terça-feira, 22 de agosto de 2017

Peter Berger e o pluralismo religioso

Peter Berger e o pluralismo religioso

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Introdução

O sociólogo americano, Peter L. Berger (1929-2017), ficou conhecido por seu singular trabalho na sociologia do conhecimento, em particular na reflexão sobre a construção social da realidade. Mas o tema da religião o acompanhou desde seus primeiros ensaios, sendo um dos autores clássicos que se ocuparam do tema da secularização no mundo moderno, ou seja, da retração do sobrenatural para a esfera da consciência e o progressivo declínio da religião na esfera pública. A secularização, como mostrou Berger, traduz “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 1985, p. 119).

Essa foi uma visão que marcou a primeira fase de sua reflexão na sociologia da religião, quando sua ênfase recaia sobre a chamada teoria da secularização. Em razão de constatações empíricas, foi aos poucos se dando conta da fragilidade de tal posicionamento. Um novo discernimento se deu por volta de 1999,  depois de 25 anos , como ele mesmo assinala, quando então se dá conta da insustentabilidade de tal teoria: “Ficou cada vez mais evidente que os dados empíricos contradizem a teoria. Com algumas exceções, particularmente a Europa e uma determinada intelectualidade internacional, o nosso mundo não é nada secular; ele é tão religioso como outrora, e em alguns lugares mais ainda” (BERGER, 2017, p. 11; BERGER, 2001, p. 24-27). Nada mais ilusório do que pensar que o século XXI será menos religioso. O que ocorre na verdade é a presença de importantes movimentos de revitalização espiritual, como no caso do islamismo e do pentecostalismo. Constituem “os dois fenômenos mais dinâmicos no cenário religioso global” (BERGER, 2017, p. 63; BERGER, 2001, p. 21-24).

Com base nessa constatação, Berger propõe um novo paradigma para a reflexão, que tem no pluralismo sua âncora essencial. O que o tempo atual apresenta é a presença simultânea de grupos distintos, de religiões diversificadas, que buscam espaços de coexistência. O pluralismo firma-se como o grande desafio para as comunidades religiosas, bem na linha do que já havia indicado o papa Francisco em sua exortação apostólica sobre o anúncio do evangelho no mundo atual, no sentido da percepção da beleza da diversidade (Francisco, 2013, p. 130). Para Berger, em linha de sintonia com uma visão inclusivista, a acolhida do pluralismo deve ocorrer garantindo o respeito das convicções e evitando os “falsos absolutos do fanatismo” (BERGER, 1994, p. 499)

Tempos de pluralização

            Os tempos modernos são marcados por um singular processo de comunicação. Todos são provocados a entrar numa “conversa permanente”, numa interlocução criativa. Na nova ordem social pós-tradicional a tradição não desaparece mas muda de status. No novo momento de globalização intensificadora ela não está mais garantida, necessitando de explicar-se e abrir-se à interrogação e ao discurso (GIDDENS, 1995, p. 13).  A dinâmica moderna de pluralização é pontuada por uma enorme abrangência e grande velocidade (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 50). Se no passado as sociedades conseguiam realizar com certa facilidade o processo de ordenação social, garantindo de forma relativamente exitosa “a geração, comunicação e preservação de sentido”, isto deixa de ocorrer nas sociedades modernas. Com o crescimento da pluralização, intensifica-se simultaneamente a “agonia de ter de escolher” (BERGER; ZIJDERVELD, 2012, p. 41). É correto dizer que a situação moderna leva a “sistemas abertos de conhecimento”, ampliando o campo do olhar, mas provoca também os acirramentos identitários. A atmosfera plural engendra “não apenas a ´era do ecumenismo` mas também, em aparente contradição com esta, a ´era das redescobertas das heranças confessionais`” (BERGER, 1985, p. 159).

            A consciência moderna vem acompanhada por efeito relativizador, na medida em que revira todas as antigas certezas. O campo se abre com um leque ampliado de opções e formas diversificadas de pensar sobre o mundo. O peso recai sobre a escolha. As estruturas de plausibilidade se fragilizam, perdendo seu traço de estabilidade e enfraquecendo as comunidades de sentido. Em decorrência, as respostas que traduzem a afirmação de um mundo tornam-se igualmente incertas e hesitantes (BERGER, Peter L., 2017b, p. 37-38). Daí a tendências dos indivíduos a recuarem para a sua própria subjetividade, na busca de alguma certeza mais garantida, ou então se ancorar em comunidades que garantam uma maior segurança. Com a instabilidade das estruturas de plausibilidade os sujeitos tornam-se propensos ao contágio das dissonâncias cognitivas. Os conhecimentos auto-evidentes passam a ser suspeitados e os pilares do mundo objetivo passam a ser problematizados com vigor: mundo sociedade, vida e identidade. Nenhuma interpretação vigente pode agora ser assumida como a única ou inquestionavelmente correta  (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 54). Tudo passa pelo turbilhão da dúvida ou vive a instabilidade pelo simples fato de ter que conviver com estruturas de plausibilidade rivais (BERGER, 1997, p. 78-79).

            A crise de credibilidade que acompanha a situação pluralista afeta igualmente a religião:

“A situação pluralista, ao acabar com o monopólio religioso, faz com que fique cada vez mais difícil manter ou construir novamente estruturas de plausibilidade viáveis para a religião. As estruturas de plausibilidade perdem solidez porque não podem mais apresentar a sociedade como um todo para servir ao propósito da confirmação social. Em termos simples, sempre há ´todos os outros` que se recusam a confirmar o mundo religioso em questão. Torna-se cada vez mais difícil para os ´habitantes` de um dado religioso permanecer entre nous na sociedade contemporânea” (BERGER, 1985, p. 162).

                  Com o desdobramento da relativização, a possibilidade da crise de sentido e desorientação dos indivíduos e grupos inteiros. Daí o recurso institucional para salvaguardar o “nomos”, com as instituições intermediárias que fazem a ponte entre a experiência coletiva e a individual. Como assinalam Berger e Luckmann, “todo grupo que deseja proteger-se das consequências da pluralização dever erguer seu próprio ´muro da Lei`” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 50). A própria sociedade engendra instituições específicas para a afirmação, produção e comunicação de sentido. Funcionam como um sistema imunológico, evitando o vírus problemático das crises. Muitos destes “projetos restauradores” em favor da sanidade do mundo, acabam por limitar ou mesmo suprimir o pluralismo, na medida em que ele “coloca sempre alternativas diante dos olhos” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 58).

            A questão é extremamente complexa, exigindo discernimento e abertura. Não se pode negar esse traço relativizador que acompanha a dinâmica do pluralismo, nem ocultar as crises de sentido que dela podem se desdobrar. É o dado pontuado com realismo por Berger, mas isto não significa um desencanto com o pluralismo, mas uma exigência a mais no processo de reflexão de forma a criar condições positivas para a sua acolhida, uma vez que ele se firma como um fenômeno global e desafiante.

As reações ao pluralismo

            Ao abordar em seu clássico livro a questão dos mecanismos conceituais  de manutenção do universo, Berger toca numa questão delicada, que é o processo de encontro de uma sociedade com outra, marcada por uma história diferente. Como indica, a presença de um outro possível universo simbólico é sempre uma ameaça, pois sugere que o universo particular não é inevitável (BERGER, 1973, p. 146-147). Seja em que circunstância isto ocorra, a entrada do outro no mundo particular revela sempre uma experiência delicada, exigindo uma “sensibilidade escrupulosa”. Não é fácil lidar com a diferença, e sobretudo entender a diferença como uma riqueza, como espaço de aprendizado e enriquecimento pessoal.

            A experiência do pluralismo revela de forma patente esta delicada engenharia de trato com o outro. Berger mostrou em vários de seus livros que o pluralismo provoca inquietação, e ele tem razão, pois é quando as versões divergentes do mundo colocam-se lado a lado, e o risco da ameaça à estrutura de plausibilidade se torna mais evidente. O outro, ou os outros, representam não apenas uma ameaça teórica, mas também uma ameaça prática para a própria ordem instituída e para o mundo objetivado. O pluralismo é visto como um passo perigoso de relativização:

O pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que se conta verdadeiramente na vida. Quando o relativismo alcança uma certa intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande fascínio (BERGER, 1994, p. 48).

                  É possível lidar com o pluralismo de forma aberta e acolhedora, reconhece Berger ao falar dos “virtuosos do pluralismo”. É o caso de pessoas ou buscadores que lidam com alegria com a diversidade, que reconhecem a importância fundamental da presença do outro na construção da identidade. São “pessoas que suportam esta exigência; e algumas até parece que se sentem bem com ela” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 54). Há buscadores espirituais em distintas tradições religiosas que lidam bem com esta questão, como é o caso de Raimon Panikkar (1918-2010), um dos grandes pilares do diálogo inter-religioso. Ele dizia que aqueles que se fixam unicamente em sua religião, fechando-se à qualquer interlocução com as outras tradições, deixam escapar o mistério que as habita, perdendo inclusive a possibilidade de conhecer em profundidade sua própria religião. Na sua visão, o pluralismo revela uma das “experiências mais enriquecedoras” da consciência humana, que permite ao sujeito tomar consciência da própria contingência (PANIKKAR, 1998, p.  166).

            Se há pessoas que lidam bem com a diversidade, a maioria recusa essa experiência de alteridade. É o que sublinha Berger, indicando que as motivações que provocam esta resistência estão no próprio mundo interior. Trata-se de uma radical insegurança diante de “um mundo confuso e cheio de possibilidades de interpretação” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 54). Grande parte das pessoas necessita de um mundo que lhes forneça segurança, de um mundo pautado na auto-evidência, livre de questionamentos. Daí ser curioso perceber que no tempo atual, as pessoas busquem apoio em comunidades que estão livres de dissonância cognitiva, ou seja, em comunidades que oferecem certezas e marcam sua caminhada com doutrinas mais estáveis e rígidas. As instituições foram criadas justamente para “aliviar o indivíduo da necessidade de reinventar o mundo a cada dia e ter de se orientar dentro dele” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 54). As comunidades mais flexíveis ou elásticas, pautadas pela negociação cognitiva, e que tratam de forma mais aberta as questões doutrinais e os códigos de comportamento são as que encontram mais resistência entre os fiéis (BERGER, 1994, p. 24; BERGER, 2001, p. 19-20). Berger entende que a razão disso está nas incertezas provocadas pela modernidade e na pluralização a ela associada; bem como na dinâmica dissolvedora da relativização.

            A emergência dos fundamentalismos no cenário religioso mundial é expressão de reação ao pluralismo e à modernização. Berger não tem dúvida sobre isso. São os grupos ou movimentos que reagem criticamente aos projetos ou iniciativas relacionadas ao aggiornamento com a modernidade. E são expressões religiosas que estão se irradiando por todo canto e em diversas religiões. O que os fundamentalistas buscam é “restaurar a certeza ameaçada”, e isto ocorre não apenas no âmbito religioso mas também no domínio secular (BERGER, 2017, p. 34). É um fenômeno moderno e reativo, que só se entende no âmbito do processo modernizador e relativizante. Para os fundamentalistas, os outros “representam uma séria ameaça à certeza conquistada a duras penas; eles devem ser convertidos, segregados ou, no extremo, expulsos ou ´liquidados`” (BERGER; ZIJDERVELD, 2012, p. 66).

            Um traço definidor do fundamentalismo é a radical negação de qualquer negociação cognitiva. Não pode haver interlocução significativa com outsiders, e isto para defender-se contra qualquer possibilidade de dúvida. A visão de mundo deve estar bem “localizada” num campo de proteção cognitiva, evitando qualquer brecha dissociadora. Ao mesmo tempo, busca-se recriar nos grupos nexos de solidariedade comunitária e construir um discurso mítico que esteja livre das tensões e incertezas da modernidade.  O fundamentalismo vem ancorado numa redução cognitiva, que pode se expressar defensivamente ou ofensivamente, na forma de proteção do gheto ou numa estratégia de cruzada, ou seja, de reconquista da sociedade em nome de uma tradição que se vê ameaçada (BERGER, 1994, p. 45). O que “originalmente é apenas um isolacionismo, ou talvez a insistência na pureza de uma tradição local, pode se essa for a tendência das circunstâncias, transformar-se em um ciclo vicioso de animosidade e rancor” (GIDDENS, 1995, p. 277).

O desafio plural

            Em sua reflexão sobre o pluralismo, Berger busca distanciar-se de duas possibilidades: o relativismo e o fundamentalismo. São dois riscos bem presentes no campo da modernidade: “Se o perigo imposto pelo relativismo a uma sociedade estável for o excesso de dúvida, o perigo do fundamentalismo é uma insuficiência de dúvida” (BERGER; ZIJDERVELD, 2012, p. 78). O autor sente-se à vontade no novo paradigma proposto, que envolve a teoria do pluralismo. Mas a forma de sua acolhida é cuidadosa e criteriosa, evitando os extremos da cadeia. Busca uma solução responsável, que garanta a domiciliação serena a uma identidade sempre em construção. Ele reconhece não ser tarefa fácil, conviver com o pluralismo, mas admite a possibilidade de uma experiência de fé capaz de lidar positivamente com a diferença. Sua conclusão a respeito é bem singular:

Numa perspectiva filosófica, o desafio do pluralismo moderno às religiões pode ser definido neste termos: é um desafio de manter as convicções sem dissolvê-las em pura e simples relatividade e sem recolhê-las nos falsos absolutos do fanatismo. É uma desafio difícil, mas não impossível (BERGER, 1994, p. 49).


Referências Bibliográficas


BERGER, Peter L. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1973.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
BERGER, Peter L. Una gloria remota. Avere fede nell´epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994.
BERGER, Peter L. Rumor de anjos. A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
BERGER, Peter L. Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001.
BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade. Rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
BERGER, Peter L. O imperativo herético. Possibilidades contemporâneas da afirmação religiosa. Petrópolis: Vozes, 2017b.
BERGER, Peter L. & LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. A orientação do homem moderno. Petrópolis: Vozes, 2004.
BERGER, Peter L. & ZIJDERVELD, Anton. Em favor da dúvida.  Como ter convicções sem se tornar um fanático. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Unesp, 1995.
PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk. Paris: Albin Michel, 1998.

(Publicado no IHU-Online, Edição 509, 21/08/2017:



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Muçulmanos no Brasil

Muçulmanos no Brasil

Faustino Teixeira
(agosto de 2017)


1. A chegada de imigrantes/refugiados de países islâmicos terá impacto no número de praticantes dessa religião no Brasil?

Que haverá um impacto, não há dúvida. O que é motivo de preocupação é a forma como tais imigrantes serão acolhidos em nosso país. Já percebemos aqui ou ali reações de resistência ou oposição a esta presença, reproduzindo uma tendência que é comum nos países da Europa, onde o xenofobismo e o etnocentrismo firmam-se com muita virulência. Como mostram os estudiosos de islã no Brasil, como Sílvia Maria Montenegro, a comunidade muçulmana aqui no Brasil tem características bem peculiares. Vivem no país em clima de paz e tolerância. Não vivemos numa “zona de guerra”, onde a comunidade muçulmana vem perseguida, expulsa ou segregada. Tensões ou conflitos demarcados ocorreram depois de setembro de 2011, mas localizados. Na nova conjuntura internacional, com os conflitos na Síria, em países africanos e em outras regiões com forte presença muçulmana, o risco de reações etnocêntricas tende a crescer, com consequências nefastas, também aqui em nosso país.

2. Existe um número realista do total de muçulmanos no Brasil, e qual foi o crescimento em relação a alguns anos atrás?

Peter Berger, em livro recentemente publicado no Brasil – Os múltiplos altares da modernidade (Vozes, 2017) -, sublinha que o islã e o pentecostalismo constituem os “dois fenômenos mais dinâmicos do cenário religioso global”. O Crescimento do islã, em âmbito mundial, é mesmo impressionante. É uma tradição religiosa que já ultrapassou o catolicismo em número de adeptos, e se aproxima do cristianismo como um todo. São quase 2 bilhões de adeptos do mundo. No Brasil sua presença ainda é pequena, como indica o último Censo Demográfico, de 2010. O Censo registrou a presença de 35.167 muçulmanos no Brasil. Em comparação ao Censo de 2000 houve um crescimento de 29,10%, já que naquela ocasião o registro era de 27.239 muçulmanos. Os dados do Censo são contestados pelas instituições islâmicas do país, que acreditam que esse número seja bem maior, indicando uma presença superior a 1 milhão de adeptos.


3. Como tem sido o diálogo das religiões majoritárias do país com as lideranças muçulmanas? 

Como mencionei anteriormente, os muçulmanos no Brasil adaptaram-se bem ao clima de abertura e sincretização que marca o campo religioso brasileiro. Não pontuam a sua presença com os toques de conflitualidade, mas com o ritmo da tolerância. Com respeito às religiões majoritárias, em particular o catolicismo, o modo de abordagem e relação com os muçulmanos é também tecido por abertura e tolerância. Pode-se observar a presença comum de cristãos e muçulmanos nos grandes eventos inter-religiosos, num clima de harmonia e paz. É verdade que crescem também no país determinadas formas de presença neopentecostal, ou mesmo de catolicismo carismático, com indícios de oposição e mesmo beligerância contra as outras tradições religiosas. Isso é motivo de preocupação. Mas, simultaneamente, emergem igualmente os movimentos que rebatem tal posicionamento de intolerância, em favor de uma convivência mais harmônica, defendendo a riqueza da pluralidade inter-religiosa.

4. Existem estratégias definidas e já em pratica dos líderes religiosos islâmicos para promover a religião no Brasil? Se houver, poderia mencionar algumas?

Os estudiosos do islã no Brasil falam do grande crescimento de instituições islâmicas no Brasil, com uma concentração mais precisa na área urbana, sobretudo no Sudeste e no Sul. Quanto ao número de adeptos, sua maior presença é em São Paulo, com cerca de 23% da população muçulmana, vindo Foz de Iguaçu em segundo lugar, com cerca de 15,9% dos muçulmanos. É grande a presença dos imigrantes ou de seus familiares, mas ocorre progressivamente o fenômeno da conversão de brasileiros, e isto se dá por vários motivos: através do caminho intelectual, da admiração pela cultura islâmica ou da busca mística (a sedução do sufismo). As instituições islâmicas que atuam no país servem-se de várias estratégias para promover a religião no Brasil. Mas há divergências, ou mesmo tensões envolvendo as comunidades muçulmanas em seu processo de integração no país, como no dilema de se firmarem como arabistas ou não.

5. Uma parte dos evangélicos (em geral pastores) temem pelo crescimento da religião islâmica como uma ameaça à "paz" no Brasil, no sentido de atrair extremistas e terroristas. Esse temor tem algum fundamento? Existe algum fato que possa corroborar com essa ideia?

O fenômeno do fundamentalismo, e mesmo do fanatismo religioso, não é uma prerrogativa da tradição muçulmana. Trata-se de um fenômeno que ocorre em todas as tradições religiosas. Num mundo que se firma cada vez mais como plural, as reações fundamentalistas se irradiam, indicando um “esforço para restaurar a certeza ameaçada” (P.Berger). O medo maior é o da “contaminação cognitiva”, daí a resistência a qualquer conversação ou abertura dialogal. No caso do islã, verifica-se a presença desviante dos movimentos islamistas, mas que não traduzem a riqueza do patrimônio religioso da tradição muçulmana. Vale a preciosa advertência lançada pelo príncipe real da Jordânia, El Hassan bin Talal, no seu livro, Ser muçulmano (2001): “O Ocidente deve tratar com o devido respeito a um mundo religioso que conta entre os seus seguidores uma pessoa em cada cindo”. O desafio fundamental no tempo atual não é o do rechaço, mas da acolhida essencial. Como disse com razão o papa Francisco em sua exortação apostólica, A alegria do evangelho (2013): “A diversidade é bela”.

6. Como tem se dado a ação social de ONGs ligadas a igrejas (católicas e protestantes) no acolhimento aos refugiados em geral e aos muçulmanos em particular?

No âmbito católico a conjuntura é bem favorável, sobretudo com a nova sensibilidade eclesial levada a efeito por papa Francisco. A palavra chave é Misericórdia e Acolhida. Tanto a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) buscam incentivar as distintas ONGs nesse importante trabalho de hospitalidade. Sinais importantes já começam a se verificar em nosso país nesse sentido de abertura.

7. Em sua visão, quais as maiores dificuldades que os muçulmanos que chegam ao Brasil enfrentam?

O problema mais grave relaciona-se aos ecos de intolerância que vêm de fora, com a ideia nociva e preconceituosa de que os muçulmanos, em geral, são portadores de ódio e violência. Trata-se de uma visão que acaba contagiando núcleos de brasileiros. São ideias que se apoiam em visões problemáticas, como as defendidas por Samuel Huntington, que fala em “choque de civilizações”, com base numa visão violenta do islã. Cria-se, assim, um circuito que incrementa paixões nacionalistas com repercussões mortíferas. Os meios de comunicação social acabam também se envolvendo nessa toada de intolerância, acirrando os ódios e divulgando uma visão nefasta sobre uma tradição que é bem mais complexa e rica. Vivemos, infelizmente, num ambiente cultural de rechaço à hospitalidade e de acirramentos identitários. É neste contexto que encontramos visões que mutilam o islã, vindas de toda parte, que acabam por reduzir a ordem islâmica “a um código penal, despojada de seu humanismo, estética, buscas intelectuais e devoção espiritual”.

8. Como os líderes evangélicos poderiam trabalhar para ajudar, de maneira cristã, aqueles que estão chegando, fugindo de guerras?

É, sem dúvida, um desafio que envolve os católicos, mas também os protestantes e pentecostais, que são os núcleos religiosos de importante presença hoje no Brasil, junto com os que se definem como “sem religião”. Há que vencer muitas barreiras, de preconceitos e intolerâncias, e romper com o “desgaste de compaixão” e a indiferença que marcam o nosso tempo. Por sorte, um dos traços mais característicos da religiosidade no Brasil é o da complementaridade. A palavra que aqui soa mais forte não é a da rejeição, mas da inclusão e da inter-relação. A esperança é que essa nota permaneça como a mais substantiva.



(Entrevista concedida a Marilia Camargo Cesar, jornalista e escritora – agosto de 2017)