Ciência da Religião na
UFJF: marcos de uma caminhada
Faustino
Teixeira
(Entrevista)
Você foi um dos
primeiros estudantes de graduação de Ciência(s) da(s) Religião(ões) (CR) no
Brasil. Pode relatar como conheceu o curso e o que fez você ingressar nele?
De fato, a primeira graduação em ciências
da religião no Brasil aconteceu em Juiz de Fora, ainda que com uma outra
nomenclatura: ciências das religiões. O Departamento de Ciências das Religiões
veio bem antes, sendo criado em junho de 1969. É mesmo bem pioneiro. A
graduação em si começou em meados da década de 1970, sendo o primeiro
vestibular realizado em 1976. Eu fui, de fato, um dos primeiros alunos do
curso, cujas disciplinas já cursava desde 1974, quando entrei para a UFJF,
inscrito no curso de Filosofia.
Essa era uma peculiaridade daquele tempo:
os alunos podiam fazer dois cursos simultâneos. A filosofia funcionava no
período da manhã e as ciências das religiões no período noturno, abrigada nas
instalações do Departamento de Serviço Social, no centro da cidade. O projeto
era bem interessante, de autoria do grande mestre Jaime Snoek, padre
redentorista, que trouxe um esboço do curso da Holanda, com modelo bem próximo
da teologia, mas com abertura para outros campos.
Os professores lecionavam também, na sua
maioria, no Departamento de Filosofia, e alguns eram ex-padres redentoristas,
que viveram a crise do pós-concílio. Lecionavam antes no Seminário Maior dos
Redentoristas, localizado no bairro da Floresta, que também acabou fechado no
período pós conciliar. Foram então abrigados na UFJF, vindo a lecionar no
Departamento de Filosofia. Cito alguns nomes importantes: Jaime Snoek e João
Fagundes Hauck, que continuaram como sacerdotes e Vitorino Duarte e Raimundo Evangelista do Carmo, que deixaram o
ministério. A eles depois se somaram outros docentes: Henrique Oswaldo Fraga de
Azevedo, Wolfgang Gruen, Domício Pereira Matos, Antônio Pedro Guglielmi,
Eduardo Benes de Sales, Walmor Oliveira de Azevedo, Zwinglio Mota Dias e
Antônio José Gabriel.
O curso se estruturava em dois módulos, com
um ciclo básico inicial[1],
seguido das cadeiras específicas. Dentre estas cadeiras: Ética I-II, Antropologia
Religiosa, Introdução ao Mundo Bíblico I-II, Sociologia VI (Antropologia da
Religião)[2], Hermenêutica Bíblica I-II-III , Cristologia
Bíblica, Escatologia Bíblica, Cristologia Sistemática, Eclesiologia
Sistemática, História do Cristianismo I-II-III-IV, Fenomenologia do
Cristianismo I-II-III-IV, Estudo Comparado das Religiões I-II, Psicologia da
Religião e Filosofia da Religião I-II. Nota-se uma presença forte de cadeiras
especificamente teológicas, mas já se percebe uma presença de outras
disciplinas envolvendo o campo das religiões: Fenomenologia do Cristianismo,
Estudo Comparado das Religiões, Filosofia da Religião, Antropologia da
Religião, Psicologia da Religião.
Alguns temas de ponta eram objeto de
reflexão no curso como as questões envolvendo religião e sexualidade (nos
cursos de Ética ministrados por Jaime Snoek), as religiões comparadas (Henrique
Oswaldo) e teologia da libertação (tema tratado na Fenomenologia do
Cristianismo IV – em particular o livro de Gustavo Gutiérrez: Teologia da
Libertação). Muito procurados eram também os cursos de Introdução ao Mundo
Bíblico, ministrados por Wolfgang Gruen. O sistema de créditos favorecia a
matrícula de alunos de outros cursos, inclusive de áreas distintas das ciências
humanas. Com funcionamento noturno, eram inúmeras as matrículas, sendo as
turmas sempre cheias. Cabe também ressaltar o método inovador de Gruen, na abordagem
crítica do texto bíblico, um estudo também pioneiro no Brasil. Há que mencionar
ainda a presença no curso do professor Antonio Guglielmi, conhecido biblista
brasileiro e que foi nomeado perito conciliar no Vaticano II. Teve um papel
muito importante nas famosas Conferências da Domus Marie, em Roma, por ocasião do concílio, que se tornaram
célebres na dinâmica conciliar e na renovação do clero brasileiro[3].
Já conhecia, por razões familiares, alguns
dos docentes do curso, em particular Jaime Snoek. Quando entrei para a
filosofia, em 1974, logo manifestei interesse em cursar as disciplinas de
ciências das religiões. Foi um encaixe exemplar, embora exigindo um ritmo
puxado de estudos, já que as aulas funcionavam nas manhãs e noites. A
experiência foi muito rica e novidadeira para mim. O período era também muito
favorável, um tempo politicamente difícil – ainda no tempo da ditadura militar
– mas provocador. Alguns professores eram bem corajosos e suscitavam uma
reflexão bem crítica e aberta. Tínhamos também, nas ciências das religiões, a
presença de outros intelectuais importante, mesmo não lecionando diretamente no
curso, mas muito presentes, como o pastor luterano Breno Schumann.
Como o meu ingresso foi na Filosofia, ao
terminar o curso e também as disciplinas de Ciências das Religiões, isto em
1977, consegui então um certificado da Universidade atestando a minha conclusão
do curso.
O que mais chamava atenção no curso de CR,
positivamente, para você? E o qual foi um ponto negativo?
O que mais me chamava a atenção era a
presença de certos docentes, de renome internacional, como Jaime Snoek: um nome
de peso na teologia brasileira, com atuação marcante e original em alguns
campos da reflexão, como a ética sexual. Vale registrar a sua presença na
Revista Internacional de Teologia, Concilium,
bem como na Revista Eclesiástica
Brasileira (REB), com artigos
corajosos e inovadores. Pude atuar bem perto deste professor, como monitor na
sua disciplina de Ética Sexual, ajudando a elaborar a primeira redação de seu
conhecido livro sobre o tema[4].
Recordo-me muito de seu curso sobre o livro de Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação, ministrado no
segundo semestre de 1975, ano do lançamento do livro deste pioneiro (Vozes, 1975). Jaime Snoek fez
parte da banca de minha dissertação de mestrado em teologia na PUC-RJ, em 1982.
Outro docente que exerceu importante influência na minha caminhada foi Wolfgang
Gruen, que me ajudou a refletir criticamente sobre a Bíblia e pensar de forma
singular a questão da religiosidade, tema que também marcou os passos de sua
reflexão, tendo contribuído de forma significativa para os avanços da discussão
crítica de um ensino “religioso” não confessional.
Chamo ainda a atenção para outros traços
inovadores daquele período em Juiz de Fora, nas ciências das religiões. Temas
importantes do estudo comparado das religiões provocavam a reflexão dos alunos,
inclusive na temática das religiões afro-brasileira, que era tema dos Estudos
Comparados II. Questões da fenomenologia da religião eram apresentadas aos
alunos, introduzindo autores essenciais como Mircea Eliade e Rudof Otto. E
ainda Paul Tillich, que era tema essencial na filosofia da religião, sendo o
seu livro sobre o tema, o manual utilizado no curso, cujo docente era Vitorino
Duarte.
Como eram seus colegas em relação ao curso?
O procuraram com quais expectativas? Como era o clima de formação da sua turma
e de outras que conhecia?
Os alunos que cursavam ciências da religião
de forma integral, eram também os mesmos que faziam filosofia. Isto só mudou
depois do primeiro e único vestibular realizado para o curso, realizado em
1976, mesmo assim com poucas vagas. Lembro-me de alguns nomes, que estavam
juntos nesta caminhada: Antônio José Gabriel – que depois se tornou docente no
curso (psicologia da religião), Franziska Carolina Rehbein (missionária serva
do Espírito Santo, que depois complementou seus estudos na teologia da PUC-RJ,
sob a orientação de Mário França Miranda), Heloisa Schmitt e Ricardo Rezende
(que depois atuaram como agentes de pastoral em Conceição do Araguaia), bem
como José Luis Fazzi e Adenilde Petrina (que foi também minha colega na
filosofia, tornando-se importante líder do movimento negro em Juiz de
Fora). Um pouco depois, temos também
Paulo Agostinho (que agora atua como docente na PUC-MG).
O clima da formação
era muito rico, com professores gabaritados, abertos e generosos. Foram tempos
de aprendizado e enriquecimento. O clima da ocasião era favorável à consciência
crítica e isto foi muito bom. A relação ente docentes e discentes era bem
positiva. Registro também os núcleos de estudos surgidos na ocasião, inclusive
num estudo sistemático da obra pioneira de Gustavo Gutiérrez sobre a teologia
da libertação. Era uma época que floresciam grupos de consciência crítica, como
a “Tropa Maldita”, envolvendo discentes de todo o Brasil, sob a orientação do
teólogo João Batista Libânio, que acabou tornando-se meu orientador de Mestrado
na PUC-RJ.
Eu e outros dois
discentes do curso – Ricardo Rezende e José Luis Fazzi – fomos convidados a
lecionar Formação Humana e Cristã no Colégio Cristo Redentor (Academia de
Comércio). Na ocasião, o reitor – Benito Falquetto – abriu espaços importantes
para uma atuação inovadora no colégio, valorizando sobretudo as atividades extra
sala de aula, como teatro (com o método de Augusto Boal), grupos bíblicos (com
os textos de Carlos Mesters), análise da conjuntura política etc. Isto foi em
torno de 1976 e 1977. Muitos dos alunos tornaram-se personalidades conhecidas
em vários campos de atividade.
Como foi a reação da comunidade acadêmica
sobre o curso de CR? Como era a relação com estudantes e professores de outros
cursos?
A presença das ciências das religiões na cidade de Juiz de
Fora teve um impacto muito importante. O traço original do curso acontecendo
numa universidade pública causou repercussão. Na comunidade de Juiz de Fora, os
efeitos negativos foram menores, pois a cidade – sobretudo os grupos mais
críticos de atuação social – tinha uma boa receptividade para a experiência.
Como era de se esperar, houve resistências bem duras em segmentos da
Universidade, sobretudo na Faculdade de Direito, e em particular um de seus
docentes: Almir de Oliveira. Apesar de ser um católico conhecido na cidade,
este professor liderou uma campanha viva contra o curso e suas disciplinas, com
argumentos bem positivistas. Em texto publicado no jornal da cidade, Diário Mercan til, chegou mesmo a chamar
o curso de “excrescência”, argumentando contra a sua presença numa universidade
pública: “Nenhuma universidade no Brasil tem essa coisa”. O artigo tinha como
título: O curso que não existe (Diário
Mercantil, 16/07/1977). Com base no argumento da laicidade brasileira, o
professor atacava o curso, sublinhando ainda que era um curso que tinha
“vergonha” de mostrar o que realmente era, ou seja, um curso de teologia.
Chegava ainda a desqualificar docentes do curso, como Wolfgang Gruen, e a
disciplina por ele ministrada.
Outras resistências vieram de lideranças eclesiásticas da
cidade, em particular do arcebispo, dom Geraldo Maria de Moraes Penido, para o
qual o curso significava um risco para a ortodoxia católica. Questionava também
a presença de ex-padres lecionando no curso, como no caso de Antonio Guglielmi.
Em documento elaborado pelo arcebispo, e encaminhado a dom Juvenal Roriz (que
também se tornou arcebispo na cidade), em 03/01/1978, ele assinala: “No início,
encarei com simpatia o curso, mas posteriormente, ao verificar que aquilo
estava se transformando num ninho de ex-padres e elementos contestatórios,
retirei minha aprovação e tive a iniciativa de comunicar minha posição perante
o Ministro da Educação...”[5].
O caso
registrava, assim, uma curiosa aliança entre positivistas e lideranças
eclesiásticas na resistência ao curso. Isto não ocorreu sem respostas também
vivas da comunidade acadêmica e intelectual. Na ocasião, eu era o representante
discente do colegiado do curso, e escrevi um artigo no Diário Mercantil em sua defesa. Dizia: “Quero manifestar minha
preocupação diante da possibilidade da eliminação do curso de Ciência das
Religiões da Universidade Federal de Juiz de Fora. É lamentável que uma
universidade federal não tenha autonomia para respeitar e compreender a
dimensão e importância de um curso que é altamente valorizado na Europa” (Faustino
Teixeira, Ciência das Religiões, Diário
Mercantil - 20/07/1977). Tinha antes escrito um outro artigo no mesmo
jornal, em 13/07/1977, defendendo o enfoque específico do curso, sobre a
religiosidade, de maneira científica e não confessional, algo bem diferente do
ensino religioso.
Outras vozes da comunidade acadêmica atuaram em defesa do
curso, mesmo por parte do DCE da Universidade, como Inácio Delgado. O campo da
defesa ganhou expressão em jornais de circulação mais ampla, como o Jornal do
Brasil, num artigo importante do professor de filosofia, Hilton Japiassu, em
15/07/1977. No artigo falava da ousadia da UFJF em aceitar o curso, superando o
“ranço positivista” e os “preconceitos obscurantistas” presentes nas
Universidades públicas até então. Fala ainda do traço “pioneiro” do curso no
Brasil, de “grande envergadura de inteligência”.
Apesar de tudo,
as incursões feitas pelos opositores junto ao Conselho Federal de Educação
surtiram o efeito desejado, e as novas inscrições para o curso, via vestibular,
foram eliminadas. Não houve mais vestibular, e o curso conseguiu se manter vivo
por iniciativa louvada das gestões feitas por Jaime Snoek. As disciplinas
continuaram sendo oferecidas no sistema de crédito, mas sem um curso
oficializado. Novos encaminhamentos de reformulação do curso foram realizados
posteriormente, com uma reforma curricular iniciada em 1980.
O Departamento
de Ciência das Religiões passou por grandes dificuldades, no início da década
de 1980, com uma pequena presença de corpo docente. Só mais tarde, por
incentivo de Antônio Guglielmi, então chefe de Departamento, novos professores
ingressaram no curso, como no caso de Walmor Oliveira de Azevedo e Zwinglio
Mota Dias (que tinha saído do curso, retornando depois). E no final da década
de 1980 e início de 1990, a minha entrada no curso, bem como de Pedro Ribeiro
de Oliveira e Luiz Bernado Leite de Araújo. Guglielmi estava decidido a
fortalecer a presença de professores leigos no curso, com encaminhamentos
diversificados para o ensino da ciência da religião (denominação que vigorou
por iniciativa da ação do próprio Guglielmi). E aí nasceu a especialização em
Ciência da Religião, em 1991, seguida pelo mestrado, em 1993.
Qual era a postura dos professores com
vocês em relação à formação em CR? Que tipo de comportamento acadêmico
esperavam dos futuros formados em CR?
Com o início da nova dinâmica, com a
criação da especialização e o mestrado em ciência da religião, o exercício de
uma formação mais aberta, plural e diversificada veio então a ocorrer. Firma-se
então uma perspectiva nova, com clareza nas novas áreas de formação: diálogo
inter-religioso, ciências sociais da religião e filosofia da religião. Os
alunos que foram ingressando no programa puderam escolher livremente sua área
de atuação, em coerência com sua formação pregressa. A nossa intenção era a de
que os alunos que ingressavam no programa não rompessem com sua área de
inserção acadêmica original, mas que pudessem aprofundar o campo de seus
estudos, agora com o enriquecimento da visão sobre a questão da religião. Um
programa com professores de diversas áreas e também alunos de diversas áreas.
Esse foi e tem sido um traço interessante de nosso programa.
E sobre trabalho, qual era o discurso dos
professores sobre o que fariam enquanto profissionais formados em CR?
Esse é um tema ainda em debate: a questão
da profissionalização dos egressos de ciência da religião. Muitos manifestam
preocupação a respeito, sobretudo tendo em vista os concursos realizados para
ingresso nas Universidades ou Institutos de Ensino. Há uma preocupação discente
e também docente de favorecer o reconhecimento da titulação alcançada. Como
também cresceram enormemente os cursos de ciências da religião no Brasil, por
todo canto, abrem-se novos caminhos de ingresso aos alunos, com concursos
realizados com regularidade.
Existia alguma conexão entre CR e Ensino
Religioso no discurso da comunidade envolvida com o curso? Se sim, qual e como
era?
Nos primeiros anos do curso de ciências das religiões,
sobretudo com a presença e influxo de Wolfgang Gruen, a preocupação em
distinguir ciências das religiões e ensino religioso era bem nítida. A ênfase
recaía sobre o estudo objetivo das religiões,
bem como sobre a religiosidade, ou seja, a dimensão de abertura do ser
humano ao horizonte mais amplo da transcendência ou do Mistério. Não se excluía
a hipótese de formar docentes visando sua presença no ensino religioso, mas a
perspectiva era de abertura ao campo plural, não se fixando, de forma alguma,
numa perspectiva confessional. Essa sensibilidade foi sempre marcante ao longo
dos anos. Foram feitas iniciativas no âmbito de aperfeiçoamento de docentes que
atuam no ensino religioso na região, mas sempre num horizonte de ampliação do
olhar.
Ainda sobre atuação profissional, era
restrita a educação, ou haviam disciplinas ou formações extracurriculares (como
palestras) que já apontavam outras formas de trabalho para formados em CR?
Chegou a trabalhar ou conhecer colegas do curso de CR que trabalharam em outras
áreas fora da educação?
A meu ver, todo o currículo de ciências da religião, em
Juiz de Fora, estava fundamentalmente direcionado para a teologia. Não conheço
casos, pelo menos daqueles alunos que se formaram em Juiz de Fora, que atuaram
fora da eduação. Isso explica o fato de
que vários dos egressos das primeiras turmas acabaram dedicando-se ao estudo da
teologia, ou então atuando diretamente na pastoral. Posso citar exemplos: eu e
Franziska Carolina fizemos nossa complementação teológica na PUC do Rio,
dedicando-nos em seguida ao trabalho teológico. A PUC-RJ exigia, na ocasião,
uma carta do bispo local – que era dom Geraldo – para o ingresso no Mestrado.
Franziska foi primeiro, tendo sido acolhida pelo professor Mário de França
Miranda (SJ). O seu doutorado teve como tema: Salvação no cristianismo e nos
cultos afro-brasileiros (publicado depois em livro nas edições Loyola, em 1985).
No meu caso, assim que terminei as duas graduações (filosofia e ciências das
religiões), em 1977, tinha a intenção de fazer o mestrado em sociologia da
religião na USP. Isto não foi possível em razão da morte do pretendido
orientador, Duglas Teixeira Montero. Por incentivo de João Batista Libânio,
acabei decidindo pelo mestrado em teologia na PUC-RJ, mas precisava da carta de
indicação do bispo de Juiz de Fora. Não tendo conseguido esse documento, por
rejeição do arcebispo, o diretor da teologia na ocasião, pe. Álvaro Barreiro,
aceitou cartas que consegui junto a sacerdotes da pastoral de Juiz de Fora,
atestando minha atuação na cidade. Pude assim me encaminhar também na teologia,
fazendo o mestrado na PUC-RJ e depois o doutorado na Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma. Ou seja, dois casos de egressos das ciências das religiões
que se encaminharam para a teologia[6].
Com respeito a outros egressos, posso citar os casos de Heloisa Schimitt e
Ricardo Rezende. A primeira, depois que terminou filosofia e ciências das
religiões, foi trabalhar como agente de pastoral na diocese de Conceição do
Araguaia. Depois de muitos anos, retornou para Belo Horizonte onde conseguiu trabalho
junto à prefeitura (ligado à Assistência Social). Com respeito ao Ricardo
Rezende, com base na formação em ciências das religiões (embora também tivesse
formado em filosofia, na mesma UFJF), foi ordenado padre, vindo a atuar em
Conceição do Araguaia, também por muitos anos. Depois retornou ao Rio de
Janeiro, fazendo concurso para a Faculdade de Serviço Social na UFRJ, onde
ainda atua como docente. No caso de Adenilde Petrina, também formada em
filosofia e disciplinas de ciências das religiões, atuou por anos como
funcionária da biblioteca dos padres redentoristas, e depois firmou-se nos trabalhos
do movimento negro no bairro Santa Cândida, atuando também como professora de
História na rede municipal. Com respeito a Antônio José Gabriel, ele formou-se
em filosofia e também ciências das religiões. Seguiu sua formação em teologia,
também na PUC-RJ, doutorando-se ali. Ordenou-se posteriormente, vindo a atuar –
até hoje – na Diocese de Leopoldina. Outro egresso, Paulo Agostinho Nogueira
Baptista, estava ligado à Congregação dos Redentoristas. Desligou-se depois da
Congregação, completando sua formação – mestrado e doutorado – no PPCIR da
UFJF, vindo depois a atuar como docente na Cultura Religiosa e Ciências da
Religião na PUC-MG, onde está até hoje.
Há que recordar que com respeito às Ciências das Religiões
não havia propriamente um diploma, como no caso do curso de Filosofia, mas um
certificado conferido pelo Departamento de Assuntos e Registros Acadêmicos
(DARA). Não era tarefa fácil para o aluno conseguir articular todas as
disciplinas de modo a cumprir a creditação necessária para a conclusão do
curso. Sobretudo no caso dos alunos que faziam duas graduações simultâneas.
Vale recordar que vestibular mesmo para Ciências das Religiões só aconteceu uma
vez, e os alunos acabaram sendo encaminhados para outros cursos ao longo do
processo, já que houve suspensão de novo vestibular[7].
Não tenho dados disponíveis para saber quais alunos conseguiram concluir
totalmente o curso, como no meu caso, completando as 2.200 horas-aula indicadas
na grade curricular. Pode ser que em alguns casos, o cumprimento não tenha
ocorrido. É o caso de se examinar caso por caso, conferindo os alunos que
conseguiram o Certificado de conclusão junto ao DARA.
Após se formar, quais atividades
remuneradas (empregos, concursos, serviços autônomos) você realizou em que a
formação da graduação em CR da UFJF foi um fator para a admissão e/ou sucesso
profissional?
No
meu caso particular, ainda no período que estava fazendo a graduação em
ciências das religiões, fui contratado como professor do colégio Academia de
Comércio (dos padres Verbitas), atuando como docente de Formação Humana e
Cristã. Isto aconteceu entre os anos de 1976 e 1977. Neste trabalho na
Academia, atuaram comigo, como docentes, outros alunos de Ciências das
Religiões, Ricardo Rezende e José Luis Fazzi[8].
Depois de concluída as duas graduações, segui para o mestrado em Teologia na
PUC-RJ, sob a orientação de João Batista Libânio. Ainda em 1978 fui contratado
como professor de Cultura Religiosa na PUC-RJ e teologia, na Universidade Santa
Úrsula. Após o doutorado, continuei o trabalho de docência em teologia nas duas
universidades até 1992, quando então firmei residência em Juiz de Fora, para
atuar na UFJF como professor de Ciência da Religião. O meu concurso para a UFJF
aconteceu no final de 1989. De 1989 a 1992 mantive a docência em Juiz de Fora e
no Rio, só assumindo a dedicação exclusiva na UFJF em 1992.
Como foi a experiência nos empregos, cargos
ou serviços remunerados realizados enquanto formado em CR? Quais foram as
reações a sua atuação específica?
A
experiência foi sempre muito positiva. Já em Juiz de Fora, antes mesmo de me
formar, o trabalho de Formação Humana e Cristã na Academia de Comércio foi
muito exitoso, contando com o grande apoio do então reitor do colégio, pe.
Benito Falquetto. Depois de formado, no trabalho de docência em cultura
religiosa e teologia, no Rio de Janeiro, foi também muito rico, abrindo um
leque fundamental de experiência. Tudo veio desabrochar no trabalho do PPCIR na
UFJF, assumindo a responsabilidade de ajudar a criar os cursos de
especialização, mestrado e doutorado em ciência da religião. Atuei como
coordenador destes cursos desde a sua criação, isto por dez anos seguidos. Não
posso negar que em situações particulares, quando então atuei no Conselho
Universitário da UFJF, podia sentir a presença de preconceitos com relação ao
nosso curso de ciência da religião. O ranço positivista ainda se manteve
presente por algum tempo, até que o programa se firmou na Universidade. Há que
lembrar que o primeiro doutorado criado na UFJF foi o de Ciência da Religião. O
nosso mestrado também foi um dos primeiros. Foi o primeiro programa da
Universidade que alcançou a nota 5 no processo de avaliação da CAPES.
Formou-se em outros cursos? Se sim, pode
relatar quais diferenças observou em relação às suas diferentes titulações e
suas respectivas atuações no mercado de trabalho?
Não,
minha formação foi específica em filosofia, ciências das religiões e teologia.
Atuei sempre nestas áreas. Há que lembrar, porém, que meu contato duradouro com
o Instituto de Estudos da Religião (ISER-RJ), proporcionou uma abertura
inter-disciplinar fundamental na minha vida. A queda pelas ciências sociais, em
particular a antropologia, sempre esteve junto. Tenho publicações específicas
que indicam esta presença na minha formação, como os livros que organizei em
torno do campo religioso brasileiro. Vejo como essencial este tipo de relação.
A meu ver, o docente de ciências da religião não pode ficar restrito a seu
campo. A ampliação do olhar, com o aporte de outras vinculações, torna-se
essencial para criar a formação propícia para o trabalho neste nosso campo tão
plural. Este talvez seja um traço positivo das ciências da religião, que
comporta nos seus próprios quadros esta presença diversificada, tanto no âmbito
docente como discente.
O que mais gostaria de abordar sobre a
atuação no mercado de trabalho para cientistas das religiões do ponto de vista
de quem cursou a primeira graduação em CR do Brasil?
Essa é uma questão que
frequentemente “atormenta” os alunos que estão fazendo a graduação e a
pós-graduação em Ciência da Religião. Talvez seja o fator mais difícil para
eles na hora de ter que decidir em favor deste encaminhamento. Em Juiz de Fora
estamos sempre diante deste embate: o aluno que está fazendo o bacharelado em ciências
humanas, quando precisa fazer sua opção sequencial, em favor ou não da ciência
da religião, se vê diante desta difícil decisão. E o que pesa, sobretudo, é o
horizonte de trabalho. Eu que acompanhei esse processo, verifico que os
primeiros alunos da pós-graduação, que cursaram conosco a especialização e o
mestrado, conseguiram sua inserção no mercado de trabalho, junto às faculdades
particulares. Muitos ainda estão integrados nestas faculdades, atuando em
disciplinas da área de humanas. Com o passar do tempo, esse espaço se esgotou,
e está muito mais complexa a questão da inserção no mercado de trabalho. Alguns
conseguiram aprovação em Institutos Federais de Educação, com êxito, mas outros
não, estando ainda em busca de inserção profissional. É verdade que com o
crescimento dos programas de ciências da religião pelo Brasil abrem-se novos
postos de trabalho, mas com concorrência dura nos processos seletivos. Basta
lembrar o meu caso. No processo seletivo para a minha vaga docente foram mais
de 20 concorrentes para a mesma vaga, e todos com doutorado. Vejo então como
campo de atuação para os egressos em ciências da religião: as faculdades
particulares e públicas, bem como os Institutos Federais de Educação ou ONGs. E
também as inserções nas cadeiras de Ensino Religioso, ou mesmo outros campos
das Humanidades, nas vagas abertas para a docência em âmbito Municipal ou
Estadual. Fora deste campo institucional, em outras áreas de pesquisa
acadêmica, é mais raro ver as inserções, mas não é de todo impossível.
(Entrevista
concedida a Matheus Costa – janeiro de 2018)
[1] Com as seguintes disciplinas: Sociologia I,
Civilização Contemporânea, Português 1, Introdução à Psicologia e Introdução à
Filosofia.
[2] Essa disciplina era sempre ministrada por algum
professor do Departamento de Ciências Sociais. No meu caso, quem lecionou a
disciplina foi a professora Leila do Amaral, que depois se firmou no campo da
Antropologia da Religião n o Brasil, com doutorado sobre Nova Era no Museu
Nacional, sob orientação de Otávio Velho.
[3] Ver a respeito: José Oscar Beozzo. A igreja do Brasil no Concílio Vaticano II.
São Paulo: Paulinas/Educam, 2005, p. 197-198. A presença de Guglielmi em Juiz
de Fora foi motivo também de tensão. Ele tinha sido expulso do Departamento de
Teologia da PUC-RJ, no tempo do cardeal Eugênio Sales, tendo movido processo
contra a Diocese do Rio, tendo vencido a causa. Sua presença em Juiz de Fora
causava certas dificuldades, como lembra o citado artigo de Frederico Pieper,
na página 16. Em sua atuação na UFJF teve um trabalho precioso no Conselho
Universitário em favor do curso, com um empenho particular na inserção de
leigos na atuação docente.
[4] Cuja segunda versão foi publicada pelas Paulinas:
Jaime Snoek. Ensaio de ética sexual
(1985).
[5] Veja a respeito: Frederico Pieper. Ciência da
Religião na UFJF: aspectos históricos e epistemológicos (artigo ainda inédito,
no prelo da Revista Numen), p. 16. Ver ainda sobre o tema: Faustino Teixeira. O
processo de gênese da (s) ciência (s) da religião na UFJF. Numen, v. 15, n. 2, jul-dez 2012, p. 535-548.
[6] Nos dois casos, a atuação se deu no magistério
teológico: eu na PUC-RJ e na Universidade Santa Úrsula (primeiramente na
Cultura Religiosa e depois na Teologia), e irmã Franziska no Instituto de
Teologia de Ilhéus, por 10 anos (1986-1990).
[7] Frederico Pieper. Ciência da Religião na UFJF, p. 9 e
12. Em seu precioso artigo, Frederico assinala que houve dois processos
seletivos (vestibulares). Há que investigar isso. Na minha lembrança, houve
apenas um único vestibular, em 1976.
[8] No caso de José Luis Fazzi, depois que ele se formou
em filosofia e também ciências das religiões (se não me engano), veio a atuar
na área de educação em Coronel Fabriciano e depois em Belo Horizonte.