e o jardim. Há alí uma resistência ao confinamento em espaços fechados. Daí também a predileção pela imanência. A pista está no rizoma e na erva. Dizem os dois autores, com referência a certos historiadores: “A única saída é a erva (...). A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento”[11].
O rizoma quebra o mundo da ordem, produzindo “deformações anárquicas no sistema transcendente das árvores; raízes aéreas e hastes subterrâneas”[12].
E os autores definem então as principais características de um rizoma:
“Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos. O rizoma não se deixa conduzir nem ao Uno nem ao múltiplo”[13]. Tudo isto muito complexo mas também provocador. Assim, o rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”[14].
O rizoma é composto de linhas, linhas de segmentaridade, mas também linhas de fuga ou de desterritorialização. O que está aqui em questão, fundamentalmente é a RELAÇÃO. É como um platô, que está sempre no meio, sem início nem fim. O rizoma “não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo”. Enquanto a árvore indica filiação, o rizoma expressa a aliança. O que a árvore impõe é o verbo “ser”, enquanto o rizoma a conjunção “e...e...e...”[15].
Questões como “de onde você vem” ou “onde quer chegar” não se colocam para quem pensa inspirado na noção de rizoma. O mesmo se diria da obsessão em se buscar um fundamento ou também a unidade. São questões meio “inúteis” nesta nova linha de reflexão, “implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento”.
São questões que abrem um campo fantástico para a reflexão, também teológica, neste tempo marcado pelo desafio da pluralidade.
[1]Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 64.
[2]Maître Dôgen. Shôbôgenzô. La vrai loi, trésor de l´oeil. Vannes: Sully, 2005, p. 189 (no capítulo Udonge).
[3]Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si(LS) Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 16, 42, 91,92.
[4]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 12.
[5]Ibidem, p. 13.
[6]Ibidem, p. 38.
[7]Ibidem, p. 120.
[8]Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª reimpressão em 2017).
[9]Ibidem, p. 23.
[10]Ibidem, p. 25-26.
[11]Ibidem, p. 40.
[12]Ibidem, p. 42.
[13]Ibidem, p. 43.
[14]Ibidem, p. 43.
[15]Ibidem, p. 48.