Davi Kopenawa e o sopro da vida
Grande
alegria ao ler o belo texto do amigo querido, Alberto Pucheu, sobre o livro de Davi Kopenawa: A queda do céu
(Revista Cult, n. 215 – 2016). Já Eduardo Viveiros de Castro tinha dito no
prefácio do livro: “A queda do céu é um acontecimento científico incontestável,
que levará, suspeito, alguns anos para ser devidamente assimilado pela
comunidade antropológica”. E advertia também que era chegada a hora de “levar
absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa”.
E
agora vem essa reflexão de um poeta falando sobre o mesmo livro. E o início é
enigmático: para podermos acessar o universo dos Yanomami temos que ultrapassar
a nossa condição de “fantasmas”. Somos, de fato, fantasmas para eles... Assim
ocorreu com o antropólogo Bruce Albert, no início, até que se deixou habitar
pelo universo Yanomami, tendo como missão levar para longe essas palavras
esquecidas, “para serem conhecidas pelos brancos, que não sabem nada sobre
nós”.
E o
que aporta esse universo? A leitura do livro nos indica um caminho precioso, de
“acréscimo de vida”, de “sopro de vida”. Como indica Pucheu, “o livro é uma
aposta ética e política por devires a serem instaurados, a criação de um devir
do brasileiro e do ocidental para instigar em nós um desejo do branco em se tornar
índio, em índio que de algum modo já somos”. E acrescenta: “A queda do céu é
uma das maiores injeções de ´sopro de vida` na asfixia e no sufocamento com os
quais crescentemente vivemos e obrigamos qualquer outro, quem quer que seja
esse outro, a viver".
Composto
desde o ´sopro de vida` , soprado nessa língua outra, o livro é uma dura
crítica a um vendaval vital para todos e cada um de nós”. Não é tarefa fácil ou
simples entrar no horizonte do outro, transpor o limiar de Mistério que envolve
o mundo da alteridade. Como diz Alain Montandon, devemos “bater devagar” nas
portas desse universo distinto, sem muito ruído... Ultrapassar a soleira que
divide os mundos requer atenção, cuidado e delicadeza: “Entrar no círculo é
renunciar a se impor”, é preservar a distância.
Infelizmente,
como relata Pucheu, o Outro vem hoje reduzido ao mundo do espetacular ou do
econômico. Foi o espanto vivido por Kopenawa ao visitar em Paris o Museu do
Homem. Ali pode constatar a “imensa falta de respeito dos brancos pelos índios,
pelos xapiri e por Omama”. O Museu é a memória viva de um assalto, dos saques
de guerra produzidos pelos humanos, que desprovidos de qualquer respeito
apreenderam suas “imagens” e seus “espíritos”. Os brancos, como diz Kopenawa,
“dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. E aí vem uma indagação
importante feita por Alberto Pucheu, com base no livro de Kopenawa:
“Será
possível um convívio entre alteridades tão radicais em que uma sofre da outra
que a coloca em constante risco, em que uma sabe da fragilidade de seu povo
diante do outro, diante de suas armas, dos assassinatos que cometemos, dos
saques que realizamos de suas terras, das doenças dizimadoras que lhes fazemos
pegar, da destruição das florestas (e, com ela, de Omama e dos xapiri) em nome
do garimpo, da pecuária, da agricultura, do extrativismo, das madeireiras, das
hidrelétricas, dos missionários a quererem doutriná-los...? Tendo de algum modo
entrado, por necessidade, em um devir branca, o xamã diz: ´A meu ver, só
poderemos nos tornar branco no dia em que eles mesmos se tornarem yanomami`.
No
livro de Kopenawa, como lembra Pucheu, temos palavras em vez de flechas, e que
trazem um convite muito particular, uma provocação única do “devir índio do
branco”, num tempo onde vem ocorrendo de forma violenta o “devir branco dos
índios” e seus devastadores efeitos. E Pucheu retoma a frase enigmática do
início do livro: “Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um
fantasma”. O “você” era uma referência
ao antropólogo Bruce Albert. Ele “é o estrangeiro, o branco, o antropólogo, o,
a princípio, inimigo, que chega com sua língua fantasmática. É ele quem,
contrariamente ao esperado, se coloca em uma ´escuta apaixonada` das palavras e
experiências enigmáticas de Kopenawa, colaborando em muitos planos, éticos e
políticos, a favor dos yanomami”.