Peter Berger e o pluralismo religioso
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Introdução
O sociólogo americano, Peter L. Berger (1929-2017), ficou
conhecido por seu singular trabalho na sociologia do conhecimento, em
particular na reflexão sobre a construção social da realidade. Mas o tema da
religião o acompanhou desde seus primeiros ensaios, sendo um dos autores
clássicos que se ocuparam do tema da secularização no mundo moderno, ou seja,
da retração do sobrenatural para a esfera da consciência e o progressivo
declínio da religião na esfera pública. A secularização, como mostrou Berger,
traduz “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à
dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 1985, p. 119).
Essa foi uma visão que marcou a primeira fase de sua
reflexão na sociologia da religião, quando sua ênfase recaia sobre a chamada
teoria da secularização. Em razão de constatações empíricas, foi aos poucos se
dando conta da fragilidade de tal posicionamento. Um novo discernimento se deu
por volta de 1999, depois de 25 anos ,
como ele mesmo assinala, quando então se dá conta da insustentabilidade de tal
teoria: “Ficou cada vez mais evidente que os dados empíricos contradizem a
teoria. Com algumas exceções, particularmente a Europa e uma determinada
intelectualidade internacional, o nosso mundo não é nada secular; ele é tão
religioso como outrora, e em alguns lugares mais ainda” (BERGER, 2017, p. 11;
BERGER, 2001, p. 24-27). Nada mais ilusório do que pensar que o século XXI será
menos religioso. O que ocorre na verdade é a presença de importantes movimentos
de revitalização espiritual, como no caso do islamismo e do pentecostalismo.
Constituem “os dois fenômenos mais dinâmicos no cenário religioso global”
(BERGER, 2017, p. 63; BERGER, 2001, p. 21-24).
Com base nessa constatação, Berger propõe um novo paradigma
para a reflexão, que tem no pluralismo sua âncora essencial. O que o tempo
atual apresenta é a presença simultânea de grupos distintos, de religiões
diversificadas, que buscam espaços de coexistência. O pluralismo firma-se como
o grande desafio para as comunidades religiosas, bem na linha do que já havia
indicado o papa Francisco em sua exortação apostólica sobre o anúncio do
evangelho no mundo atual, no sentido da percepção da beleza da diversidade
(Francisco, 2013, p. 130). Para Berger, em linha de sintonia com uma visão
inclusivista, a acolhida do pluralismo deve ocorrer garantindo o respeito das
convicções e evitando os “falsos absolutos do fanatismo” (BERGER, 1994, p. 499)
Tempos de pluralização
Os tempos modernos são marcados por
um singular processo de comunicação. Todos são provocados a entrar numa
“conversa permanente”, numa interlocução criativa. Na nova ordem social
pós-tradicional a tradição não desaparece mas muda de status. No novo momento de globalização intensificadora ela não
está mais garantida, necessitando de explicar-se e abrir-se à interrogação e ao
discurso (GIDDENS, 1995, p. 13). A
dinâmica moderna de pluralização é pontuada por uma enorme abrangência e grande
velocidade (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 50). Se no passado as sociedades
conseguiam realizar com certa facilidade o processo de ordenação social,
garantindo de forma relativamente exitosa “a geração, comunicação e preservação
de sentido”, isto deixa de ocorrer nas sociedades modernas. Com o crescimento
da pluralização, intensifica-se simultaneamente a “agonia de ter de escolher”
(BERGER; ZIJDERVELD, 2012, p. 41). É correto dizer que a situação moderna leva
a “sistemas abertos de conhecimento”, ampliando o campo do olhar, mas provoca
também os acirramentos identitários. A atmosfera plural engendra “não apenas a
´era do ecumenismo` mas também, em aparente contradição com esta, a ´era das
redescobertas das heranças confessionais`” (BERGER, 1985, p. 159).
A consciência moderna vem
acompanhada por efeito relativizador, na medida em que revira todas as antigas
certezas. O campo se abre com um leque ampliado de opções e formas
diversificadas de pensar sobre o mundo. O peso recai sobre a escolha. As
estruturas de plausibilidade se fragilizam, perdendo seu traço de estabilidade
e enfraquecendo as comunidades de sentido. Em decorrência, as respostas que
traduzem a afirmação de um mundo tornam-se igualmente incertas e hesitantes
(BERGER, Peter L., 2017b, p. 37-38). Daí a tendências dos indivíduos a recuarem
para a sua própria subjetividade, na busca de alguma certeza mais garantida, ou
então se ancorar em comunidades que garantam uma maior segurança. Com a
instabilidade das estruturas de plausibilidade os sujeitos tornam-se propensos
ao contágio das dissonâncias cognitivas. Os conhecimentos auto-evidentes passam
a ser suspeitados e os pilares do mundo objetivo passam a ser problematizados
com vigor: mundo sociedade, vida e identidade. Nenhuma interpretação vigente
pode agora ser assumida como a única ou inquestionavelmente correta (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 54). Tudo passa
pelo turbilhão da dúvida ou vive a instabilidade pelo simples fato de ter que
conviver com estruturas de plausibilidade rivais (BERGER, 1997, p. 78-79).
A crise de credibilidade que
acompanha a situação pluralista afeta igualmente a religião:
“A situação pluralista, ao
acabar com o monopólio religioso, faz com que fique cada vez mais difícil
manter ou construir novamente estruturas de plausibilidade viáveis para a
religião. As estruturas de plausibilidade perdem solidez porque não podem mais
apresentar a sociedade como um todo para servir ao propósito da confirmação
social. Em termos simples, sempre há ´todos os outros` que se recusam a
confirmar o mundo religioso em questão. Torna-se cada vez mais difícil para os
´habitantes` de um dado religioso permanecer entre nous na sociedade contemporânea” (BERGER, 1985, p. 162).
Com
o desdobramento da relativização, a possibilidade da crise de sentido e
desorientação dos indivíduos e grupos inteiros. Daí o recurso institucional
para salvaguardar o “nomos”, com as instituições intermediárias que fazem a
ponte entre a experiência coletiva e a individual. Como assinalam Berger e
Luckmann, “todo grupo que deseja proteger-se das consequências da pluralização
dever erguer seu próprio ´muro da Lei`” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 50). A
própria sociedade engendra instituições específicas para a afirmação, produção
e comunicação de sentido. Funcionam como um sistema imunológico, evitando o
vírus problemático das crises. Muitos destes “projetos restauradores” em favor da
sanidade do mundo, acabam por limitar ou mesmo suprimir o pluralismo, na medida
em que ele “coloca sempre alternativas diante dos olhos” (BERGER; LUCKMANN,
2004, p. 58).
A questão é extremamente complexa,
exigindo discernimento e abertura. Não se pode negar esse traço relativizador
que acompanha a dinâmica do pluralismo, nem ocultar as crises de sentido que
dela podem se desdobrar. É o dado pontuado com realismo por Berger, mas isto
não significa um desencanto com o pluralismo, mas uma exigência a mais no
processo de reflexão de forma a criar condições positivas para a sua acolhida,
uma vez que ele se firma como um fenômeno global e desafiante.
As reações ao pluralismo
Ao
abordar em seu clássico livro a questão dos mecanismos conceituais de manutenção do universo, Berger toca numa
questão delicada, que é o processo de encontro de uma sociedade com outra,
marcada por uma história diferente. Como indica, a presença de um outro
possível universo simbólico é sempre uma ameaça, pois sugere que o universo
particular não é inevitável (BERGER, 1973, p. 146-147). Seja em que
circunstância isto ocorra, a entrada do outro no mundo particular revela sempre
uma experiência delicada, exigindo uma “sensibilidade escrupulosa”. Não é fácil
lidar com a diferença, e sobretudo entender a diferença como uma riqueza, como
espaço de aprendizado e enriquecimento pessoal.
A experiência do pluralismo revela
de forma patente esta delicada engenharia de trato com o outro. Berger mostrou
em vários de seus livros que o pluralismo provoca inquietação, e ele tem razão,
pois é quando as versões divergentes do mundo colocam-se lado a lado, e o risco
da ameaça à estrutura de plausibilidade se torna mais evidente. O outro, ou os
outros, representam não apenas uma ameaça teórica, mas também uma ameaça
prática para a própria ordem instituída e para o mundo objetivado. O pluralismo
é visto como um passo perigoso de relativização:
O pluralismo cria uma condição
de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria
viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao
que se conta verdadeiramente na vida. Quando o relativismo alcança uma certa
intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande fascínio (BERGER, 1994,
p. 48).
É
possível lidar com o pluralismo de forma aberta e acolhedora, reconhece Berger
ao falar dos “virtuosos do pluralismo”. É o caso de pessoas ou buscadores que
lidam com alegria com a diversidade, que reconhecem a importância fundamental
da presença do outro na construção da identidade. São “pessoas que suportam
esta exigência; e algumas até parece que se sentem bem com ela” (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 54). Há buscadores espirituais em distintas tradições
religiosas que lidam bem com esta questão, como é o caso de Raimon Panikkar
(1918-2010), um dos grandes pilares do diálogo inter-religioso. Ele dizia que
aqueles que se fixam unicamente em sua religião, fechando-se à qualquer
interlocução com as outras tradições, deixam escapar o mistério que as habita,
perdendo inclusive a possibilidade de conhecer em profundidade sua própria
religião. Na sua visão, o pluralismo revela uma das “experiências mais
enriquecedoras” da consciência humana, que permite ao sujeito tomar consciência
da própria contingência (PANIKKAR, 1998, p. 166).
Se há pessoas que lidam bem com a
diversidade, a maioria recusa essa experiência de alteridade. É o que sublinha
Berger, indicando que as motivações que provocam esta resistência estão no
próprio mundo interior. Trata-se de uma radical insegurança diante de “um mundo
confuso e cheio de possibilidades de interpretação” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.
54). Grande parte das pessoas necessita de um mundo que lhes forneça segurança,
de um mundo pautado na auto-evidência, livre de questionamentos. Daí ser
curioso perceber que no tempo atual, as pessoas busquem apoio em comunidades
que estão livres de dissonância cognitiva, ou seja, em comunidades que oferecem
certezas e marcam sua caminhada com doutrinas mais estáveis e rígidas. As
instituições foram criadas justamente para “aliviar o indivíduo da necessidade
de reinventar o mundo a cada dia e ter de se orientar dentro dele” (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 54). As comunidades mais flexíveis ou elásticas, pautadas
pela negociação cognitiva, e que tratam de forma mais aberta as questões
doutrinais e os códigos de comportamento são as que encontram mais resistência
entre os fiéis (BERGER, 1994, p. 24; BERGER, 2001, p. 19-20). Berger entende
que a razão disso está nas incertezas provocadas pela modernidade e na
pluralização a ela associada; bem como na dinâmica dissolvedora da
relativização.
A emergência dos fundamentalismos no
cenário religioso mundial é expressão de reação ao pluralismo e à modernização.
Berger não tem dúvida sobre isso. São os grupos ou movimentos que reagem
criticamente aos projetos ou iniciativas relacionadas ao aggiornamento com a modernidade. E são expressões religiosas que
estão se irradiando por todo canto e em diversas religiões. O que os
fundamentalistas buscam é “restaurar a certeza ameaçada”, e isto ocorre não
apenas no âmbito religioso mas também no domínio secular (BERGER, 2017, p. 34).
É um fenômeno moderno e reativo, que só se entende no âmbito do processo
modernizador e relativizante. Para os fundamentalistas, os outros “representam
uma séria ameaça à certeza conquistada a duras penas; eles devem ser
convertidos, segregados ou, no extremo, expulsos ou ´liquidados`” (BERGER;
ZIJDERVELD, 2012, p. 66).
Um traço definidor do
fundamentalismo é a radical negação de qualquer negociação cognitiva. Não pode
haver interlocução significativa com outsiders,
e isto para defender-se contra qualquer possibilidade de dúvida. A visão de mundo
deve estar bem “localizada” num campo de proteção cognitiva, evitando qualquer
brecha dissociadora. Ao mesmo tempo, busca-se recriar nos grupos nexos de
solidariedade comunitária e construir um discurso mítico que esteja livre das
tensões e incertezas da modernidade. O
fundamentalismo vem ancorado numa redução cognitiva, que pode se expressar
defensivamente ou ofensivamente, na forma de proteção do gheto ou numa
estratégia de cruzada, ou seja, de reconquista da sociedade em nome de uma
tradição que se vê ameaçada (BERGER, 1994, p. 45). O que “originalmente é
apenas um isolacionismo, ou talvez a insistência na pureza de uma tradição
local, pode se essa for a tendência das circunstâncias, transformar-se em um
ciclo vicioso de animosidade e rancor” (GIDDENS, 1995, p. 277).
O desafio plural
Em
sua reflexão sobre o pluralismo, Berger busca distanciar-se de duas
possibilidades: o relativismo e o fundamentalismo. São dois riscos bem
presentes no campo da modernidade: “Se o perigo imposto pelo relativismo a uma
sociedade estável for o excesso de dúvida, o perigo do fundamentalismo é uma
insuficiência de dúvida” (BERGER; ZIJDERVELD, 2012, p. 78). O autor sente-se à
vontade no novo paradigma proposto, que envolve a teoria do pluralismo. Mas a
forma de sua acolhida é cuidadosa e criteriosa, evitando os extremos da cadeia.
Busca uma solução responsável, que garanta a domiciliação serena a uma
identidade sempre em construção. Ele reconhece não ser tarefa fácil, conviver
com o pluralismo, mas admite a possibilidade de uma experiência de fé capaz de
lidar positivamente com a diferença. Sua conclusão a respeito é bem singular:
Numa perspectiva filosófica, o
desafio do pluralismo moderno às religiões pode ser definido neste termos: é um
desafio de manter as convicções sem dissolvê-las em pura e simples relatividade
e sem recolhê-las nos falsos absolutos do fanatismo. É uma desafio difícil, mas
não impossível (BERGER, 1994, p. 49).
Referências Bibliográficas
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GIDDENS, Anthony. Para
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PANIKKAR, Raimon. Entre
Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk. Paris: Albin Michel,
1998.
(Publicado no IHU-Online, Edição 509, 21/08/2017: