A
Paz em construção
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
A Segunda Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano, ocorrida em agosto de 1968, instaura um marco
fundamental na caminhada da Igreja Latino-Americana. O período que cobre os
anos de 1965 a 1968 foi decisivo para a experiência do movimento popular na
América Latina. Foi o tempo onde se gestou as Comunidades Eclesiais de Base,
bem como se firmou as raízes da teologia da libertação. Como mostrou com
pertinência Gustavo Gutiérrez,
A teologia da libertação, que surgiu pouco
antes de Medellín, tem suas raízes nesse período. Sem a vida das comunidades
cristãs nessa época não se pode explicar o que aconteceu na Conferência
Episcopal de Medellín: nela se expressaram as experiências da inserção desses cristãos
no processo de libertação (GUTIÉRREZ, 1981, p. 291)
Na
intenção da Conferência estava a aplicação das intuições do Concílio Vaticano
II (1962-1965) às condições específicas do continente latino-americano. Na
prática, o vigor da realidade continental e o compromisso dos cristãos no
processo de libertação proporcionaram uma maior amplitude à temática proposta.
Em verdade, novas pistas de ação e reflexão foram lançadas, sempre relacionadas
à perspectiva dos pobres, o que conferiu a Medellín o seu caráter e
originalidade.
Embora
o tema dos pobres tenha sido aventado em momentos do Vaticano II, sobretudo em
razão da presença e atuação explícita do cardeal Lercaro, arcebispo de Bolonha,
o terreno não estava ainda preparado para a radicalidade deste argumento. O
Concílio, porém, lançou pistas importantes neste sentido, criando um espaço
propício para as experiências e reflexões que se seguiram na linha da Igreja
dos pobres. A Conferência de Medellín foi uma destas expressões mais vivas de
realização (GUTIÉRREZ, 1985, p. 243-246; TEIXEIRA, 1988, p. 290). É quando se
firma na pastoral latino-americana a opção preferencial pelos mais pobres, com
inspiração viva nos textos da Conferência (CELAM, 1969, p. 141).
Um
dos eixos centrais no Documento relaciona-se ao tema da paz. Um tópico que se
insere no campo temático da Promoção Humana, junto com o desafio da Justiça.
Não era tarefa fácil pensar a questão da paz no início da década de 1960. As
resistências ao tema eram muitas. No prefácio do livro de Thomas Merton, sobre a paz na era pós-cristã, Jim Forest
reconhece que a expressão “paz” causava suspeição naquela ocasião. O livro que era para ser
publicado em 1962 acabou sendo proibido pelo abade superior dos trapistas, Dom
Gabriel Sortais, tendo em vista as resistências que a palavra encontrava também
no campo político. Aqueles que a utilizavam eram logo identificados como
“vermelhos” ou “simpatizantes” (MERTON, 2007, p. 8).
A
Conferência de Medellin é expressão de uma nova presença da Igreja na América
Latina, pontuada pela coragem profética de reagir contra a situação de miséria,
injustiça e alienação que marcavam o continente naquela ocasião. Os bispos
reconheciam a gravidade do momento, e percebiam que o projeto de paz não podia
ser firmado fora do exercício da justiça. A situação era grave, sendo
identificada como “violência institucionalizada” (CELAM, 1969, p. 55).
Interpretando tal realidade à luz do evangelho, o diagnóstico era preciso.
Tratava-se de uma “situação de pecado” (CELAM, 1969, p. 50). O olhar atento
diante da conjuntura vislumbrava desacertos em vários âmbitos: as diversas
formas de marginalização; as desigualdades excessivas; as frustrações
crescentes; as formas de opressão e exercício de poder dos setores dominantes. Mas
captava também os sinais de resistência crescente, com a tomada de consciência
dos segmentos oprimidos.
Toda
essa dinâmica nefasta vinha alimentada por tendões internacionais, acirrando um
problemático neocolonialismo. Fala-se claramente em situação de “dependência”,
com um peso econômico substancial: a distorção crescente do comércio
internacional; a fuga dos capitais econômicos e humanos; a evasão de impostos e
fuga de lucros e dividendos e o endividamento progressivo. O documento reflete
uma nítida mudança de ocular, com o reconhecimento das causas mais profundas
que alimentam a triste realidade continental: “o subdesenvolvimento aparece
cada vez mais claramente como fato global e, antes de mais nada, como a
consequência de uma dependência econômica, política e cultural de centros de
poder que estão fora da América Latina” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 46).
A
seção sobre a paz vem construída com base nesse enfoque da situação
latino-americana. Após o olhar sobre o contexto social e econômico, vem a
reflexão doutrinal, também pontuada pela ousadia e sensibilidade profética. O
lema é bem claro: “a paz é, antes de tudo, obra da justiça” (CELAM, 1969, p. 53).
Ela não traduz “a simples ausência de violência ou derramamento de sangue”, mas
é um exercício artesanal, que envolve um “trabalho permanente” voltado para o
“desenvolvimento integral do homem” (CELAM, 1969, p. 54) . A paz não é algo que
já se encontra dado, ou que se encontra pelo caminho, mas uma dinâmica que se
constrói a cada dia. E o cristão é convocado a ser um “artesão da paz”. Como um
fruto que se desdobra do amor, a paz é expressão viva de uma “real
fraternidade” entre todos: “o amor é a alma da justiça. O cristão que trabalha
pela justiça social deve sempre cultivar a paz e o amor em seu coração” (CELAM,
1969, p. 54).
Num
toque teológico de alta profundidade, o
documento sinaliza que o fundamento último da paz interior e da paz social está
na “paz com Deus” (CELAM, 1969, p. 54). Teresa
de Ávila tinha captado isto de forma tão singela na sua reflexão espiritual, ao
tratar das quintas moradas. Reconhecia que a forma mais sublime de verificar a
unidade do amor a Deus e o amor ao próximo era a caridade fraterna. O
compromisso efetivo de amor ao próximo selava a presença do amor a Deus. A
santa de Ávila indicava assim um “outro modo de união” possível, de alcance do
favor de Deus mediante a prática do amor. Reconhecia, porém, igualmente que o
amor ao próximo nunca poderia desabrochar perfeitamente a não ser que brotasse
da “raiz do amor de Deus” (V M, 3,9). É o que também lembra o Documento de
Medellin ao assinalar a centralidade da “paz com Deus”. É dela que brotam os
frutos mais novidadeiros da harmonia interior e do essencial equilíbrio para a
atuação firme no tempo. Uma paz que brota da profundidade, como indicou
Leonardo Boff:
Dessa paz espiritual a
humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz
cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as
direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa
vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de
compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do
mundo. Ela alimente o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido,
de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado.
Onde
não existe a paz social e predominam as desigualdades sociais, políticas,
econômicas e culturais, o que ocorre é um “rechaço do dom da paz do Senhor, e
ainda mais, um rechaço do próprio Senhor” (CELAM, 1969, p. 54-55). Essa pista
aberta por Medellín veio acolhida e abraçada pela teologia da libertação. Toda
situação de injustiça revela, em verdade, uma situação de pecado, envolvendo
uma precisa responsabilidade humana. Trata-se, como indica Gustavo Gutiérrez,
“do pecado como fato social, histórico, ausência de fraternidade, de amor nas
relações entre os homens, ruptura da amizade com Deus e com os homens e, em
consequência, cisão interior, pessoal” (GUTIÉRREZ, 1975, p. 153).
Se
há um “rechaço do próprio Senhor” numa realidade carente de “paz social”, o
Deus que se visibiliza é, na verdade, um Deus
inversus, como mostrou Leonardo Boff. Um Deus que se presencializa por uma
dupla ausência. De um lado, ausência em razão da injustiça estrutural vigente,
que oculta a visibilização da justiça, da solidariedade e do amor. De outro, a
“ausência de Deus concreto, vivo e verdadeiro naqueles que usam em seus lábios
o nome de Deus e o veneram em seus templos”. O Deus que vem venerado e
proclamado é “antes um ídolo do que o Deus vivo que interpela” (BOFF, 1974, p.
38-39).
Diante
de tal realidade que clama aos céus, os bispos reunidos em Medellin assumem a
tarefa profética de contundente denúncia. Identificam como grave a situação,
exigindo “transformações globais, audazes, urgentes e profundamente
renovadoras” (CELAM, 1969, p. 55). Não é para eles motivo de estranheza o fato
da “tentação da violência”, como caminho de reação ao traço da opressão
vigente: “Não se há de abusar da paciência de um povo que suporta durante anos
uma condição que dificilmente aceitaria quem tem uma maior consciência dos
direitos humanos” (CELAM, 1969, p. 55). Com base na encíclica Populorum progressio (1967), de Paulo
VI, os bispos não descartam a legitimidade da insurreição revolucionária, que
se legitima no caso de ´tirania evidente e prolongada`, quando os direitos
fundamentais da pessoa são gravemente afetados, com prejuízo ao bem comum
(CELAM, 1969, p. 56).
Nas
conclusões pastorais, ao final do documento, os bispos assumem
responsabilidades bem concretas: despertar em todos a consciência da justiça na
linha de uma efetiva solidariedade; defender o direito dos pobres; denunciar
com vigor os abusos e injustiças e fazer valer na pregação, catequese e
liturgia “a dimensão social e comunitária do cristianismo formando homens
comprometidos na construção de um mundo de paz” (CELAM, 1969, p. 57).
O
compromisso evangélico em favor da paz e o desafio de compromisso com os pobres
ganham vitalidade nos anos seguintes, sendo confirmados na III Conferência
Episcopal Latino-Americana, realizada em Puebla em janeiro e fevereiro de 1979.
Fala-se ali, com vigor, em “edificar a paz na justiça” (CELAM, 1979, p. 285). Talvez
tenha sido esse o grande legado da Igreja Latino-Americana, com seu testemunho
vigoroso em favor da libertação, da busca da paz e do compromisso efetivo em
favor dos mais pobres. Como asseverou com acerto o teólogo italiano, Ernesto
Balducci, foi o momento do “retorno” das caravelas, agora partindo das Índias
ocidentais, com os “novos anunciadores do Evangelho” (BALDUCCI, 1985, p. 22).
Essa
presença profética da Igreja Latino-Americana ganhou repercussão importante em
âmbito mais amplo, com irradiações singulares em documentos do magistério.
Pode-se registrar o rico documento do Sínodo dos Bispos sobre a justiça no
mundo (1971). Assume-se com clareza a consciência de que a situação do mundo
moderno vem pontuada pelo “grande pecado da injustiça” (SÍNODO, 1972, p. 11).
Como principal novidade, a acolhida da ação em favor da justiça e da
participação na transformação do mundo como dimensões constitutivas da missão
da Igreja (SÍNODO, 1972, p. 4). Ou seja, a luta pela justiça vem percebida como
dimensão essencial da evangelização. Infelizmente, duas décadas depois, a
conjuntura eclesiástica é outra, com nítidas mudanças na compreensão de
evangelização. Como exemplo, uma passagem precisa do Sínodo especial para a
Europa, em 1992, com a retomada de uma dinâmica evangelizadora mais centrada no
anúncio explícito. Como argumentaram os bispos nesse Sínodo, “para a nova
evangelização, portanto, não é suficiente prodigalizar-se para difundir os
´valores evangélicos` como a justiça e a paz. Só se a pessoa de Jesus Cristo é
anunciada é que a evangelização se pode dizer autenticamente cristã” (SÍNODO,
1992, p. 14).
O
eixo de referência para a evangelização na América Latina, nas trilhas de
Medellín e Puebla, foi o compromisso com a causa da justiça e do trabalho em favor
da paz. Uma perspectiva que veio partilhada por outros episcopados, como o da
Ásia. A proclamação evangélica vem marcada sobretudo pelo “diálogo e pelos
atos”. Como sublinharam os bispos da Federação das Conferências Episcopais da
Ásia, “proclamar a Cristo significa antes de tudo viver como ele, no meio dos
próximos e vizinhos”, tendo como meta o reino de Deus (FABC, 2000, p. 42). O
papa Francisco retoma esse itinerário de Medellín, centrando sua atenção na
escuta do clamor dos pobres e no exercício evangélico da misericórdia. O
desafio que ele lança para a Igreja é o de “alongar mais o olhar e abrir os
ouvidos ao clamor dos outros povos” (FRANCISCO, 2013, p. 113). O tema da paz
volta a ganhar centralidade, e ela vem entendida como um processo “artesanal”,
envolvida no processo amplo e complexo da abertura ao outro (FRANCISCO, 2013,
p. 135). O jeito de ser da Igreja, seu estilo mais singelo, não é de empenho em
“vencer a guerra”, mas de esforço em “vencer a paz”.
Nessa
abordagem do tema da paz o nome referencial é o de Mahatma Gandhi, que foi
sempre uma fonte inspiradora para todos os “artesãos” que se comprometem com
essa nobre causa. A paz permanece sendo um desafio essencial. Como ele bem
assinalou, “não existe um caminho para a Paz, a Paz é o caminho”.
Referências
Bibliográficas:
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(Documento de Medellín).
CONSELHO
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Vozes, 1979.
FABC.
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TEIXEIRA,
Faustino. A gênese das CEBs no Brasil.
São Paulo: Paulinas, 1988.
TERESA
DE JESUS. Castelo interior ou moradas. São Paulo: Paulus, 1981.
(Publicado
em: GODOY, Manoel & AQUINO JÚNIOR, Francisco de (Orgs). 50 anos de Medellín. Revisitando textos,
retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017, p. 58-65)