sábado, 23 de dezembro de 2017

O ritmo encantado das religiões no Brasil: a questão do sincretismo

O ritmo encantado das religiões no Brasil: a questão do sincretismo


Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Introdução

Um dos importantes desafios que se levantam hoje para a pastoral e a teologia diz respeito à questão do sincretismo. Há, porém, que superar uma visão preconceituosa, típica das formas dominantes de religião, que associa o sincretismo a uma perniciosa mistura ou degradação, para compreendê-lo como um fenômeno universal, que necessariamente ocorre quando se processa o encontro com os outros. O campo religioso brasileiro fornece exemplos extremamente significativos dessa incorporação criativa que se dá na dinâmica processual inter-religiosa. Em verdade, o que ocorre no calor dos trópicos é um “som Brasil” com tessitura vivamente relacional e sincrética, favorecendo uma percepção inusitada e provocadora de um exercício distinto de ser religioso no tempo atual.

Um campo religioso em transformação

            Seguindo a avaliação do último Censo Demográfico realizado no Brasil em 2010, o que se verifica é um progressivo processo de pluralização religiosa, com indicações precisas de uma dinâmica de movimento. Para um país que se apresentava até pouco tempo como hegemonicamente católico, algumas mudanças começam a ocorrer, indicando um campo religioso em transformação. Segundo os dados do Censo, o catolicismo vem perdendo força a cada década: 99,7% em 1872;  89,2%  em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010 (em torno de 123 milhões de declarantes). Enquanto os índices do catolicismo caem, verifica-se um considerável crescimento evangélico, com o indicativo de 22,2% em 2010 (cerca de 42 milhões de declarantes). Nesse crescimento, um papel especial concedido aos pentecostais, que tiveram um crescimento espantoso entre 1991 e 2010, passando de pouco mais de oito milhões para mais de vinte e cinco milhões de adeptos, num ritmo de crescimento superior ao da população brasileira, abarcando quase todas as regiões do país. Considerável também o crescimento dos sem religião, ou não afiliados, que alcançaram no último Censo o registro de 8% dos declarantes, cerca de 15,3 milhões de pessoas. Em seguida aparecem os declarantes espíritas, que também registraram um singular crescimento, passando de 1,3% em 2000 para 2,02% em 2010, o que indica um número aproximado de 3,8 milhões de seguidores. As religiões de matriz afro-brasileira aparecem com uma declaração de crença mais modesta, com o índice de 0,3% da população brasileira, e o Censo indica que elas vêm sofrendo uma redução progressiva desde 1991, sobretudo a umbanda.

            Com base nos dados do Censo de 2010 não há como negar a força do referencial cristão na sociedade brasileira. Somando-se o registro dos católicos com os evangélicos, chega-se quase a 90% da declaração de crença. Mas já se começa a perceber uma movimentação nova, com a presença dos sem religião (8%), dos espíritas (2,02%) e adeptos das religiões de matriz afro-brasileira (0,3%). Acrescenta-se ainda a presença do judaísmo (0,06%) e das religiões orientais, ainda bem minoritárias em nosso país, envolvendo uma estreita parcela de 0,22%; bem como as religiões dos povos originários e as tradições esotéricas.[1].

            Os dados apresentados pelo Censo não conseguem, porém, dar uma ideia precisa da dinâmica que anima o campo religioso brasileiro, mas não dá para entender esse campo com as lentes de um monolitismo religioso. Como bem mostrou Pierre Sanchis, as religiões no país “não formam blocos estanques: existem pontes, relações e transferências de sentido”.[2] O catolicismo brasileiro oferece um exemplo bem particular. É uma tradição que se veste com uma roupagem bem plural em suas malhas diversificadas. A forma de sua inserção na sociedade brasileira ganha essa coloração singular, com “mecanismos de fagocitose” que são peculiares, indicando que, na verdade, “há religiões demais nesta religião”[3]. E assim como nas outras tradições, ocorre com o catolicismo os efeitos visíveis do processo de desinstitucionalização em curso. Foi o tempo em que as instituições se apresentavam como estruturas sólidas que enquadravam e regulavam rigidamente o universo das experiências religiosas. O que temos hoje é uma dinâmica bem mais fluida, que aponta para um horizonte bem diverso:

“Um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos anos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas. Conservando-se presentes as identidades religiosas institucionais, é provável que o seu significado e o seu conteúdo se diversifiquem e se modalizem”.[4]

            Sem negar a presença de ondas identitárias que se firmam no cenário religioso, urge entender que esse processo novo, pontuado pela ampliação das porosidades, indica que as declarações de pertença religiosa vão se tornando cada vez mais complexas, exigindo uma atenção mais fina do analista.

Um ritmo religioso encantado

            O campo religioso brasileiro vem marcado por um ritmo singular, de circulações, interações, composições e múltiplas pertenças. A forma de viver a religiosidade não envolve exclusão ou rupturas mais fortes, mesmo que isto possa ocorrer aqui e ali, num tempo que é também de irrupções fundamentalistas. Na verdade, os devotos buscam ampliar suas possibilidades de apoio e proteção, sobretudo em tempos de anomia. Vale para o brasileiro o que expressou tão bem João Guimarães Rosa, com o personagem Tartarana em seu romance Grande sertão, veredas:

“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”.[5]

            O brasileiro, sobretudo aquele do meio popular, vive num mundo encantado, num clima de grande espiritualização, modulado pela presença de forças, energias e espíritos. Trata-se de um mundo relacional, com destaque para o ritmo do “outro mundo”. O brasileiro não vive apenas em torno da “casa” e da “rua”, mas também tocado pela presença dessa outra região, marcada pelo signo da eternidade. É, na verdade,

“um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e fazer sentido. Assim, o outro mundo – o mundo dos mortos, fantasmas, espíritos, espectros, almas, santos, anjos e demônios – é também uma realidade social marcada por esperanças, desejos que aqui ainda não puderam se realizar pessoal ou coletivamente”.[6]

            Essas forças e espíritos envolvem os fieis numa aliança de encantamento, estabelecendo relações que são fundamentais para a nomização pessoal e coletiva. O diálogo com esses “outros” está sempre presente e conforma a plausibilidade da construção do mundo. É nesta relação que se firma e mantém o mundo subjetivo. São “outros” que entram no mundo e firmam a dinâmica do sujeito: “orixás para alguns, mortos, santos ou entidades para outros; Nossas Senhoras que aparecem e vêm conviver com os homens; anjos, espíritos, forças cósmicas, demônios, ou tudo isso ao mesmo tempo; enfim, Espírito Santo para pentecostais e carismáticos”.[7]

            Esse circuito de espíritos não é um fenômeno isolado ou restrito a grupos específicos, mas algo que envolve cerca da metade da população brasileira. Não é pouca coisa. São dezenas de milhões de brasileiros que entram regularmente em contato com este outro mundo e estabelecem com ele relações personalizadas.[8]

            As expressões religiosas existentes são porosas, permitindo uma gama de pontes e relações. Não há, em geral, insulamentos de exclusividade. Partindo da tradição dos povos originários, o que se vê é a presença de um mundo invisível povoado de forças e poderes que acompanham de perto as pessoas. No belo livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu, o xamã yanomami fala da presença viva dos xapiri que habitam a floresta: “Em todos os lugares onde vivem humanos, a floresta é assim povoada de espíritos animais. São as imagens de todos os seres que andam pelo solo, sobem pelos galhos ou possuem asas”.[9]

            Um olhar atento sobre o catolicismo popular capta a presença viva dos santos, das rezadeiras, beatos e benzedeiras e o seu incrível potencial de lidar com as forças do sagrado. Cada canto do sertão vem pontuado pela presença de um curandeiro, que está ali para ajudar os outros a resolver inúmeras questões, como a cura de doenças, a solução para a perda de objetos, a anulação do efeito de  infortúnios, como a picada de cobra ou o mal olhado. O fundamental não é necessariamente a “resolução” do problema, mas a manutenção da “certeza na possibilidade de acesso ao Além”.[10]

            Essa dinâmica encantada povoa não apenas o catolicismo popular, mas está igualmente presente na irradiação pentecostal, marcado por inúmeros sinais e mediações, que articulam gestos, objetos, copos d´água, terra, contatos físicos etc. E o “outro” da tradição religiosa distinta aparece através dos recursos simbólicos utilizados. O repertório particular vai sendo igualmente tecido  pelo recurso emprestado de outra religião, como no caso das entidades das religiões afro. Ocorre muitas vezes uma espécie de “antropofagia da fé inimiga”, ou fagocitose, quando as outras entidades são convocadas a se apresentarem no percurso do ritual como parte integrante da dinâmica em curso.[11]

            Bricolagens diversificadas acontecem também nas práticas do pentecostalismo católico, ou renovação carismática, quando o reavivamento religioso vem ressignificado com a presença de elementos simbólicos de outras tradições religiosas. Ocorrem ainda dinâmicas de intercâmbio de carismáticos com práticas holísticas envolvidas numa cosmovisão Nova Era.[12]

            O “mundo invisível” comparece intensamente nas práticas do espiritismo kardecista no Brasil. Com a presença da mediunidade se estabelece uma comunicação espiritual entre os dois mundos, o visível e o invisível. Mesmo com uma modesta presença estatística no Brasil, não há como negar o impacto de uma “impregnação” espírita na sociedade brasileira, com destaque no mundo cultural, nos romances, filmes e novelas. Merece também relevo a figura de Chico Xavier, que não apenas nacionalizou o perfil do kardecismo, integrando-o ao ethos nacional,  como também aproximou-o do catolicismo popular.[13]

            No âmbito das religiões afro-brasileira, em particular no candomblé, a beleza da “dança dos deuses”, que proporciona um encontro fabuloso entre os fiéis e seus orixás, produzindo uma profunda ressignificação do sujeito, uma intensificação de sua personalidade, envolvida e penetrada pela presença dos deuses, que tomam o corpo dos fiéis e provocam o encontro festivo do céu e da terra. Como sublinha Pierre Verger, a baiana deixa de ser uma entre milhares de outras para se transformar numa “rainha”. Ou na bela reflexão de Roger Bastide:

“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estimas  desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria. Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão. Eis presentes aqui os orixás, saudando os tambores, fazendo icá ou debalé diante dos sacerdotes supremos. Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada”.[14]

                  Podemos, em síntese, sinalizar que os caminhos que levam ao Mistério no Brasil são pontuados por tessituras diversificadas: o que importa é alargar as cadeias de proteção e a malhas da plausibilidade. O brasileiro tem essa artimanha peculiar de “sintetizar, relacionar e conciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança”.[15] E para levar a vida com coragem, “muita religião”. E os recursos da fé são utilizados para driblar as ameaças do Demo. Particularmente no âmbito popular, vive-se a presença do divino e do milagre com muita força e intensidade: “Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”.[16]

De forma muito distinta das regras tecidas pela sociologia oficial, no campo religioso brasileiro, não há campos opostos que dividem o sagrado e o profano: “A religião popular transgride a regra e incorpora os dois domínios em um só, dentro de um mesmo sistema, para fazer, aí então, momentos rituais de circulação da comunidade de devotos entre um e outro, às vezes dentro de um mesmo rito, às vezes ao longo de uma sequência deles”.[17]

Retomando o sincretismo

Em âmbito religioso, o sincretismo vem compreendido como uma fusão singular de passos religiosos heterogêneos, ou mesmo como uma contaminação de uma religião dominante estabelecida por elementos estranhos advindos de uma outra tradição. Essa visão pejorativa é a que tem muitas vezes prevalecido na interpretação do fenômeno. Trata-se de uma visão depreciativa do sincretismo, entendido como mistura, confusão ou degradação.

É uma perspectiva que se firma nesse momento particular de intensificação identitária ou mesmo de irradiação fundamentalista. Uma nítida rejeição de qualquer possibilidade de intercâmbio ou interação entre mundos religiosos distintos. É o que ocorreu, por exemplo, no campo católico durante o pontificado de João Paulo II, com a presença do cardeal Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). Na carta da CDF aos bispos da igreja católica acerca de aspectos da meditação cristã, a reticência ao sincretismo vem nitidamente colocada, sobretudo no âmbito das experiências que vinculam a meditação cristã com outras formas de meditação conexas com as religiões orientais. O que para alguns poderia ser visto como um enriquecimento da herança tradicional, é percebido como um “pernicioso sincretismo”.[18]

Com o precioso aporte das ciências sociais, a questão do sincretismo vem hoje situada numa perspectiva bem distinta. Não há como pensar as civilizações, culturas ou religiões num quadro cerrado ou estanque, deslocadas das distintas correntes que animam a história humana. A história é tecida por redes, trocas e fertilizações mútuas. Na verdade, “as culturas são em geral mais naturalmente elas mesmas quando entram em parceria com outra”.[19] Isto também vale para as religiões. Nada mais ilusório que os monolitismos religiosos. Os blocos nunca são estanques. No âmbito existencial e vital o que se verifica são pontes e relações, contínuas “transferências de sentido”.

Com base no pensamento de Lévi-Strauss, o antropólogo Pierre Sanchis assinalou com pertinência que o fenômeno do sincretismo não é simplesmente a expressão de misturas ou paralelismos, e muito menos de degradações, mas um dado constante no desenrolar das culturas e religiões em seu processo de interação. Trata-se de um fenômeno universal, que acompanha os grupos humanos em seu processo relacional. Ou seja, “a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”.[20]  Nessa ocular, o sincretismo vem captado como um fenômeno de redefinição contínua da identidade. Não há religiões ou culturas puras, desconectadas do campo real. O contato ou confronto com outras identidades favorece o precioso intercâmbio e incorporação dos potenciais simbólicos diferenciados e enriquecedores.

A avaliação do sincretismo depende também do lugar social de onde a questão vem observada. Ele permite certas percepções, bem como interdita outras. Caso o observador se situe “no lugar beneficiado do catolicismo, entendido como uma grandeza feita, constituída e fechada, então tende a considerar o sincretismo como uma ameaça que importa evitar”. Se o lugar é outro, mais perto da realidade vivida, a ocular vem modificada, com a possibilidade de percepção da vitalidade de uma identidade nutrida e enriquecida por novas e inusitadas sínteses.[21] Assim como as outras tradições religiosas, o catolicismo vem igualmente permeado de sincretizações ao longo de toda a sua trajetória.

O caso brasileiro é exemplar para expressar a dinâmica vital do sincretismo religioso. O que para muitos é sinal de estranheza ou superstição, é vivenciado como um modo preciso de ampliar as cadeias de proteção.[22] A experiência religiosa, com o aporte da tradição popular, vem redimensionada, com a presença de um “sagrado que irrompe no mundo de muitas formas e por muitas mediações, assumindo expressões múltiplas e diversificadas para além das fronteiras das religiões institucionalizadas”.[23] O catolicismo em particular ganha um vestimento plural, bem distinto do que ocorre em outras partes do mundo. Esse campo plural vem celebrado nos romances, filmes, novelas e enredos carnavalescos. É um traço peculiar do campo religioso brasileiro. Mesmo reconhecendo aí o impacto recente de tendências anti-sincréticas, envolvendo segmentos do mundo pentecostal e do candomblé[24], o que se verifica dominantemente é o recurso à pluralização. É um traço tropical que perdura, de contínua flexibilização.

A mudança de perspectiva reflete-se também no âmbito da reflexão teológica, favorecida pelos desdobramentos singulares no campo do diálogo inter-religioso e dos debates em torno da inculturação. Há hoje uma nova sensibilidade para acolher a positividade de uma dupla pertença, a partir de experiências precisas e novidadeiras no âmbito do diálogo das religiões. Isto tem ocorrido singularmente em experiências espirituais, de oração e vida contemplativa, bem como de disciplina ascética, com combinações criativas e empenhativas.[25]

Há quem reconheça que um momento novo se apresenta nesse campo da acolhida plural, revelando uma nova faceta do cristianismo, ou mesmo de uma “figura inédita do ser cristão”.[26]  A experiência de deixar-se hospedar pelo outro provoca mudanças substantivas no mundo da identidade, revelando traços inovadores no modo de ser religioso. Ensaios concretos no âmbito da inculturação, sobretudo nos países do terceiro mundo, apontam para um horizonte revelador. O contato do evangelizador com outras culturas favorece não apenas a expressão distinta de uma mesma mensagem, mas a captação de traços originais que enriquecem e ampliam a identidade. O outro e sua cultura ajudam a “sublinhar e desenvolver aspectos inéditos da verdade”.[27] Como mostrou com acerto Jacques Dupuis,

Há algo que os cristãos poderão ganhar por meio do diálogo. Tirarão dele um duplo benefício. Pela experiência e o testemunho alheio, serão capazes de descobrir com mais profundidade certos aspectos, certas dimensões do mistério divino, que haviam percebido com menor clareza e que foram comunicados com menos clareza pela tradição cristã. Concomitantemente, ganharão uma purificação da própria fé”.[28]


(Publicado na revista Spiritus (edição francesa) n. 229, décembre 2017, p. 455-465)



[1] Para uma apresentação desses dados cf. Faustino Teixeira. O Censo de 2010 e as religiões no Brasil: esboço de apresentação. In: ____. & Renata Menezes (Orgs). Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 17-35.
[2] Pierre Sanchis. Religiões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro. In: ____. (Org.). Fiéis & cidadãos. Percursos do sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 18.
[3] Pierre Sanchis. Introdução. In: ____. (Org.). Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992, p. 33.
[4] Pierre Sanchis. Prefácio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Religiões em movimento, p. 13-14.
[5] João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 15.
[6] Roberto DaMatta. A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 151.
[7] Pierre Sanchis. Religiões, religião... p. 26.
[8] Ibidem, p. 27; Gilberto Velho. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 53-54; José Jorge de Carvalho. Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In: Maria Clara L. Bingemer (Org). O impacto da modernidade sobre a religião. São Paulo: Loyola, 1992, p. 146.
[9] Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 121.
[10] Francisco Régis Lopes Ramos. O meio do mundo: território sagrado em Juazeiro do Norte. Fortaleza: UFC, 2012, p. 187.
[11] Ronaldo de Almeida. A guerra das possessões. In: Ari Pedro Oro; André Corten; Jean-Pierre Dozon (Orgs). Igreja universal do reino de Deus. Os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 340-341.
[12] Eliane Martins de Oliveira. O mergulho no Espírito de Deus: interfaces entre catolicismo carismático e a Nova Era. Religião & Sociedade, v. 24, n. 1, 2004, p. 85-112; Carlos Steil. Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do catolicismo? Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre. Religião & Sociedade, v. 24, n. 1, p. 11-36.
[13] Sandra Jacqueline Stoll. Espiritismo à brasileira. São Paulo: Edusp/Orion, 2004.
[14] Roger Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
[15] Roberto DaMatta. O que faz o brasil Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 121.
[16] João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas, p. 21.
[17] Carlos Rodrigues Brandão. Sacerdotes de viola. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 152.
[18] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé (CDF). Alguns aspectos da meditaço﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽a meditaçum um enriquecimento da herança tradicionaler chama a atenção cristã. Petrópolis: Vozes, 1990 (Documentos Pontifícios, 233).
[19] Edward Said. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 330.
[20] Pierre Sanchis. Pra não dizer que não falei de sincretismo. In: Comunicações do ISER, n. 45, Ano 13, 1994, p. 7 (A dança dos sincretismos).
[21] Leonardo Boff. Igreja: carisma e poder. São Paulo: Ática, 1994, p. 158.
[22] Roberto DaMatta. O que faz o brasil Brasil, p. 115.
[23] Carlos Alberto Steil. Catolicismo e cultura. In: VALLA, Victor Vincent (Org). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 32.
[24] Pierre Sanchis. Religiões, religião..., p. 28-29.
[25] Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni. Brescia: Queriniana, 2001, 426; Claude Geffré. Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin Michel, 1999, p. 242; Michael Amaladoss. La double appatenance religieuse. In: Vivre de plusieurs religions. Promesse ou illusion? Paris: Les Éditions Ouvrières, 2000, p.  51.
[26] Claude Geffré. Double appartenance et originalité du christianisme. In: Dennis Gira; Jacques Scheuer (Eds).  Vivre de plusieurs religions, p. 134.
[27] Michael Amaladoss. Théologie indienne. Etudes, n. 3783, mars 1993, p. 342.
[28] Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 521

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O caminho da mística: Angelus Silesius

O caminho da mística: Angelus Silesius

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF


            O grande estudioso francês, Michel de Certeau, avança uma hipótese interessante para abordar a mística cristã nos séculos XVI e XVII. Para ele a reflexão recorrente gira em torno de uma “perda”. É em torno de uma “ausência” que as produções se firmam nesse campo, pontuadas igualmente pela dinâmica do “desejo”. Citando Marguerite Duras, Certeau assinala que a literatura então produzida abre caminho a quem “busca uma indicação para perder-se” e indaga “como não retornar”[1]. Por essa veredas passa também a reflexão singular de Angelus Silesius (1624-1677). O título de sua obra fundamental aventa essa perspectiva de buscador, de peregrino, errante ou sobretudo caminhante (Wandersmann).

            Angelus Silesius foi um buscador especial, um “artista de rara essência”, uma “tenda errante” para Deus, de uma profundidade única, que encantou filósofos como Heidegger, que nele via alguém com “extrema precisão e profundidade de pensamento”[2]. Era um místico habitado por uma sede infinita e pela força do amor, sendo movido unicamente pelos mistérios e enigmas do “mar incriado”. Para explicar esse traço de sua busca existencial, pode-se recorrer ao grande padre capadócio, Gregório de Nissa, que foi dos primeiros místicos cristãos a falar nessa sede insaciável, nessa tensão nunca resolvida rumo ao infinito: a epéktasis. Para esse místico do IV século, em homilia sobre o Cântico dos Cânticos, há algo de insaciável na alma em sua busca de Deus: quanto mais ela se preenche da beleza do Mistério, tanto mais arde nela a tônica do desejo[3].

Passos Biográficos

            O nome verdadeiro de Angelus Silesius é Johannes Scheffler, que nasceu na Breslávia, capital da Silésia, em 1624, no mesmo ano em que faleceu o místico e teósofo luterano Jacob Böhme. Era o primogênito de três irmãos, e seus pais – Stanislaus Scheffler e María Magdalena Hennemann – tinham significativa diferença de idade. A região em que nasceu, a Silesia, tinha a marca do protestantismo, embora sua anexação ao Império austríaco, de profissão católica, tenha suscitado sua severa segregação. O período em que nasceu Johannes era bem conturbado, com uma constante presença de guerras, em particular a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618; mas também da peste, que assolou a região, dizimando aproximadamente um terço de sua população,  envolvendo cerca de 13.230 mortos.

            O pai de Johannes, um nobre polaco, morre em 1637, quando o garoto tinha apenas 12 anos, e dois anos depois perde também o menino sua mãe. São eventos que transformam a vida da família, deixando órfãos três irmãos, que estarão em seguida sob os cuidados de familiares próximos. O que os biógrafos certificam é que Johannes vem inscrito em 1639 no tradicional Elizabeth Gymnasium, em Breslau, e ali desponta seu gosto pela poesia no dinâmico processo de sua formação literária e linguística. Neste período nasce também uma relação de proximidade com um dos professores, Cristoph Köler, que exercerá sobre ele um importante influxo.

            O prosseguimento de seus estudos se dá na Universidade de Strasbourg, e seu interesse estava voltado para a medicina e o direito constitucional. Era um espaço universitário frequentado por jovens de famílias nobres do Leste Europeu. Sua permanência ali foi breve, e em setembro de 1644 já estava na Universidade de Leyden, na Holanda, dando continuidade aos estudos de medicina. Encontra na Holanda um clima espiritual diferente, de liberdade e tolerância religioso-filosófica, e num momento tão crucial de sua vida, de sedução e abertura. Busca ali um novo alimento espiritual, com novas leituras e interesses. É o momento em que toma contato com a reflexão de Jacob Böhme e desperta para o tema da mística. Da Holanda segue em setembro de 1647 para a Itália, matriculando-se na Universidade de Pádua, onde concluirá seus estudos de medicina em julho do ano seguinte. A presença na Itália significou para Johannes um contato mais vivo com o catolicismo, e ele mesmo reconhecerá depois o traço de sedução que a liturgia e a religiosidade popular exerceram sobre ele. As viagens deixam marcas no processo de espiritualização do jovem poeta.

            Em dezembro de 1648 regressa a Breslávia e ali assume a função de médico pessoal do duque de Öls, o luterano ortodoxo Sylvius Nimrod. Numa região marcada pela intolerância, Scheffler estabelece contato com um círculo literário de poetas e pensadores independentes do qual participava o seu antigo professor, Christoph Köler, e também outros escritores como Daniel Czepko e Abraham von Franckenberg, que terão sobre ele um importante influxo estético e espiritual. Esse círculo de pensadores, também conhecido como “Místicos da escola silesiana”, vem marcado pela influência de autores como Jacob Böhme, Tauler, Meister Eckhart, Matilde de Magdeburg, Valentin Weigel e Sebastian Frank.

            O contato com Abraham von Franckenberg (1593-1652) foi muito importante para Scheffler, em quem viu refletidas as indagações e preocupações existenciais e espirituais do período. Era também um conterrâneo da Silésia e cuidava da edição das obras de Jacob Böhme, sendo também seu biógrafo.  Vindo da aristocracia da Silésia, com formação luterana, esse autor acabou se indispondo com o clero local e teve que buscar outros espaços na Breslávia e Dantzig. Depois de uma longa peregrinação pela Europa, retoma seu caminho num pequeno povoado vizinho a Öls, vivendo sua busca espiritual de forma discreta com seu círculo de amigos. Nessa trajetória, pôde completar

“sua cultura mística e erudita com elementos da cosmologia copernicana, com comentários da cosmologia de Giordano Bruno (queimado como herege em Roma, em 1600) e com iniciações cabalísticas, alquímicas e herméticas. Esse sincretismo não abalou sua profunda religiosidade cristã, marcadamente sentimental, mas também ecumênica e ascética”[4].

            Abraham von Franckenberg, junto com outros nobres alemães, teve o papel de revelar uma outra dimensão à Reforma de Lutero, com toques esotéricos e espirituais. A sintonia de Scheffler com ele foi imediata. Para ambos a percepção do caminho espiritual passava necessariamente pela renúncia de si mesmo, à superficialidade do mundo criado e a entrega ao Amor infinito. Foi também por seu intermédio que Scheffler teve acesso às obras  de Paracelso, Valentin Weigel[5] e João da Cruz. Atribui-se também a ele outro influxo sobre Johannes: o de traduzir as intuições espirituais em concisos epigramas alexandrinos[6].

            A relação que se estabelece entre essas duas “raras personalidades”, Abraham von Franckenberg e Johannes Scheffler, foi muito intensa mas breve. Eles se conhecem em 1650, mas dois anos depois Franckenberg falece, deixando seu legado ao amigo[7]. Após a morte do amigo, Scheffler demite-se do cargo de médico pessoal da corte do duque de Öls. Essa decisão foi também provocada pelas tensões com o luteranismo que se acentuavam, em particular com o pregador luterano da corte, Christoph Freytag. Em razão de sua censura, Scheffler não conseguiu a autorização para publicar uma antologia   de textos místicos, que continha a presença de autores católicos e outros escritores suspeitos de panteísmo. Tudo isso acaba contribuindo para o acirramento das tensões, acelerando a decisão de Scheffler em deixar o luteranismo. Ele retorna a Breslau e ali mergulha na leitura de alguns místicos, entre os quais São Boaventura (Itinerário da alma para Deus) e Ruysbroeck (Espelho da salvação eterna). Sua conversão ao catolicismo acontece em junho de 1653, quando então assume o nome de Angelus Silesius. Na sequência de sua decisão publica um escrito apologético justificando sua conversão ao catolicismo, que foi logo traduzido ao latim.

            Os tradicionais epigramas de Angelus Silesius, que vão compor o Peregrino Querubínico, ganham sua primeira edição em 1657. A obra continha na ocasião cinco livros, aos quais foi acrescentado um último em 1675, quando sai a segunda edição. Esta obra foi na ocasião objeto de muita controvérsia, sendo o poeta e místico atacado não só por jesuítas, mas também pelo núcleo luterano e pela corte de Öls. Mas segue em frente com sua perspectiva reflexiva e sua dinâmica espiritual, vindo a ser ordenar sacerdote em maio de 1661, com a idade de trinta e sete anos. Juntamente com seus tradicionais epigramas, que ganham duas outras edições, publica também outros textos como os escritos polêmicos anti-luteranos. O período final de sua vida foi marcado por progressivo despojamento, doando parte substantiva de seus bens para os pobres. Passou o final de sua vida no convento de São Matias da Breslávia, falecendo no dia 9 de junho de 1677.
           
O Peregrino Querubínico

            A tradição mística da Alemanha no século XVII é marcada por certa “flama de agonia”. É um período de muita inquietação, com a presença ameaçadora das guerras e também das doenças e da morte. É um tempo de muitos riscos e perigos, onde a dinâmica implacável da finitude faz sua morada. Muitos são provocados à resignação diante do imponderável, num século que guarda ainda as marcas do religioso, mas num clima que suscita a consciência cada vez mais viva “do nada do homem diante de Deus”[8].

            Na visão de Hermann Hesse, o Peregrino Querubínico pertence “às mais sublimes flores da religiosidade e da poesia alemãs”[9]. O título da obra evoca a ideia de caminhada, peregrinação, viagem. A expressão alemã Wandersmann guarda esse significado. Trata-se do místico como um buscador, um errante que pontua sua andança por singular inquietude espiritual. Retoma-se aqui a imagem de uma “falta” de uma insatisfação que gera uma dinâmica que impulsiona o sedento adiante[10].

            Trata-se de uma obra com epigramas concisos e máximas espirituais voltadas para a experiência contemplativa. A composição da obra passou por três períodos. A primeira edição, publicada em julho de 1657 – com o título de Aforismos espirituais e sentenças rimadas – continha cinco livros, sendo que o primeiro deles foi redigido em quatro dias. Ao explicar a razão que motivou a redação de seu primeiro livro, Silesius adverte que ele nasceu sem uma precisa deliberação ou penosa reflexão, mas “a partir da fonte de todo bem”, com o intuito de animar o leitor na sua busca do Deus escondido[11]. A segunda edição da obra foi publicada dezoito anos mais tarde, em 1675, já com o título definitivo: Cherubinischer Wandersmann (Peregrino Querubínico). Como novidade, o acréscimo de um sexto livro. Houve ainda uma terceira edição, em 1676, um ano antes da morte do místico.

            A obra de Silesius vem marcada por influências importantes, como as de São Boaventura, Ruysbroeck, Tauler, Suso, Böhme e sem dúvida Eckhart. Este último, como indica Vannini, talvez tenha sido uma das presenças mais vivas na mística silesiana, embora como “presença subterrânea” em razão das suspeitas que pairavam sobre sua obra, sobretudo depois da bula  In agro dominico (1329 – DzH 950-980). Os estudiosos do tema sinalizam que a presença do frade dominicano na mística protestante alemã é bem mais viva do que se imagina, mesmo na ausência de uma referência mais explícita às suas obras, por razões do clima de suspeição vigente. A transmissão de seu pensamento ocorria por outras cadeias, como pelas obras de Johannes Tauler (1300-1361), pela reflexão da Theologia Deutsch (do anônimo de Frankfurt – sec. XVI) e Nicolau de Cusa (1401-1464).[12]
           
O poeta e o místico

            Ao refletir sobre o Peregrino Querubínico de Silesius o que salta aos olhos é o traço de enlaçamento de sua dimensão poética e mística. É uma obra espiritual que guarda um “enorme valor poético”, compondo-se de dísticos que “cantam com extraordinária beleza uma profunda experiência mística”.[13] O formato escolhido, de epigramas em dísticos rimados, revela a força e a intuição de “um artista de rara essência” (Baruzi). Num mundo teológico de tratados sólidos e muitas vezes carentes de vida, Silesius insufla em sua obra leveza e gratuidade, mantendo sempre acesa a chama de uma reserva inacessível. Não estamos diante de uma poesia fácil, mas de uma alta reflexão que margeia a “franja indizível do real”. É uma poesia

“que requer tudo do leitor: reflexão, sensibilidade, vivência mística. Ela pede muito e, em troca, dá muito: alargamento da consciência, verdadeira embriaguez e revelação da riqueza infinita do real. A rosa, um verme qualquer, as estrelas, o canto dos pássaros, tudo é veículo de graça e salvação e símile da própria alma que contempla”[14].

                  Na herança espiritual de Eckhart, Silesius concentra e alarga a perspectiva paulina abordada na carta aos Gálatas (Gl 2,20), onde o traço cristocêntrico é vivo, mas avança por caminhos novidadeiros de uma via negativa que reforça simultaneamente o dado da celebração da alma enquanto palco do nascimento de Deus. É uma mística pontuada pela transgressividade. Os “excessos” e paradoxos estão por toda parte, como caminho encontrado por Silesius para traduzir sua linguagem, o que aliás é recorrente entre os místicos alemães. Esta novidade linguística, sem dúvida, suscita reações, pois envolve um modum loquendi novidadeiro e perturbador. Mas é o meio encontrado para cobrir a carência de uma gramática teológica incapaz de traduzir os sinais de uma experiência que habita e convoca o mundo interior. Como sinaliza Amador Vega, “a experiência contemplativa do místico é a melhor garantia de que sua atividade especulativa, artística, escriturária, responde aos princípios perficientes que desde a ´experiência fática da vida` (Heidegger) ele não pode receber e transmitir senão de forma excessiva”[15].

            É em razão da presença de tais paradoxos em sua reflexão que Silesius teve que se justificar no preâmbulo escrito para o leitor:

“É preciso saber de uma vez por todas que nunca foi pensamento do autor que a alma humana deva ou possa perder a própria natureza criada e, com o transformar-se em Deus, tornar-se Deus ou a sua essência incriada: isso não pode acontecer por toda a eternidade. De fato, embora Deus seja onipotente, ele não pode (e se o fizesse não seria Deus) fazer com que uma criatura por natureza e essência seja Deus”[16].

            Diante das reações críticas, que vislumbravam em sua reflexão traços de ateísmo ou panteísmo, Silesius teve que se defender. Tudo relacionado com a sua forma singular de abordar a união da alma com Deus e os passos de sua transformação. Para o místico, o que estava em questão era uma dificuldade precisa na captação dos “raros paradoxos” de sua reflexão e das “argumentações elevadíssimas” levadas por ele a cabo. Como mostrou Jacques Maritain, não se pode atribuir à mística de Silesius a acusação de panteísmo, pois as palavras que se irradiam de seus dísticos devem ser entendidas na “ordem do amor”, configurando assim uma linguagem que não pode ser enquadrada numa perspectiva ontológica. Para ele, a contemplação é antes de tudo “um conhecimento experimental do amor e da união”[17].

Traços de sua mística

            Entre os passos essenciais sublinhados por Silesius no caminho da busca espiritual está o desapego e o despojamento. É um tema recorrente no Peregrino Querubínico. A noção de Abegescheidenheit, entendida como desprendimento, vem também indicada por Silesius como condição para a liberdade e a fruição do mistério. Trata-se de um “recolhimento” de si para lidar com as coisas de forma mais livre e serena. O acento nesta perspectiva indica como Silesius foi dentre os místicos modernos aquele que melhor compreendeu as intuições eckhartianas[18].

            “Os santos tanto mais se embriagam pela divindade de Deus
                  Quanto mais neles se perdem e se afundam” (PQ I, 210)

                  Para esse mergulho em Deus é necessário vencer a barreira do eu. Quando se rompe o egocentrismo o mundo pode ser admirado com os olhos de Deus. Mas há que lutar contra esse inimigo mais duro, e “que mais lentamente se vence” (PQ III,233). Mas quando se supera essa barreira, o coração “recebe Deus” e diante dele “se abre como a rosa” (PQ III, 87).

                  Outro obstáculo no caminho espiritual é o apego e a fixação nas mediações. São tais vínculos que dificultam o acesso ao “trono de Deus” (PQ I, 143). O místico silesiano ousa mais alto:

            “Fora com as mediações! Se devo olhar a minha luz,
                  Nenhum muro deve se levantar diante do meu olhar” (PQ II, 43)

                  O desapego é também para Silesios o modo de “capturar” Deus (PQ II, 92), mas isso requer uma dinâmica espiritual de “alargamento” do coração (PQ II, 106). Mediante esse destacamento de si, o sujeito pode operar passivamente em Deus, ou como indica Silesius, com uma expressão típica da sua mística, “sofrer Deus” (Gott Leiden) e “nele repousar” (PQ V, 207; PQ IV, 197).

            O destino do humano, sublinha Silesius, é naufragar no Mar da Divindade (PQ IV, 139). Para ele, um bem-aventurado naufrágio. Para os que trabalham o tema da mística nas distintas tradições religiosas, o Mar ganha uma simbolização peculiar, enquanto sinal fundamental da Divindade. O tema da união da alma com Deus, como a gota no Mar, vem retomado com frequência na obra de Silesius. Ele fala em “submergir” o eu na Divindade (PQ I,6) , em morrer “antes de morrer” (PQ IV, 77), em “morte mais ditosa” (PQ 1, 28). Tudo para expressar esse desapego essencial. Enquanto o anjo contempla a Deus “com olhos serenos”, aquele que vive o despojamento pode ainda mais, abandonando-se inteiramente a Ele (PQ I, 164). Esse abandono em Deus faz parte do anseio mais sagrado do humano, pois traduz o encontro com sua razão de ser:

            “Deus é meu espírito, meu sangue, carne e ossos:
                  Como então posso não ser todo nele transformado?” (PQ I, 216).

                  Na visão de Silesius, não há nada mais belo que a união em uníssono do coração com Deus (PQ IV, 143), é o máximo que o ser humano pode almejar: “o céu mil vezes céu” (PQ II, 179). Algo deve morrer na ipseidade (Ichheit) do ser humano para que enfim surja o homem essencial, quando então o humano se recolhe no divino e o divino se recolhe no humano (PQ I,13). Para tanto se requer humildade, outra grande virtude apontada por Silesius. Ela vem identificada por ele como “o mais curto caminho para a verdadeira santidade” (PQ III, 126). A impermanência e a contingência são traços que delineiam a presença do humano no tempo e a percepção viva disso faz parte integrante do caminho espiritual. A criatura, diz Silesius, é simplesmente “um ponto indefeso” (PQ I, 78)[19].

            Talvez um dos núcleos substantivos da mística de Silesius diz respeito a esse retorno ao humano “essencial”. Com base na segunda carta aos Coríntios, que trata da tensão entre a letra e o espírito (II Cor 3,6), ele busca recuperar o significado mais profundo de uma Palavra que brota da alma humana mesma. Diz Silesius:

            “A Escritura é apenas Escritura! Conforta-me a essência[20]
                  E que Deus fale em mim a Palavra da eternidade” (PQ II, 137)[21]

            Silesius estabelece neste dístico uma tensão entre a oratio divina (a palavra) e a oratio do crente, assinalando que para além da “positividade opaca” da Escritura existe o traço da “essencialidade” da Palavra de Deus que opera dentro da alma[22]. Esse é o desafio que então se abre, reavivando o espírito de Böhme:

            “Homem, torna-te essencial! Pois quando o mundo passa,
                  Passa também o acidente, mas a essência permanece” (PQ II, 30)

            O que é acidental e aparente não permanece, mas somente o que é “essencial e sem cores” (PQ I, 274). O místico silesiano aponta assim a meta de seu caminho místico. E tornar ao que é essencial é também repousar em Deus, cultivando um “coração puro” (PQ III, 145). Para tanto, não se exige uma saída de si, como se o céu estivesse alhures, mas um adentrar-se nas camadas interiores, onde habita o Mistério:

                  “Pára! Aonde corres? O céu está em ti!
                  Se procuras Deus noutro lugar, sempre mais o perdes” (PQ I, 82)

                  Junto com o cultivo da pureza, a busca da virtude do recolhimento silencioso, da escuta atenta do canto do Mistério, que é a “eterna quietude” (PQ I,76). Não há que invocar a Deus, pois a fonte já jorra no mundo interior (PQ I, 55). A virtude maior reside neste silenciamento, na suspensão das palavras e na abertura disponível para adentrar-se na modalidade do silêncio. São tantos outros dísticos a apontar esse desafio:

            “Se queres em ti ouvir a Palavra eterna
            Antes de tudo deve privar-te de ouvir” (PQ I, 85)

            “Cala-te, caro, cala-te! Se sabes calar-te inteiro
            Deus te oferecerá mais dons do que desejas” (PQ II, 8)

            Para além das palavras, basta um único suspiro (PQ II, 64), como indicado na piedade barroca. O acesso ao que é essencial exige a interrupção da linguagem (PQ II, 68). Há, portanto, um “além da linguagem” tão bem captado por Silesius, e retomado bem posteriormente por filósofos como Wittgenstein, que em seu clássico Tractatus converge na mística. Como indica Pierre Hadot, “a última palavra do Tractatus é um chamado ao silêncio: ´A respeito do que não se pode falar, deve-se calar`; chamado que só tem nobreza porque Wittgenstein nos deixou entrever antes o além da linguagem a respeito do qual é preciso calar”[23].

            Toda essa turbulência mística de Silesius passa pela dinâmica do esvaziamento, mas não se fixa nela, pois suscita fundamentalmente um exercício de virtualidade amorosa. Há uma virtude essencial e esta passa pela operosidade do amor, mas de um amor que brota da experiência de quem viu gerar o Amado no íntimo de seu ser. Não são as obras que tornam alguém virtuoso, lembra Silesius, mas são de virtuosos que nascem as verdadeiras virtudes (PQ I, 54). É o fogo que faz irradiar o calor e não o contrário, bem como é a árvore boa que produz frutos bons. Há portanto que cuidar da árvore, para que ela possa dar bons frutos. Mas estes são essenciais. Como mostra Martín Velasco, “o amor é uma das principais inquietudes místicas de Silesius”[24]. E alguns dísticos são bem explícitos a este propósito:

            “O amor é nosso Deus! Tudo vive de amor:
                  Como seria feliz quem nele permanecesse” (PQ I, 70)

            “A sabedoria contempla Deus, o amor o beija:
                  Ah, por que não sou apenas amor e sabedoria” (PQ III, 196)

                  “Estar unido com Deus, gozando o seu beijo,
                  É melhor do que saber muito sem o seu amor” (PQ III, 156)

                  “Deus diz só uma coisa a mim, a ti e a todos:
                  Ama! Se o fazemos por ele devemos agradá-lo” (PQ II, 228)

                  Assim como para João da Cruz e Teresa de Ávila, também para Silésius a prática amorosa ocorre como desdobramento natural da experiência interior. E este místico traduz essa realidade em singular forma poética:

            “A chuva não cai para si, nem para si brilha o sol:
            Também não foste criado para ti, mas para os outros” (PQ IV, 186)

            Na mística alemã, o tema do primado conferido à operosidade amorosa passa por Eckhart e Tauler, e ganha convergência na reflexão de Silesius. Num dos dísticos do Peregrino Querubínico afirma-se que aquele que busca “sentir-se junto à fonte da vida, deve antes aqui transpirar a própria sede” (PQ I, 158).

Pelos caminhos da gratuidade

            Um dos dísticos mais famosos da obra de Angelus Silesius é o que trata justamente da gratuidade:


            “A rosa é sem porque: floresce porque floresce.
            Não cuida de si mesma nem pede que olhes para ela” (PQ I, 289)

            A questão da gratuidade percorre toda a história da mística, estando presente tanto no Oriente como no Ocidente. Entre os ocidentais, o tema do “sem porque” aparece quiçá pela primeira vez em Beatriz de Nazaré, uma cisterciense que faleceu em 1268. Sua reflexão talvez refletisse um tema vivo em Bernardo de Claraval (1090-1153), num de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos: “Amo quia amo, amo ut amem” (Amo porque amo, amo por amar)[25].  O tema reaparece com a beguina Marguerite Porete, em sua clássica obra sobre O espelho das almas simples ( sec. XIII - cap. 81, 25-30), indicando como a expressão “sem porque” faz escola na literatura espiritual da Idade Média[26]. Com Meister Eckhart e sua escola, o tema ganhar lugar central, como pode ser observado no Sermão Alemão 5b:

“A partir desse fundo íntimo, deves operar todas as tuas obras, sem porque. Em verdade eu digo: Enquanto fazes tuas obras por causa do reino dos céus ou por causa de Deus ou por causa de tua bem-aventurança eterna, portanto, a partir de fora, não estás verdadeiramente bem ajustado acerca de ti mesmo”[27].

                  O tema do “sem porque” (Ohne Warum) será retomado por Silesius no século XVII em seu dístico sobre a rosa, e vai ganhar uma repercussão significativa. Mesmo sem citar explicitamente Eckhart, percebe-se a influência desse místico na reflexão sobre a questão[28]. Repercutindo a temática, Martin Heidegger vai se dedicar ao assunto numa de suas aulas ministradas no semestre invernal da Universidade de Freiburg, em 1955/1956, publicada na obra O princípio do fundamento (Der Satz vom Grund). Heidegger busca sublinhar o traço de ligação da reflexão de Silesius com a abordagem do desapego eckhartiano. O objetivo de Heidegger é contrapor-se à posição de Leibniz (1646-1716) em torno do princípio do fundamento[29]. Enquanto Leibniz firma-se na posição racionalista que defende rigorosamente que “nada é sem fundamento”, Heidegger lança uma proposta de um “pensar meditante” para além de um “pensar calculante”[30]. Ele acredita ser possível escapar ao empreendimento do princípio da razão assim como defendido até então e encontra em Silesius um “contra canto do mundo moderno”. Assinala ainda que o caminho indicado por Silesius é de uma “extrema precisão”. Ao sublinhar que “a rosa é sem porque”, Silesius avança para um caminho diverso: “Este aparente nada-dizente ´ela floresce, porque ela floresce` diz propriamente tudo, ou seja, diz tudo o que há para dizer no seu próprio modo de não-dizer”[31].

            Na verdade, o dístico de Silésius não consiste num convite ao não pensar mas,  ao contrário, ao “extremo do pensar”. O que este místico faz é “sacudir a mente do leitor (a metanoia evangélica) com a intenção de que gire o seu olhar para esse novo espaço interior do eu (Ichnnenraum) onde todo excesso encontra seu nascimento”[32].  

             Assim como a “rosa é sem porque”, o Mistério de Deus também não se encaixa na armaduras da razão, mas escapa com sua gratuidade por todos os lados, brilhando em todos os poros. O evangelho de Mateus (MT 6, 26-28) fala nos pássaros do céu e nos lírios do campo, e indica o aprendizado que está ali. A força está no “indicativo”: “Olhai os pássaros!”. Esta simples presença já quebra o ensimesmamento do eu e abre a possibilidade para algo decisivo na vida[33]. É também o que alude Silesius num de seus dísticos:

            “Quem adorna os lírios? Quem alimenta os narcisos?
                  Então por que, meu cristão, preocupar-te tanto contigo?” (PQ I, 290)
                 
            A gratuidade é algo que toca a medula de Deus, e dar-se conta disso é um desafio essencial para quem busca acessar a narrativa mística. Num de seus dísticos do Peregrino Querubínico, Silesius assinala:

            “Deus se dá sem medida: quanto mais o desejamos,
Tanto mais e ainda mais ele se oferece e se concede” (PQ III, 70)

                  Essa presença e generosidade do Mistério percorre a história da mística ocidental de forma fabulosa, como por exemplo numa passagem singela do livro de Marguerite Porete onde ela trata o tema do “cuidado de Deus”, ao abordar os passos de gentileza do Senhor na vida de Maria. E assinala que a sua fala vem melhor captada quando sintonizada com a sensibilidade de uma criança:

“Quando o sábio trabalhador cultivou e cavou sua terra e dentro dela colocou o trigo,  todo o seu poder não pode mais ajudar. É preciso que deixe o resto ao cuidado de Deus, se quer ter um bom resultado em seu trabalho. Por si ele não pode fazer mais nada, e isso podeis ver pelo conhecimento da natureza”[34].

Deus e o Humano: uma nova mirada
                 
                 
Um tema muito recorrente no Peregrino Querubínico, e que tem suas raízes na mística de Eckhart[35] e Tauler[36], é o nascimento de Deus na alma. Uma questão que só consegue ser captada na sua integralidade quando se parte da percepção viva do despojamento: do humano que renuncia a si mesmo e toca sua dimensão profunda da liberdade (ledig) e do vazio; do humano que se dá conta da riqueza que habita a sua própria casa, entendida como “fonte” que mana sem cessar (PQ I, 300). Ali no fundo, em seu coração, entendido como o cristal mais puro, reside um “ponto virgem”, precioso e  luminoso aos olhos de Deus, que favorece uma ocular muito especial (PQ I,1; II, 24, 35).

            Gerar é abrir espaço para Deus no fundo da alma. O Verbo eterno vem continuamente gerado onde o despojamento acontece (PQ III, 188). Daí a ênfase assinalada sobre a “virgindade”, enquanto expressão de liberdade e desprendimento. Mas uma virgindade que suscite frutos:

            “Deus ama a virgindade pelos seus doces frutos,
                  E sem eles não a deixa vir à sua presença” (PQ III, 158).

            Trata-se de um tema presente na mística de Eckhart, que quando fala em “virgem” quer assinalar esse traço de liberdade das “imagens estranhas”. Mas indica ainda que não basta ao humano ser virgem, mas que é necessário também ser “mulher”, ou seja, fecundo, de modo a “frutificar a dádiva”[37].

            Esse mesmo Deus que vem gerado continuamente na alma, é o mesmo Deus que escapa radicalmente ao controle do humano. Trata-se de um mesmo Deus: aquele que brilha no fundo da alma, mas que foge a toda compreensão. Do Deus simultaneamente imanente e transcendente: “ubique et nusquam”, conforme uma clássica fórmula adotada por Eckhart. É um mistério que se anuncia na alma, mas que permanece absconditus:

            “Pensai: Deus está em todo lugar, o grande Jeová!
                  Todavia não está nem aqui nem lá nem em outro lugar” (PQ III, 217).

                  “Pára, meu Agostinho! Antes que sondes a Deus
                  O mar inteiro caberá num barquinho” (PQ IV, 22).

Em linha de continuidade com a teologia negativa de Eckhart, o místico silesiano fala de um Deus para além de Deus:

            “Onde é minha moradia? Onde nem eu nem tu estejamos.
                  Onde está meu fim último, ao qual devo chegar?
                  Lá onde nenhum fim se encontra. Então para onde me voltar?
                  Devo tender para além de Deus, para um deserto” (PQ I, 7).

                  “Esposa, se queres ver a face do Esposo,
Vá além de Deus e de tudo, e então o verás” (PQ V, 269).

            Para apreender esta singular noção de um “Deus para além de Deus” é necessário recorrer à distinção eckhartiana entre Deus (Got) e Deidade (Gotheit). Ao falar de Deus, Eckhart refere-se ao Deus das criaturas, ou seja, a como ele vem referido às criaturas. A Deidade, por sua vez, diz respeito ao Deus em si mesmo, para além de toda determinação[38]. Como indicou Bernard McGinn, esta distinção trata da “diferença entre ´Deus` que existe, aquele criado e adorado por suas criaturas e a misteriosa Deidade desconhecida, escondida, fonte e origem imóvel”[39]. Essa Deidade, “livre de todos os nomes” e despida “de todas as formas”, habita como uma centelha no fundo da alma[40]. Ali mostra todo o seu fulgor, enquanto força “florescente e verdejante”. De forma arrojada e ousada, Eckhart assinala que se Deus quiser olhar ali dentro naquele “´burgozinho` na alma”, deverá deixar fora todo “modo” e “propriedade”, e entrar desnudo, como “um e simples”[41].

            Há uma grande ousadia de Silesios, em sintonia com Eckhart,  ao anunciar esse salto para além de Deus, ou ainda esse destacar-se de Deus para abraçar o seu Mistério. Um tema que também já estava presente na mística de Marguerite Porete: “abandonar Deus por Deus”[42]. Firma-se assim a defesa de uma teologia negativa bem radical:

            “Deus é puro nada, o aqui e o agora não o tocam:
                  Quanto mais queres agarrá-lo, mas ele foge de ti” (PQ I, 25)[43].

                  Muito paradoxal esta busca do peregrino, onde o horizonte se revela como “nada”. Mesmo estando para além de todo além, esse Mistério se deixa habitar quando o sujeito rompe com sua mesmidade, deslocando a centralidade de seu eu para então ouvir o canto do Um[44]. Trata-se de uma teologia negativa ousada, sem dúvida, mas que não culmina no ateísmo, como alguns tendem a raciocinar. Isto em razão da coincidência que se dá entre a alma em seu fundo com o Nada supremo da Deidade[45].

            Em sua reflexão mística, Silesius busca pensar Deus não como Outro mas como Um. Ao enfatizar o traço da alteridade corre-se o risco de se cair na determinação, de pensar Deus como um objeto. Deus é aquele Uno que concede a verdadeira paz (PQ IV,12). O canto místico de Silesius é o canto da Unidade, para o escândalo de alguns teólogos como Karl Barth[46]. Diz num de seus dísticos:

            “O homem não obtém a perfeita felicidade
                  Antes que a unidade tenha engolido a alteridade” (PQ IV,10)

                  Assim como o místico sufi, Rûmî, dizia que venceu o Dois e seguia a cantar o Um, também Silesius retoma essa doce melodia unitiva, que requer a abertura e expansão do coração:

            “Tudo vem do Uno e ao Uno deve voltar
                  Se não quiser desdobrado e múltiplo ficar” (PQ V, 1).

                  “Não há saída que não seja por causa da entrada:
                  Meu coração se esvazia para que Deus possa enchê-lo” (PQ V, 14).

                  Deus, Mistério do Um, é também um abismo (Abgrund) profundo e inefável. Nada é suficiente para expressá-lo, nem mesmo a eternidade. Permanece sob reserva escatológica mesmo no céu. É algo que faz rememorar o clássico discurso proferido pela poupa na abertura da conferência dos pássaros, do grande místico persa Farid ud-din Attar (séc. XII):

“Temos um rei de verdade, que vive atrás das montanhas chamadas Kaf. Chama-se Simurgh e é o rei dos pássaros. Está perto de nos, mas nós estamos longe dele. O sítio que habita é inacessível, e nenhuma língua consegue pronunciar-lhe o nome. Diante dele pendem cem mil véus de luz e treva, e nos dois mundos ninguém tem o poder de disputar-lhe o reino (...). Não se manifesta abertamente nem mesmo no local de sua habitação, e a esta nenhum conhecimento e nenhuma inteligência podem chegar”[47].

                  Silesius retoma essa rica ideia, reiterando a inacessibilidade de Deus, e o desafio permanente de desconstrução do mundo subjetivo para que ele possa ser espaço nobre da presença deste Mistério:


            “Pensas poder dizer o nome de Deus no tempo?
                  Ele não é dito nem mesmo na eternidade” (PQ II,51).

            Nem mesmo no céu, adverte Silesius, marcado pela visio beatifica, Deus desveste-se de seus véus. E aqui no tempo, o que se pode captar desta riqueza é apenas uma parca alusão, como também assinalou o capadócio Gregrio﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽u o capadlusue se pode captar desta riqueza e da presença deste Mistafio permanente de desconstruçe e origem ima, mas ório de Nissa. O que se vê da “água infinita” que brota da fonte visível, é apenas uma pequena porção do que se encontra escondido sob a terra. Não se pode acessar “toda água”, mas do que dela se acessa no seu escorrer permanente pode-se aventar a riqueza de seu significado[48].

            A alma, enquanto abismo profundo, clama o abismo de Deus. E os dois abismos são marcados por singular permuta. Do enigma e imensidão destes dois abismos ressoa um eco avassalador e estupefacente:

                  “O abismo de minha alma chama sempre em alta voz
                  O abismo de Deus: dize-me, qual é o mais fundo?”  (PQ I, 68).

                  Ao abismo sem fundo da “Divindade nua” corresponde o abismo sem fundo da alma humana. E um abismo grita ao outro, como assinala o Salmo 42: “abyssus abyssum invocat”. E essa Divindade “bebe o leite da humanidade” (PQ III,11), e não se desgarra do humano em momento algum. Ao contrário, é uma Divindade que dignifica o humano e necessita do humano. Este é um dos traços mais instigantes do pensamento místico de Angelus Silesius: a relação de sincronia com o humano. Os dísticos a respeito são muito ricos e alvissareiros:

            “Sei que sem mim Deus não pode um momento viver:
                  Se eu nada me tornar, ele deve por certo morrer” (PQ I, 8).

                  “Sem mim Deus não pode criar um verme sequer!
                  Se não o salvo com Deus, ele portanto deve morrer” (PQ I, 96).

                  “Nada me parece elevado: a suprema coisa sou eu,
                  Pois até Deus, sem mim, é pouca coisa para si” (PQ I, 204).

                  Também dizia Eckhart num de seus sermões alemães que a Deidade não está isolada como uma mônada incomunicável, mas que ela necessita comunicar-se com os outros, pois do contrário não seria Deus[49]. Assinala também o lugar imprescindível do humano: “Se eu, porém, não fosse, também ´Deus` não seria. Que Deus é ´Deus`, disso sou eu a causa. Se eu não fosse, Deus não seria “Deus”[50].
                 
            Tanto ao falar da questão do nascimento de Deus na alma como ao falar do homem como imagem de Deus, Silesius avança firme numa perspectiva de profunda dignificação do humano. Capta-se aqui sinais vivos do tema da “deificação” tão cara aos padres gregos. A relação de Deus com a humanidade, não vem em momento algum desvalorizada, ou relegada a segundo plano, mas situada num âmbito de importância singular, da humanidade como imago Dei (imagem de Deus):

            “Homem, tudo te ama! Tudo te rodeia:
                  Tudo recorre a ti para chegar até Deus” (PQ I, 275).
                 
            O ser humano vem assim elevado à sua mais alta dignidade: é “a coisa suprema” (höchste Ding) (PQ I, 204)[51], dornado de grande nobreza, podendo já na terra ser “imperador” e “rei” (PQ IV, 146). O desafio, porém, é assumir e viver a condição de criança, para então poder pertencer ao Reino dos Céus, pois é algo que pertence aos pequenos (PQ I,253).

            Deus é antes de tudo um Mistério que maravilha, e todo aquele que Dele se aproxima com humildade participa da abundância de sua graça. Ela sempre flui, continuamente:

            “A face de Deus nos sacia: se visses sua luz,
                  Ficarias embriagado com tal visão” (PQ V, 353)
           
            “Se o teu coração é um vale Deus o inunda,
                  E com tal abundância que o faz transbordar” (PQ V, 357)

                  “A graça flui de Deus como do fogo o calor:
                  Se dele te aproximas, logo te cabe por direito” (PQ V, 361)

                  O humano guarda em si duas opções ou possibilidades. Pode escolher os “tormentos infernais” ou participar da alegria dos que estão no céu. É uma questão de escolha ou projeto de vida: “O que escolhes e queres, o terás em todo lugar” (PQ I, 145). O desafio maior está em buscar instalar o paraíso no mundo interior, pois se assim não ocorre não se alcança o almejado (PQ I, 295).

            O caminho perseguido pelo místico é sempre envolvido por nuvens e sombras, nunca é um percurso desbastado e tranquilo. E quanto mais se aproxima do enigma com a clareza do olhar, os pés permanecem vacilantes e os olhos nublados (PQ I,57). E como diz Silesius, os buscadores seguem seus tortuosos caminhos: quando se detêm perdem terreno, e quando avançam perdem-se a si mesmos (PQ I, 302)[52].
           
Lucchesi e Silesius

            O ensaio apresentado buscou indicar além do percurso biográfico de Angelus Silesius, alguns traços essenciais de sua perspectiva mística. Por opção metodológica, não se abordou no ensaio os dísticos traduzidos por Marco Lucchesi nesta obra, isto para poder garantir o impacto novidadeiro do contato do leitor com o trabalho realizado pelo poeta e amigo Marco Luchesse. Os dísticos citados no ensaio foram tomados de outras traduções, em particular as realizadas por Giovanna Fozzer, Marco Vannini, Ángel Darío Carrero e Ivo Storniolo.

            O exemplar trabalho de Marco Lucchesi nesta obra foi de traduzir 40 dísticos de Angelus Silesius, de sua obra O Peregrino Querubínico. Um trabalho extremamente cuidadoso, como em geral acontece com suas realizações nas traduções. A tarefa ocorreu por ocasião de seu pós-doutorado na Alemanha, nas cidades de Colônia e Basel, entre janeiro e fevereiro de 1994. Foi um período difícil na vida do poeta, carregado de pressentimentos, e um pouco depois sua mãe veio a falecer. Nesse período sombrio, de rigoroso inverno, os versos de Silésios vibravam como luzes de esperança num coração fragilizado. Eram como “fósforos na madrugada, como frágeis salva-vidas”. E o trabalho meticuloso e cuidadoso foi nascendo, ponto a ponto, quebrando as barreiras da solidão, anunciado a Paz Serena de Silesius. Era como se o paraíso fosse se instalando e quebrando resistências para poder acordar o azul solene de uma esperança imarcessível.

            Em seu trabalho, Lucchesi buscou manter “a música áfona, os pés, a métrica e a rima” de Silésius, que em tempo distante buscou versar sua mística em epigramas alexandrinos. Como traço da sua tradução, a preocupação viva de não perder “a centelha misteriosa” do poema de origem, “mesmo que seja um breve fio de luz”[53]. Para Lucchesi, a tradução exitosa pressupõe uma “paixão visceral” pela língua de origem, bem como uma leitura cuidadosa e atenta da obra em questão. A seu ver, “a tradução que não busca a sintonia entre duas tradições culturais, que não traça a delicadeza de uma ponte-pênsil e opera com formas surdas”, não alcança o resultado proposto. Há que manter a atenção e a delicadeza despertos, e nunca deixar escapar a poesia, mesmo quando o trabalho se dá sobre a prosa. A poesia, sublinha, “é um perfume que se insinua em todos os quadrantes da palavra”[54].
           
            E assim ocorreu com a tradução dos dísticos de Angelus Silesius. Foram escolhidos 40 poemas dos seis livros que compõem a obra de místico silesiano. Do Livro I foram tomados nove dísticos; do Livro II, seis dísticos; do Livro III, três dísticos; do Livro IV, dez dísticos; do Livro V, seis dísticos e do Livro VI, seis dísticos.

            Na busca por agrupar os dísticos escolhidos por Lucchesi em seu trabalho, percebe-se a presença de alguns temas essenciais: O Amado que arrebata; o Amado intangível; A sede do Amado; As irradiações do Amado entre as criaturas; A chama que aquece o buscador; A gratuidade de Deus; O exercício do despojamento; A força do silêncio; A vastidão da alma e a centralidade do homem virtuoso; A força do amor e a paz delicada; O Deus sempre presente e a Atenção aos cuidados de Deus. Todos temas que percorrem a mística de Silesius e que foram, de uma forma ou outra, abordados no ensaio de apresentação.~﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ Ateneitor com o trabae uma forma ou outra, abordados no ensaio de apresentaçsempre presente e a Ateneitor com o traba
           

                 

                 
Referências Bibliográficas

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(Publicado no livro: Angelus Silesius. Moradas. Goiânia: Martelo Casa Editorial, 2017)




[1] Michel DE CERTEAU. La fable mystique I. Paris: Gallimard, 1982, p. 25. A citação de Marguerite Duras vem da obra: India Song. Paris: Gallimard, 1973, p. 25.
[2] Martin HEIDEGGER. O princípio do fundamento. Lisboa: Instituto Piaget; Angelus SILESIUS. L´errant chérubinique. Paris: Éditions Planète, 1970, p. 25 (Préface de Roger Laporte).
[3] GREGORIO DI NISSA. Omelie sul cantico dei cantici. Roma: Città Nuova, 1996, p. 48 (Omelia I). Ver também: Epektasis. In: Lucas Francisco MATEO-SECO & Giulio MASPERO (Eds). Gregorio di Nissa Dizionario. Roma: Città Nuova, 2006, p. 243-247.
[4] Hubert LEPARGNEUR & Dora Ferreira da SILVA. Angelus Silesius. A mediação do nada.  São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1986, p. 11.
[5] Esse autor era pastor e foi o “primeiro autor a unir a mística de Tauler ao conhecimento esotérico”, na linha dos primeiros Rosa-Cruzes: Angelus SILESIUS. Dieu est un éternel présent. Paris: Dervy, 2004, p. 14-15 (da apresentaçãoo de Erik Sablé).
[6] Ángel DARÍO CARRERO. Inquietud de la huella. Las monedas místicas de Angelus Silesius. 2 ed.  Madrid: Trotta, 2013, p. 347 (Prólogo de Juan Martín Velasco). Sobre o influxo dos dísticos em alexandrino com rima fala-se também da presença do poeta Czepko.
[7] Em sua memória Scheffler redige um longo poema de vinte e oito estrofes de quatro versos, onde já se prenunciam alguns temas essenciais de seu Peregrino Querubínico.
[8] Bernard GORCEIX. Flambée et Agonie. Mystiques du XVII siècle allemand. Paris: Présence, 1977, p. 29. E também p. 13.
[9] Apud Angelus SILESIUS. Il pellegrino querubico. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1989, p. 70 (saggio introduttivo di G.Fozzer e M.Vannini). O francês Jacques Lacan também tece elogios à obra, que vem considerada por ele num de seus Seminários como “um dos momentos mais significativos da meditação humana sobre o ser”: Ibidem, p. 72.
[10] Angelus SILESIUS. Le pèlerin chérubinique. Paris: Albin Michel, 1994, p. 25 (introduction de Camille Jordens); Id. L´errant chérubinique, p. 29-30 (préface de Roger Laporte); Id. Un chemin vers la joie. Mesnil-sur-l´Estrée: Arfuyen, 2006, p. 11 (présenté par Gérar Pfister).
[11] Ángel DARÍO CARRERO. Inquietud de la huella, p. 25.
[12] Angelus SILESIUS. Il pellegrino querubico, p. 30-31 (saggio introduttivo di G.Fozzer e M.Vannini).
[13] Ángel DARÍO CARRERO. Inquietud de la huella, p. 16 (da introdução de Juan Martin Velasco).
[14] Hubert LEPARGNEUR & Dora Ferreira da SILVA. Angelus Silesius, p. 27.
[15] Amador VEGA. El lenguaje excesivo de los místicos alemanes. In: Oscar PUJOL & Amador VEGA (Eds). Las palavras del silencio. El linguaje de la ausência en las distintas tradiciones místicas. Madrid: Trotta, 2006, p. 61. E também: Juan MARTIN VELASCO. El fenómeno místico, clave para la compreensión del hecho religioso y del ser humano. In: Luce LÓPEZ-BARALT (Ed). Repensando la experiencia mística desde las ínsulas extrañas. Madrid: Trotta, 2013, p. 22-23.
[16] Angelus SILESIUS. O peregrino querubínico. São Paulo: Paulus, 1996, p. 14 (tradução de Ivo Storniolo). As posteriores citações desta obra serão feitas com a abreviatura PQ no corpo do texto. Há também outra tradução nacional desta obra: Id. O peregrino querubínico. São Paulo: Loyola, 1996.
[17] Jacques MARITAIN. Distinguer pour unir. Les degrés du savoir. Paris: Desclée de Brouwer, 1946, p. 668-669. Ver também: Juan MARTIN VELASCO. El fenómeno místico. Madrid: Trotta, 1999, p. 54-55.
[18] Reiner SCHÜRMANN. Maître Eckhart ou la joie errante. Paris: Payot & Rivages, 1972, p. 139-40 (nota 1).
[19] Conforme a tradução de Ángel Darío Valente: Inquietud de la huella, p. 104.
[20] A expressão alemã: Wesenheit.
[21] Tema já presente na mística da beguina Marguerite Porete (1260-1310): O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 122 (na voz da personagem Amor – Capítulo 66, 15-20). Trata-se da ideia da alma como “pergaminho precioso” onde o Espírito Santo escreve sua lição diretamente.
[22] Michel DE CERTEAU. La fable mystique I, p. 219-220.
[23] Pierre HADOT. Wittgenstein e os limites da linguagem.  São Paulo: Realizações, 2014, p. 39.
[24] Ángel DARÍO CARRERO. Inquietud de la huella, p. 23 (nota aclaratoria).
[25] Bernardo di CHIARAVALLE. Sermoni dul cantico dei cantici II. Roma: Edizioni Vivere In, 1996, p. 393 (Sermão 83).
[26] Marguerite PORETE. Lo specchio dele anime símplice. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1994, p. 337. Ver a respeito a nota 222 de Marco Vannini na p. 336-337. A expressão “sans pourquoy” ou “sans nul pourquoy” aparece cinco vezes na obra de Porete.
[27] Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Bragança Paulista / Petrópolis: Editora Universitária São Francisco / Vozes, 2006, p. 67 (Sermão 5 b – In hoc apparuit caritas dei in nobis).
[28] Éléonore DISPERSYN. L´héritage problématique de la mystique eckhartienne dans l´idéalisme allemand. In: Julie CASTEIGT (Ed). Maître Eckhart. Paris: Cerf, 2012, p. 309.
[29] Para Heidegger, Leibniz constitui um dos representantes máximos da história da metafísica em sua estrutura onto-teológica.
[30] Pascal DAVID. Leibniz Gottfried Wilhelm. In: Philippe ARJAKOVSKY et al. Le dictionnaire Martin Heidegger. Paris : Cerf, 2013, p. 761.
[31] É interessante perceber que Heidegger avança para além do pensamento metafísico e abre-se a outras influências, como as artísticas e religiosas, em particular a passos das místicas oriental e ocidental. Mas não consegue dar totalmente o salto do pensamento existencial para o “não-pensamento do numinoso”. É o que defende José Carlos Michelazzo no instigante texto: As habitações do humano como expressões do tempo: diálogo entre Heideger e Dôgen. In: Antonio FLORENTINO NETO & Oswaldo GIACOIA Jr (Orgs). Heidegger e o pensamento oriental. Uberlândia: EDUFU, 2012, p. 192-193.
[32] Amador VEGA. El lenguaje excesivo de los místicos alemanes, p. 59-60. O dístico de Silesius vem também discutido pelo pensador da Escola de Kyoto, Schizutero Ueda (1926- ), que aponta para a radicalidade ainda maior da contribuição zen, que ao seu ver supera o limite do “porque”, ao dar preferencia à expressão “como”: “as rosas florescem como florescem”. Para Ueda, a utilização do “como” é ainda mais radical, na medida em que “quebra a fratura devida ao ´porque` do pensamento. O ´porque` é uma palavra que pensa a realidade, que a penetra, enquanto o ´como` é uma palavra não pensante da realidade, onde ela se reflete tal como é por si mesma”: Shizuteru UEDA. Silencio y habla en el budismo zen. In: Óscar PUJOL & Amador VEGA (Eds). Las palavras del silencio, p. 29-30. E também: Id. Zen e filosofia. Palermo: L´Epos, 2006, p. 186-201.
[33] Shizutero UEDA. Zen e Filosofia, p. 207-208.
[34] Marguerite PORETE. O espelho das almas simples, p. 205 (capítulo 124, 40-45).
[35] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 10, p. 93.
[36] Veja o clássico sermão de Tauler sobre o tríplice nascimento: TAULERO. Il fondo dell´anima. Casale Monferrato: Piemme, 1997, p. 31-40. Para ele, a geração de Deus na alma traduz em verdade uma “experiência do espírito”, da “alteridade de Deus”.
[37] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 46-47 (Sermão 2).
[38] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 289 (Sermão 52). Aqui Eckhart fala explicitamente do “Deus” como vem reconhecido em si mesmo e do “Deus” nas criaturas.
[39] Bernard MCGINN. L´essence divine. In: Encyclopédie des mystiques rhénans. D´Eckhart à Nicolas de Cues et leur réception. Paris: Cerf, 2011, p. 380. O conceito de Deidade, como mostrou Reiner Schürmann, significa a “destruição de toda configuração metafísica, exterior ou interior a Deus”: Maître Eckhart ou la joie errante, p. 188; Vladimir LOSSKY. Théologie negative et connaissance de Dieu chez Maître Eckhart. Paris: Vrin, 1973, p. 342-345.
[40] Diz Eckhart: “Deus é mais próximo da alma do que ela, de si mesma; por isso, Deus é no fundo da alma, com toda sua deidade”: Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 90 (Sermão 10).
[41] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 50-51 (Sermão 2).
[42] Marguerite PORETE. O espelho das almas simples, p. 158. Diz a alma: “Eu me libero de vós” (“Je me descombre de vous” (capítulo 92, 9). E também Eckhart em seu Sermão 52, sobre a pobreza: “Pedimos a Deus que nos esvaziemos de Deus” - Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 289 (Sermão 52).
[43] E também: PQ IV,21 e V, 358.
[44] Angélus SILÉSIUS. Dieu est un éternel présent, p. 38 (introdução de Erik Sablé).
[45] Angelus SILESIUS. L´errant chérubinique, p. 25 (prefácio de Roger Laporte).
[46] Para Barth, em descontinuidade com a teologia liberal, o mistério de Deus traduz o radical advento de uma alteridade. Nesse sentido, reage ao dístico de Silesius, e fala em “pia desfaçatez”: Dogmática Eclesial II, I apud Marco VANNINI. Il volto del Dio nascosto. Milano: Mondadori, 1999, p. 404, n. 25.
[47] Farid Ud-din ATTAR. A conferência dos pássaros. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 22.
[48] GREGORIO DI NISSA. Omelie sul cantico dei cantici, p. 225-226 (Omelia XI).
[49] Mestre ECKHART. Sermões Alemães II. Bragança Paulista / Petrópolis: São Francisco / Vozes, 2008, p. 78 ( Sermão 73).
[50] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 1, p. 291 (Sermão 52). Em outra pregação, ele diz: “Mesmo se pudéssemos nos distanciar de Deus, Ele não poderia com efeito distanciar-se de nós”: Maestro ECKHART. Trattati e prediche. Milano: Rusconi, 1982, p. 302 (Prediche 26).
[51] Bernard GORCEIX. Flambée et Agonie, p. 256.
[52] Para a tradução dos dois últimos dísticos cf. Ángel DARÍO CARRERO. Inquietud de la huella, p. 83 e 328 (PQ I, 57 e 302),
[53] Marco LUCHESI. Entrevista a Zóia Prestes. In. _____. Eu e a Rússia. Poemas de Khliébnikov. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2014, p. 69.
[54] Ibidem, p. 70-71.