terça-feira, 20 de março de 2018

Ciência da Religião na UFJF: marcos de uma caminhada



Ciência da Religião na UFJF: marcos de uma caminhada

Faustino Teixeira
(Entrevista)


Você foi um dos primeiros estudantes de graduação de Ciência(s) da(s) Religião(ões) (CR) no Brasil. Pode relatar como conheceu o curso e o que fez você ingressar nele?

De fato, a primeira graduação em ciências da religião no Brasil aconteceu em Juiz de Fora, ainda que com uma outra nomenclatura: ciências das religiões. O Departamento de Ciências das Religiões veio bem antes, sendo criado em junho de 1969. É mesmo bem pioneiro. A graduação em si começou em meados da década de 1970, sendo o primeiro vestibular realizado em 1976. Eu fui, de fato, um dos primeiros alunos do curso, cujas disciplinas já cursava desde 1974, quando entrei para a UFJF, inscrito no curso de Filosofia.

Essa era uma peculiaridade daquele tempo: os alunos podiam fazer dois cursos simultâneos. A filosofia funcionava no período da manhã e as ciências das religiões no período noturno, abrigada nas instalações do Departamento de Serviço Social, no centro da cidade. O projeto era bem interessante, de autoria do grande mestre Jaime Snoek, padre redentorista, que trouxe um esboço do curso da Holanda, com modelo bem próximo da teologia, mas com abertura para outros campos.

Os professores lecionavam também, na sua maioria, no Departamento de Filosofia, e alguns eram ex-padres redentoristas, que viveram a crise do pós-concílio. Lecionavam antes no Seminário Maior dos Redentoristas, localizado no bairro da Floresta, que também acabou fechado no período pós conciliar. Foram então abrigados na UFJF, vindo a lecionar no Departamento de Filosofia. Cito alguns nomes importantes: Jaime Snoek e João Fagundes Hauck, que continuaram como sacerdotes e Vitorino Duarte e  Raimundo Evangelista do Carmo, que deixaram o ministério. A eles depois se somaram outros docentes: Henrique Oswaldo Fraga de Azevedo, Wolfgang Gruen, Domício Pereira Matos, Antônio Pedro Guglielmi, Eduardo Benes de Sales, Walmor Oliveira de Azevedo, Zwinglio Mota Dias e Antônio José Gabriel.

O curso se estruturava em dois módulos, com um ciclo básico inicial[1], seguido das cadeiras específicas. Dentre estas cadeiras: Ética I-II, Antropologia Religiosa, Introdução ao Mundo Bíblico I-II, Sociologia VI (Antropologia da Religião)[2],  Hermenêutica Bíblica I-II-III , Cristologia Bíblica, Escatologia Bíblica, Cristologia Sistemática, Eclesiologia Sistemática, História do Cristianismo I-II-III-IV, Fenomenologia do Cristianismo I-II-III-IV, Estudo Comparado das Religiões I-II, Psicologia da Religião e Filosofia da Religião I-II. Nota-se uma presença forte de cadeiras especificamente teológicas, mas já se percebe uma presença de outras disciplinas envolvendo o campo das religiões: Fenomenologia do Cristianismo, Estudo Comparado das Religiões, Filosofia da Religião, Antropologia da Religião, Psicologia da Religião.

Alguns temas de ponta eram objeto de reflexão no curso como as questões envolvendo religião e sexualidade (nos cursos de Ética ministrados por Jaime Snoek), as religiões comparadas (Henrique Oswaldo) e teologia da libertação (tema tratado na Fenomenologia do Cristianismo IV – em particular o livro de Gustavo Gutiérrez: Teologia da Libertação). Muito procurados eram também os cursos de Introdução ao Mundo Bíblico, ministrados por Wolfgang Gruen. O sistema de créditos favorecia a matrícula de alunos de outros cursos, inclusive de áreas distintas das ciências humanas. Com funcionamento noturno, eram inúmeras as matrículas, sendo as turmas sempre cheias. Cabe também ressaltar o método inovador de Gruen, na abordagem crítica do texto bíblico, um estudo também pioneiro no Brasil. Há que mencionar ainda a presença no curso do professor Antonio Guglielmi, conhecido biblista brasileiro e que foi nomeado perito conciliar no Vaticano II. Teve um papel muito importante nas famosas Conferências da Domus Marie, em Roma, por ocasião do concílio, que se tornaram célebres na dinâmica conciliar e na renovação do clero brasileiro[3].

Já conhecia, por razões familiares, alguns dos docentes do curso, em particular Jaime Snoek. Quando entrei para a filosofia, em 1974, logo manifestei interesse em cursar as disciplinas de ciências das religiões. Foi um encaixe exemplar, embora exigindo um ritmo puxado de estudos, já que as aulas funcionavam nas manhãs e noites. A experiência foi muito rica e novidadeira para mim. O período era também muito favorável, um tempo politicamente difícil – ainda no tempo da ditadura militar – mas provocador. Alguns professores eram bem corajosos e suscitavam uma reflexão bem crítica e aberta. Tínhamos também, nas ciências das religiões, a presença de outros intelectuais importante, mesmo não lecionando diretamente no curso, mas muito presentes, como o pastor luterano Breno Schumann.

Como o meu ingresso foi na Filosofia, ao terminar o curso e também as disciplinas de Ciências das Religiões, isto em 1977, consegui então um certificado da Universidade atestando a minha conclusão do curso.

  
O que mais chamava atenção no curso de CR, positivamente, para você? E o qual foi um ponto negativo?

O que mais me chamava a atenção era a presença de certos docentes, de renome internacional, como Jaime Snoek: um nome de peso na teologia brasileira, com atuação marcante e original em alguns campos da reflexão, como a ética sexual. Vale registrar a sua presença na Revista Internacional de Teologia, Concilium, bem como na Revista Eclesiástica Brasileira  (REB), com artigos corajosos e inovadores. Pude atuar bem perto deste professor, como monitor na sua disciplina de Ética Sexual, ajudando a elaborar a primeira redação de seu conhecido livro sobre o tema[4]. Recordo-me muito de seu curso sobre o livro de Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação, ministrado no segundo semestre de 1975, ano do lançamento do livro  deste pioneiro (Vozes, 1975). Jaime Snoek fez parte da banca de minha dissertação de mestrado em teologia na PUC-RJ, em 1982. Outro docente que exerceu importante influência na minha caminhada foi Wolfgang Gruen, que me ajudou a refletir criticamente sobre a Bíblia e pensar de forma singular a questão da religiosidade, tema que também marcou os passos de sua reflexão, tendo contribuído de forma significativa para os avanços da discussão crítica de um ensino “religioso” não confessional.

Chamo ainda a atenção para outros traços inovadores daquele período em Juiz de Fora, nas ciências das religiões. Temas importantes do estudo comparado das religiões provocavam a reflexão dos alunos, inclusive na temática das religiões afro-brasileira, que era tema dos Estudos Comparados II. Questões da fenomenologia da religião eram apresentadas aos alunos, introduzindo autores essenciais como Mircea Eliade e Rudof Otto. E ainda Paul Tillich, que era tema essencial na filosofia da religião, sendo o seu livro sobre o tema, o manual utilizado no curso, cujo docente era Vitorino Duarte.

Como eram seus colegas em relação ao curso? O procuraram com quais expectativas? Como era o clima de formação da sua turma e de outras que conhecia?

Os alunos que cursavam ciências da religião de forma integral, eram também os mesmos que faziam filosofia. Isto só mudou depois do primeiro e único vestibular realizado para o curso, realizado em 1976, mesmo assim com poucas vagas. Lembro-me de alguns nomes, que estavam juntos nesta caminhada: Antônio José Gabriel – que depois se tornou docente no curso (psicologia da religião), Franziska Carolina Rehbein (missionária serva do Espírito Santo, que depois complementou seus estudos na teologia da PUC-RJ, sob a orientação de Mário França Miranda), Heloisa Schmitt e Ricardo Rezende (que depois atuaram como agentes de pastoral em Conceição do Araguaia), bem como José Luis Fazzi e Adenilde Petrina (que foi também minha colega na filosofia, tornando-se importante líder do movimento negro em Juiz de Fora).  Um pouco depois, temos também Paulo Agostinho (que agora atua como docente na PUC-MG).

      O clima da formação era muito rico, com professores gabaritados, abertos e generosos. Foram tempos de aprendizado e enriquecimento. O clima da ocasião era favorável à consciência crítica e isto foi muito bom. A relação ente docentes e discentes era bem positiva. Registro também os núcleos de estudos surgidos na ocasião, inclusive num estudo sistemático da obra pioneira de Gustavo Gutiérrez sobre a teologia da libertação. Era uma época que floresciam grupos de consciência crítica, como a “Tropa Maldita”, envolvendo discentes de todo o Brasil, sob a orientação do teólogo João Batista Libânio, que acabou tornando-se meu orientador de Mestrado na PUC-RJ.

      Eu e outros dois discentes do curso – Ricardo Rezende e José Luis Fazzi – fomos convidados a lecionar Formação Humana e Cristã no Colégio Cristo Redentor (Academia de Comércio). Na ocasião, o reitor – Benito Falquetto – abriu espaços importantes para uma atuação inovadora no colégio, valorizando sobretudo as atividades extra sala de aula, como teatro (com o método de Augusto Boal), grupos bíblicos (com os textos de Carlos Mesters), análise da conjuntura política etc. Isto foi em torno de 1976 e 1977. Muitos dos alunos tornaram-se personalidades conhecidas em vários campos de atividade.

Como foi a reação da comunidade acadêmica sobre o curso de CR? Como era a relação com estudantes e professores de outros cursos?

A presença das ciências das religiões na cidade de Juiz de Fora teve um impacto muito importante. O traço original do curso acontecendo numa universidade pública causou repercussão. Na comunidade de Juiz de Fora, os efeitos negativos foram menores, pois a cidade – sobretudo os grupos mais críticos de atuação social – tinha uma boa receptividade para a experiência. Como era de se esperar, houve resistências bem duras em segmentos da Universidade, sobretudo na Faculdade de Direito, e em particular um de seus docentes: Almir de Oliveira. Apesar de ser um católico conhecido na cidade, este professor liderou uma campanha viva contra o curso e suas disciplinas, com argumentos bem positivistas. Em texto publicado no jornal da cidade, Diário Mercan til, chegou mesmo a chamar o curso de “excrescência”, argumentando contra a sua presença numa universidade pública: “Nenhuma universidade no Brasil tem essa coisa”. O artigo tinha como título: O curso que não existe (Diário Mercantil, 16/07/1977). Com base no argumento da laicidade brasileira, o professor atacava o curso, sublinhando ainda que era um curso que tinha “vergonha” de mostrar o que realmente era, ou seja, um curso de teologia. Chegava ainda a desqualificar docentes do curso, como Wolfgang Gruen, e a disciplina por ele ministrada.

Outras resistências vieram de lideranças eclesiásticas da cidade, em particular do arcebispo, dom Geraldo Maria de Moraes Penido, para o qual o curso significava um risco para a ortodoxia católica. Questionava também a presença de ex-padres lecionando no curso, como no caso de Antonio Guglielmi. Em documento elaborado pelo arcebispo, e encaminhado a dom Juvenal Roriz (que também se tornou arcebispo na cidade), em 03/01/1978, ele assinala: “No início, encarei com simpatia o curso, mas posteriormente, ao verificar que aquilo estava se transformando num ninho de ex-padres e elementos contestatórios, retirei minha aprovação e tive a iniciativa de comunicar minha posição perante o Ministro da Educação...”[5].

      O caso registrava, assim, uma curiosa aliança entre positivistas e lideranças eclesiásticas na resistência ao curso. Isto não ocorreu sem respostas também vivas da comunidade acadêmica e intelectual. Na ocasião, eu era o representante discente do colegiado do curso, e escrevi um artigo no Diário Mercantil em sua defesa. Dizia: “Quero manifestar minha preocupação diante da possibilidade da eliminação do curso de Ciência das Religiões da Universidade Federal de Juiz de Fora. É lamentável que uma universidade federal não tenha autonomia para respeitar e compreender a dimensão e importância de um curso que é altamente valorizado na Europa” (Faustino Teixeira, Ciência das Religiões, Diário Mercantil - 20/07/1977). Tinha antes escrito um outro artigo no mesmo jornal, em 13/07/1977, defendendo o enfoque específico do curso, sobre a religiosidade, de maneira científica e não confessional, algo bem diferente do ensino religioso.

Outras vozes da comunidade acadêmica atuaram em defesa do curso, mesmo por parte do DCE da Universidade, como Inácio Delgado. O campo da defesa ganhou expressão em jornais de circulação mais ampla, como o Jornal do Brasil, num artigo importante do professor de filosofia, Hilton Japiassu, em 15/07/1977. No artigo falava da ousadia da UFJF em aceitar o curso, superando o “ranço positivista” e os “preconceitos obscurantistas” presentes nas Universidades públicas até então. Fala ainda do traço “pioneiro” do curso no Brasil, de “grande envergadura de inteligência”.

      Apesar de tudo, as incursões feitas pelos opositores junto ao Conselho Federal de Educação surtiram o efeito desejado, e as novas inscrições para o curso, via vestibular, foram eliminadas. Não houve mais vestibular, e o curso conseguiu se manter vivo por iniciativa louvada das gestões feitas por Jaime Snoek. As disciplinas continuaram sendo oferecidas no sistema de crédito, mas sem um curso oficializado. Novos encaminhamentos de reformulação do curso foram realizados posteriormente, com uma reforma curricular iniciada em 1980.

      O Departamento de Ciência das Religiões passou por grandes dificuldades, no início da década de 1980, com uma pequena presença de corpo docente. Só mais tarde, por incentivo de Antônio Guglielmi, então chefe de Departamento, novos professores ingressaram no curso, como no caso de Walmor Oliveira de Azevedo e Zwinglio Mota Dias (que tinha saído do curso, retornando depois). E no final da década de 1980 e início de 1990, a minha entrada no curso, bem como de Pedro Ribeiro de Oliveira e Luiz Bernado Leite de Araújo. Guglielmi estava decidido a fortalecer a presença de professores leigos no curso, com encaminhamentos diversificados para o ensino da ciência da religião (denominação que vigorou por iniciativa da ação do próprio Guglielmi). E aí nasceu a especialização em Ciência da Religião, em 1991, seguida pelo mestrado, em 1993.
  
Qual era a postura dos professores com vocês em relação à formação em CR? Que tipo de comportamento acadêmico esperavam dos futuros formados em CR?

Com o início da nova dinâmica, com a criação da especialização e o mestrado em ciência da religião, o exercício de uma formação mais aberta, plural e diversificada veio então a ocorrer. Firma-se então uma perspectiva nova, com clareza nas novas áreas de formação: diálogo inter-religioso, ciências sociais da religião e filosofia da religião. Os alunos que foram ingressando no programa puderam escolher livremente sua área de atuação, em coerência com sua formação pregressa. A nossa intenção era a de que os alunos que ingressavam no programa não rompessem com sua área de inserção acadêmica original, mas que pudessem aprofundar o campo de seus estudos, agora com o enriquecimento da visão sobre a questão da religião. Um programa com professores de diversas áreas e também alunos de diversas áreas. Esse foi e tem sido um traço interessante de nosso programa.

E sobre trabalho, qual era o discurso dos professores sobre o que fariam enquanto profissionais formados em CR?

Esse é um tema ainda em debate: a questão da profissionalização dos egressos de ciência da religião. Muitos manifestam preocupação a respeito, sobretudo tendo em vista os concursos realizados para ingresso nas Universidades ou Institutos de Ensino. Há uma preocupação discente e também docente de favorecer o reconhecimento da titulação alcançada. Como também cresceram enormemente os cursos de ciências da religião no Brasil, por todo canto, abrem-se novos caminhos de ingresso aos alunos, com concursos realizados com regularidade.

Existia alguma conexão entre CR e Ensino Religioso no discurso da comunidade envolvida com o curso? Se sim, qual e como era?

Nos primeiros anos do curso de ciências das religiões, sobretudo com a presença e influxo de Wolfgang Gruen, a preocupação em distinguir ciências das religiões e ensino religioso era bem nítida. A ênfase recaía sobre o estudo objetivo das religiões,  bem como sobre a religiosidade, ou seja, a dimensão de abertura do ser humano ao horizonte mais amplo da transcendência ou do Mistério. Não se excluía a hipótese de formar docentes visando sua presença no ensino religioso, mas a perspectiva era de abertura ao campo plural, não se fixando, de forma alguma, numa perspectiva confessional. Essa sensibilidade foi sempre marcante ao longo dos anos. Foram feitas iniciativas no âmbito de aperfeiçoamento de docentes que atuam no ensino religioso na região, mas sempre num horizonte de ampliação do olhar.

Ainda sobre atuação profissional, era restrita a educação, ou haviam disciplinas ou formações extracurriculares (como palestras) que já apontavam outras formas de trabalho para formados em CR? Chegou a trabalhar ou conhecer colegas do curso de CR que trabalharam em outras áreas fora da educação?

A meu ver, todo o currículo de ciências da religião, em Juiz de Fora, estava fundamentalmente direcionado para a teologia. Não conheço casos, pelo menos daqueles alunos que se formaram em Juiz de Fora, que atuaram fora da eduação.  Isso explica o fato de que vários dos egressos das primeiras turmas acabaram dedicando-se ao estudo da teologia, ou então atuando diretamente na pastoral. Posso citar exemplos: eu e Franziska Carolina fizemos nossa complementação teológica na PUC do Rio, dedicando-nos em seguida ao trabalho teológico. A PUC-RJ exigia, na ocasião, uma carta do bispo local – que era dom Geraldo – para o ingresso no Mestrado. Franziska foi primeiro, tendo sido acolhida pelo professor Mário de França Miranda (SJ). O seu doutorado teve como tema: Salvação no cristianismo e nos cultos afro-brasileiros (publicado depois em livro nas edições Loyola, em 1985). No meu caso, assim que terminei as duas graduações (filosofia e ciências das religiões), em 1977, tinha a intenção de fazer o mestrado em sociologia da religião na USP. Isto não foi possível em razão da morte do pretendido orientador, Duglas Teixeira Montero. Por incentivo de João Batista Libânio, acabei decidindo pelo mestrado em teologia na PUC-RJ, mas precisava da carta de indicação do bispo de Juiz de Fora. Não tendo conseguido esse documento, por rejeição do arcebispo, o diretor da teologia na ocasião, pe. Álvaro Barreiro, aceitou cartas que consegui junto a sacerdotes da pastoral de Juiz de Fora, atestando minha atuação na cidade. Pude assim me encaminhar também na teologia, fazendo o mestrado na PUC-RJ e depois o doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Ou seja, dois casos de egressos das ciências das religiões que se encaminharam para a teologia[6]. Com respeito a outros egressos, posso citar os casos de Heloisa Schimitt e Ricardo Rezende. A primeira, depois que terminou filosofia e ciências das religiões, foi trabalhar como agente de pastoral na diocese de Conceição do Araguaia. Depois de muitos anos, retornou para Belo Horizonte onde conseguiu trabalho junto à prefeitura (ligado à Assistência Social). Com respeito ao Ricardo Rezende, com base na formação em ciências das religiões (embora também tivesse formado em filosofia, na mesma UFJF), foi ordenado padre, vindo a atuar em Conceição do Araguaia, também por muitos anos. Depois retornou ao Rio de Janeiro, fazendo concurso para a Faculdade de Serviço Social na UFRJ, onde ainda atua como docente. No caso de Adenilde Petrina, também formada em filosofia e disciplinas de ciências das religiões, atuou por anos como funcionária da biblioteca dos padres redentoristas, e depois firmou-se nos trabalhos do movimento negro no bairro Santa Cândida, atuando também como professora de História na rede municipal. Com respeito a Antônio José Gabriel, ele formou-se em filosofia e também ciências das religiões. Seguiu sua formação em teologia, também na PUC-RJ, doutorando-se ali. Ordenou-se posteriormente, vindo a atuar – até hoje – na Diocese de Leopoldina. Outro egresso, Paulo Agostinho Nogueira Baptista, estava ligado à Congregação dos Redentoristas. Desligou-se depois da Congregação, completando sua formação – mestrado e doutorado – no PPCIR da UFJF, vindo depois a atuar como docente na Cultura Religiosa e Ciências da Religião na PUC-MG, onde está até hoje.

Há que recordar que com respeito às Ciências das Religiões não havia propriamente um diploma, como no caso do curso de Filosofia, mas um certificado conferido pelo Departamento de Assuntos e Registros Acadêmicos (DARA). Não era tarefa fácil para o aluno conseguir articular todas as disciplinas de modo a cumprir a creditação necessária para a conclusão do curso. Sobretudo no caso dos alunos que faziam duas graduações simultâneas. Vale recordar que vestibular mesmo para Ciências das Religiões só aconteceu uma vez, e os alunos acabaram sendo encaminhados para outros cursos ao longo do processo, já que houve suspensão de novo vestibular[7]. Não tenho dados disponíveis para saber quais alunos conseguiram concluir totalmente o curso, como no meu caso, completando as 2.200 horas-aula indicadas na grade curricular. Pode ser que em alguns casos, o cumprimento não tenha ocorrido. É o caso de se examinar caso por caso, conferindo os alunos que conseguiram o Certificado de conclusão junto ao DARA.

Após se formar, quais atividades remuneradas (empregos, concursos, serviços autônomos) você realizou em que a formação da graduação em CR da UFJF foi um fator para a admissão e/ou sucesso profissional?

No meu caso particular, ainda no período que estava fazendo a graduação em ciências das religiões, fui contratado como professor do colégio Academia de Comércio (dos padres Verbitas), atuando como docente de Formação Humana e Cristã. Isto aconteceu entre os anos de 1976 e 1977. Neste trabalho na Academia, atuaram comigo, como docentes, outros alunos de Ciências das Religiões, Ricardo Rezende e José Luis Fazzi[8]. Depois de concluída as duas graduações, segui para o mestrado em Teologia na PUC-RJ, sob a orientação de João Batista Libânio. Ainda em 1978 fui contratado como professor de Cultura Religiosa na PUC-RJ e teologia, na Universidade Santa Úrsula. Após o doutorado, continuei o trabalho de docência em teologia nas duas universidades até 1992, quando então firmei residência em Juiz de Fora, para atuar na UFJF como professor de Ciência da Religião. O meu concurso para a UFJF aconteceu no final de 1989. De 1989 a 1992 mantive a docência em Juiz de Fora e no Rio, só assumindo a dedicação exclusiva na UFJF em 1992.

Como foi a experiência nos empregos, cargos ou serviços remunerados realizados enquanto formado em CR? Quais foram as reações a sua atuação específica?

A experiência foi sempre muito positiva. Já em Juiz de Fora, antes mesmo de me formar, o trabalho de Formação Humana e Cristã na Academia de Comércio foi muito exitoso, contando com o grande apoio do então reitor do colégio, pe. Benito Falquetto. Depois de formado, no trabalho de docência em cultura religiosa e teologia, no Rio de Janeiro, foi também muito rico, abrindo um leque fundamental de experiência. Tudo veio desabrochar no trabalho do PPCIR na UFJF, assumindo a responsabilidade de ajudar a criar os cursos de especialização, mestrado e doutorado em ciência da religião. Atuei como coordenador destes cursos desde a sua criação, isto por dez anos seguidos. Não posso negar que em situações particulares, quando então atuei no Conselho Universitário da UFJF, podia sentir a presença de preconceitos com relação ao nosso curso de ciência da religião. O ranço positivista ainda se manteve presente por algum tempo, até que o programa se firmou na Universidade. Há que lembrar que o primeiro doutorado criado na UFJF foi o de Ciência da Religião. O nosso mestrado também foi um dos primeiros. Foi o primeiro programa da Universidade que alcançou a nota 5 no processo de avaliação da CAPES.

Formou-se em outros cursos? Se sim, pode relatar quais diferenças observou em relação às suas diferentes titulações e suas respectivas atuações no mercado de trabalho?

Não, minha formação foi específica em filosofia, ciências das religiões e teologia. Atuei sempre nestas áreas. Há que lembrar, porém, que meu contato duradouro com o Instituto de Estudos da Religião (ISER-RJ), proporcionou uma abertura inter-disciplinar fundamental na minha vida. A queda pelas ciências sociais, em particular a antropologia, sempre esteve junto. Tenho publicações específicas que indicam esta presença na minha formação, como os livros que organizei em torno do campo religioso brasileiro. Vejo como essencial este tipo de relação. A meu ver, o docente de ciências da religião não pode ficar restrito a seu campo. A ampliação do olhar, com o aporte de outras vinculações, torna-se essencial para criar a formação propícia para o trabalho neste nosso campo tão plural. Este talvez seja um traço positivo das ciências da religião, que comporta nos seus próprios quadros esta presença diversificada, tanto no âmbito docente como discente.

O que mais gostaria de abordar sobre a atuação no mercado de trabalho para cientistas das religiões do ponto de vista de quem cursou a primeira graduação em CR do Brasil?

            Essa é uma questão que frequentemente “atormenta” os alunos que estão fazendo a graduação e a pós-graduação em Ciência da Religião. Talvez seja o fator mais difícil para eles na hora de ter que decidir em favor deste encaminhamento. Em Juiz de Fora estamos sempre diante deste embate: o aluno que está fazendo o bacharelado em ciências humanas, quando precisa fazer sua opção sequencial, em favor ou não da ciência da religião, se vê diante desta difícil decisão. E o que pesa, sobretudo, é o horizonte de trabalho. Eu que acompanhei esse processo, verifico que os primeiros alunos da pós-graduação, que cursaram conosco a especialização e o mestrado, conseguiram sua inserção no mercado de trabalho, junto às faculdades particulares. Muitos ainda estão integrados nestas faculdades, atuando em disciplinas da área de humanas. Com o passar do tempo, esse espaço se esgotou, e está muito mais complexa a questão da inserção no mercado de trabalho. Alguns conseguiram aprovação em Institutos Federais de Educação, com êxito, mas outros não, estando ainda em busca de inserção profissional. É verdade que com o crescimento dos programas de ciências da religião pelo Brasil abrem-se novos postos de trabalho, mas com concorrência dura nos processos seletivos. Basta lembrar o meu caso. No processo seletivo para a minha vaga docente foram mais de 20 concorrentes para a mesma vaga, e todos com doutorado. Vejo então como campo de atuação para os egressos em ciências da religião: as faculdades particulares e públicas, bem como os Institutos Federais de Educação ou ONGs. E também as inserções nas cadeiras de Ensino Religioso, ou mesmo outros campos das Humanidades, nas vagas abertas para a docência em âmbito Municipal ou Estadual. Fora deste campo institucional, em outras áreas de pesquisa acadêmica, é mais raro ver as inserções, mas não é de todo impossível.

(Entrevista concedida a Matheus Costa – janeiro de 2018)




[1] Com as seguintes disciplinas: Sociologia I, Civilização Contemporânea, Português 1, Introdução à Psicologia e Introdução à Filosofia.
[2] Essa disciplina era sempre ministrada por algum professor do Departamento de Ciências Sociais. No meu caso, quem lecionou a disciplina foi a professora Leila do Amaral, que depois se firmou no campo da Antropologia da Religião n o Brasil, com doutorado sobre Nova Era no Museu Nacional, sob orientação de Otávio Velho.
[3] Ver a respeito: José Oscar Beozzo. A igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas/Educam, 2005, p. 197-198. A presença de Guglielmi em Juiz de Fora foi motivo também de tensão. Ele tinha sido expulso do Departamento de Teologia da PUC-RJ, no tempo do cardeal Eugênio Sales, tendo movido processo contra a Diocese do Rio, tendo vencido a causa. Sua presença em Juiz de Fora causava certas dificuldades, como lembra o citado artigo de Frederico Pieper, na página 16. Em sua atuação na UFJF teve um trabalho precioso no Conselho Universitário em favor do curso, com um empenho particular na inserção de leigos na atuação docente.
[4] Cuja segunda versão foi publicada pelas Paulinas: Jaime Snoek. Ensaio de ética sexual (1985).
[5] Veja a respeito: Frederico Pieper. Ciência da Religião na UFJF: aspectos históricos e epistemológicos (artigo ainda inédito, no prelo da Revista Numen), p. 16. Ver ainda sobre o tema: Faustino Teixeira. O processo de gênese da (s) ciência (s) da religião na UFJF. Numen, v. 15, n. 2, jul-dez 2012, p. 535-548.
[6] Nos dois casos, a atuação se deu no magistério teológico: eu na PUC-RJ e na Universidade Santa Úrsula (primeiramente na Cultura Religiosa e depois na Teologia), e irmã Franziska no Instituto de Teologia de Ilhéus, por 10 anos (1986-1990).
[7] Frederico Pieper. Ciência da Religião na UFJF, p. 9 e 12. Em seu precioso artigo, Frederico assinala que houve dois processos seletivos (vestibulares). Há que investigar isso. Na minha lembrança, houve apenas um único vestibular, em 1976.
[8] No caso de José Luis Fazzi, depois que ele se formou em filosofia e também ciências das religiões (se não me engano), veio a atuar na área de educação em Coronel Fabriciano e depois em Belo Horizonte.

segunda-feira, 19 de março de 2018

A singularidade do ser cristão

Faustino Teixeira


No sábado, 17/03/2018, conversava longamente com meu irmão, Pulika, versado na prática inter-religiosa. E ele me indagou sobre o traço mais singular que caracterizaria o cristianismo. Sua questão era saber os motivos peculiares que garantiriam a beleza do cristianismo. Minha resposta veio imediata: o amor aos outros. Mencionava a clássica passagem do evangelho de Marcos, com a resposta de Jesus a um escriba: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,31). Segundo a narrativa de Marcos, para Jesus não poderia haver mandamento maior, junto com o amor ao Mistério Maior. Na verdade, como disse Karl Rahner numa de suas obras clássicas sobre o tema, “só quem ama o próximo pode saber quem é realmente Deus”. Pulika rebateu meu argumento dizendo que esta convocação não era assim específica do cristianismo, ocorrendo também de forma viva em outras tradições religiosas. E fomos juntos levantando novos argumentos para buscar a especificidade da dinâmica cristão.

Durante a leitura litúrgica do quinto domingo da quaresma, ontem, fui novamente provocada a buscar uma resposta à indagação de meu irmão. Em passagem do evangelho de João, um grupo de gregos lança uma interrogação, que também é a nossa: “Senhor, queremos ver Jesus” (Jo 12, 21). Sim, ver o que Jesus traz de novidade e que faz brilhar os olhos dos cristãos e estimulá-los para seguir em missão. Como pontuou de forma linda o documento Diálogo e Anúncio, toda missão centra-se nesse “centro do mistério do amor”. O desejo de compartilhar com os outros a alegria de um encontro funda-se nesse mesmo amor (DA 83).

Voltamos aqui à indagação lançada por José Antonio Pagola no início de seu livro sobre Jesus (Jesus, aproximação histórica): “Quem foi Jesus? Que segredo se esconde neste galileu fascinante, nascido há dois mil anos numa aldeia insignificante do Império romano e executado como um malfeitor perto de uma antiga pedreira, nos arredores de Jerusalém, quando beirava os 30 anos?” Pagola indica que Jesus foi o que de melhor produziu a humanidade, irradiando um admirável potencial de luz e esperança. E mais, “é difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial. Sua vida converte-se num chamado a viver a existência a partir de sua raiz última, que é um Deus que só quer para seus filhos e filhas uma vida mais digna e feliz”.

Tudo isto me sugere buscar novos argumentos para sinalizar a singularidade do cristianismo, a partir do caminho de Jesus. Lanço algumas hipóteses:

(a)   A convocação ao Amor Solidário: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,35-36),

(b)  A centralidade da Misericórdia: “Quando o pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço cobrindo-o de beijos” (Lc 15,20)

(c)   O toque essencial da alegria: “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo” (Lc 2,10)

(d)  O amor incondicional, também aos inimigos: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam” (Lc 6,27-28)

(e)   A abertura gratuita ao outro. E aqui sublinho sua particular atenção às mulheres. Ele as acolhia todas, sem distinção alguma. Numa sociedade fortemente patriarcal, ela as tornava visíveis. São protagonistas em suas parábolas: “Jesus lhe diz: ´Dá-me de beber!” (Jo 4,7)

(f)    O radical respeito à diversidade: “Em verdade vos digo que, em Israel, não achei ninguém que tivesse tal fé. Mas eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8, 11)

(g)   Um amor gratuito, que não busca recompensa: “Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros (...). Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam” (Mt 6, 26.28)

(h)  A convocação à humildade e ao despojamento: “Se queres se perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me” (Mt 19, 21); “Todo o que exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18, 14)

(i)    O exercício da comunhão: “Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo” (Mt 20,27)

(j)    Disponibilidade ao Mistério sempre maior: “Vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis ao Pai (...). Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4, 21-23).



Essas são algumas pistas que fui buscando resgatar no poço precioso do cristianismo, a partir dos gestos e práticas de Jesus. São os traços que destacam a fragrância singular da tradição cristã e que faz brotar essa alegria única no coração. Interessante constatar essa vitalidade evangélica na prática do papa Francisco, que escolheu justamente centrar sua atuação na simplicidade dos gestos de Jesus. Quando ele esteve no Brasil, em julho de 2013, sua fala no santuário de Aparecida resume bem o que também acredito, quando falou de três simples posturas que devem marcar o cristão: conservar a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria.