segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O sagrado dever da Hospitalidade

O sagrado dever da hospitalidade

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


            A hospitalidade envolve uma “dádiva de si”, tendo uma grande familiaridade com a abertura ao outro e ao diálogo. No campo das religiões, a hospitalidade ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no “solo sagrado” do outro, implicando um gesto magnífico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, que revolve toda a sua auto-compreensão. A hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um “estranho” que bate à nossa porta. Há uma dimensão de tensão ou mesmo altercação na relação que se estabelece. O desafio já começa na soleira da porta, “naquela porta à qual se bate e que vai abrir um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos, entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação”[1].

            O caminho que se abre pode ser o diálogo, que começa a ocorrer quando a recepção se dá de forma sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater “devagar” na porta do outro, sem muito ruído, de forma a favorecer um intercâmbio vital. Entrar no novo circuito envolve “renunciar a se impor”, mantendo delicadamente o direito à diferença, a preservação de certa distância. O caminho é tortuoso, e exige escuta e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar as amarrar da violência que estão implícitas em toda dinâmica da hospitalidade. É um mundo novo que se anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o diálogo uma frágil “zona de passagem”, de “aventura, espanto e inquietação”[2].

            O diálogo é uma “cartografia inacabada”, que vai se tecendo com as linhas da humildade e generosidade. Os interlocutores são convidados a alçarem o olhar, vislumbrarem novos patamares de significado, refletirem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de um encontro, que preserva simultaneamente o auto-respeito genuíno e a auto-exposição ao outro. No cerne do diálogo está uma acolhida, está a presença de um rosto que convida, de um olhar que indaga e provoca o mover dos lábios.

            São inúmeros e exemplares os casos de exercício dialogal, de realização de um hospitalidade sagrada, como a de buscadores que se inserem nas inúmeras tradições espirituais. Nos diversos itinerários,

o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas: a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz (...)[3].

            O diálogo comporta algo mais que uma interlocução humana, vai além, e traduz um “ato religioso”, na medida em que evoca um Mistério maior. Indica o traço contingente que habita  em qualquer experiência religiosa particular. Suscita indagação, abertura permanente, ou como indica Gadamer, expansão da individualidade. O que se busca, intensivamente, é a verdade que habita na dinâmica mesma da sinfonia do encontro. Disse a respeito Montaigne: “Eu festejo e acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, e para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas armas vencidas, de longe, assim que a vejo se aproximar (...)”[4].

            São ricos os exemplos de buscadores que viveram intensamente a prática da hospitalidade[5]. No âmbito do cristianismo, e em particular no diálogo com o islã, aparecem figuras notáveis como Louis Massignon (1883-1962), que abraçou com vigor esse tema, fazendo dele a ária de sua vida. Para ele, a hospitalidade envolvia uma saída de si mesmo, uma “expatriação interior” para poder assumir o outro com alegria e gratuidade. Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não acontece mediante o caminho de sua anexação, mas no deixar-se hospedar por ele. O caminho indicado é o do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao “segredo divino”. Hospitalidade, Misericórdia e Compaixão são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, daqueles que foram escolhidos por Deus para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Foi desta palavra, Abdâl – plural de badal – que Massignon tirou a inspiração para a sua experiência espiritual mais forte, a Badaliya, um mosteiro espiritual, uma comunidade de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã.

            Há também o exemplo precioso de Christian de Chergé (1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No compromisso assumido pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso aconteceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços comunitários que se estabeleceram naquela difícil região foram tratados de forma singela no filme de Xavier Beauvois, Homens e deuses  (2010), num envolvimento amoroso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, a dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência comunitária, algo central para ele. Dizia não haver fronteiras de tempo ou espaço para o exercício do amor e da misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade, como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que essa acolhida brota límpida do coração do evangelho, daí o desafio de “aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, em nome Daquele que veio a nós gratuitamente”[6].

            Os exemplos de dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não há dúvida sobre isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ainda ser lembrado o nome de Serge de Beaurecueil (1917-2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a essa aventura de amor aos amigos muçulmanos. Na trilha de outros buscadores, pôde perceber que há sempre a presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mistério sempre maior. Foi assim que, partindo de uma grande devoção à mística sufi, encontrou o caminho do serviço junto as meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que no momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir não sobre a religião abraçada, mas sobre o movimento de “partilha do pão e do sal”. Um passo essencial para a sua conversão espiritual ocorreu numa situação cotidiana, de convivência com um dos meninos da região, Ghaffâr, que favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto disse: “Você aceitaria que eu fizesse uma refeição em sua casa e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim partilhar o pão e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união dos destinos”. Esse menino morreria pouco tempo depois, num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo garoto ganhou um significado sacramental para o dominicano, com notáveis  irradiações. Num de seus livros, dirá:

Ghaffâr, sem dúvida alguma, favoreceu-me a chave de compreensão. Estava aqui para partilhar a vida dos afegãos na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e simplesmente partilhar o alimento... Uma tal partilha ligou meu destino ao deles, selando o direito de intercessão – tão caro a Louis Massignon – consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da graça [7].

                  A hospitalidade firma-se, assim, como algo precioso, com valor sagrado, que estabelece laços imarcessíveis entre aqueles que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca do sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é entender as teias largas da hospitalidade, que não se reduz à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o conceito tradicional de “nós”, de forma a abrigar todos os seres da criação, no respeito essencial aos seus direitos característicos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do mundo da vida”. Não há mais dois mundos antagônicos, em que sociedade e natureza estão divididos, mas uma única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas sempre relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo (aqui) e o ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, finalmente, que é parte do vivente e não mais o umbigo do mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo e alvissareiro, e o ser humano vem inserido “no interior da continuidade do mundo da vida”[8].

            O papa Francisco se deu conta desse desafio inaugural em sua carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum[9]. Parte da ideia essencial de que todos os seres humanos são terra, e que os elementos de seu corpo são constituídos pelos “elementos do planeta” (LS 2). Na pauta de sua reflexão, o desafio de uma “nova solidariedade universal”, que parte da consciência de que tudo na Terra está interligado, e que todos os seres criados precisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a humanidade com a animalidade, com a vegetalidade e a mineralidade, numa consciência comum da dignidade de cada criatura. Indica a urgência de uma “espiritualidade ecológica”, uma “conversão ecológica” (LS 216 e 217) voltadas para o exercício comum de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O universo inteiro está animado pela dinâmica espiritual: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233).

            A hospitalidade ganha assim uma tessitura nova e exigente, que sem desconsiderar os passos da acolhida ao outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma dimensão novidadeira, que delineia os passos essenciais do significado mais profundo do habitar espiritualmente a Terra.

(Publicado na Revista IHU-Online, Ano XVI, 19/12/2016:



[1] Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade (prefácio). In: ____. Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo: Senac, 2011, p. 32.
[2] Marco Lucchesi. Guerras de religião ? O Globo. 03/12/2014.
[3] Ibidem.
[4] Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain Montandon (Ed.). O livro da hospitalidade, p. 1270.
[5] Ver: Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no diálogo com o islã. São Paulo: Paulus, 2014.
[6] Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris: Bayard, 2010, p. 206.
[7] Serge de Beaurecueil. Mes enfants de Kaboul. Paris: Cerf, 2004, p. 65.
[8] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26.
[9] Papa Francisco. Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A linguagem do silêncio

A linguagem do silêncio

Faustino Teixeira


O que estar em silêncio significa para a mística ?

O silêncio é a essencial gramática dos místicos. Ele é fundamental, pois revela a linguagem do Mistério Maior, sem nome. Tudo mais, como diz Rûmî (1207-1273) – grande místico sufi – é “má tradução”. Estar em silêncio é pausar o domínio cotidiano e repetitivo do ego e deixar-se habitar pela dinâmica do Outro, daquele que é enigmático, capaz de provocar mudanças substantivas na trajetória ordinária. Estar em silêncio é também despojar-se para abrir o campo da atenção, poder “estar presente” e captar com alegria o canto das coisas. Um dos grandes místicos cristãos, Thomas Merton (1915-1968), que viveu um período de sua vida como eremita, dizia que do coração da “quentura” do silêncio podia captar um segredo singular, que estava na raiz de todos os amores. Estar em silêncio, em síntese, é poder organizar o mundo interior, ajustar a vida para um tempo que é distinto, solene, diverso daquele que pauta a correria do cotidiano: um tempo nobre, capaz de revelar horizontes dinâmicos do enriquecimento do ser.

Quais são as religiões que priorizam o silêncio ?

Difícil falar em religiões que priorizam o silêncio, pois assim corremos o risco de descartar específicas experiências religiosas. Mas identifico algumas tradições onde o silêncio fala forte, como no caso da via budista. Muito curioso o caminho seguido por esta tradição, nas suas diversas ramificações. Há uma particular atenção e cuidado em “preservar a condição misteriosa do último”. Tomando o exemplo do Zen Budismo, verificamos uma sadia resistência contra as representações movediças. Há uma preocupação constante  de rejeitar qualquer encarceramento na aparência. É preciso renunciar às figuras para acessar o despertar. A prática contínua do Zazen, meditação sentada, é o caminho silencioso escolhido para galgar o ritmo do despojamento e da iluminação. Na tradição judaica, o silêncio também ocupa um lugar de destaque, de reverência ao Mistério Maior, inominado, que só pode ser aludido mediante a oração e o canto. Temos nos Salmos exemplos bonitos desta reverência: “É um saber maravilhoso, e me ultrapassa, é alto demais: não posso atingí-lo” (Sl 139,6). Há também no cristianismo exemplos singelos de atenção ao silêncio, sobretudo nos místicos. É o caso de João da Cruz (1542-1591). Ele falava na “música calada”, no “conhecimento sossegado”. Em momento solene de seu Cântico Espiritual, relata a entrada da alma na “interior adega” onde habita o Amado. O deleite que acompanha a experiência é único: “Do Amado meu bebi”. E ao sair, como resultado do encontro jubiloso, todo o conhecimento desvanece e apenas vibra o silêncio e o convite gratuito ao amor. Bem na linha do que está presente no Cântico dos Cânticos: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor” (Ct 2,4). Na verdade, “quanto mais alto se ousa” – diz João da Cruz – tanto menos se entende. Quanto mais se olha para cima, mais “os discursos se contraem” face à luminosidade do Mistério. Daí ser comum ao pensamento dos místicos a consciência da insuficiência da linguagem e o recurso a um modo peculiar de expressão, marcado pelas alusões, pelos paradoxos e pelos oxímoros. Na tradição islâmica temos os místicos sufis, que reiteradamente falam do silêncio como horizonte referencial. Não há como viver o enlace do amor, diz Rûmî, senão superando o ritmo das “palavras vãs”. O poema, em verdade, só se completa quando deixa-se habitar pelo silêncio, que traz consigo a presença do Amado.

Para as religiões citadas acima, qual é o significado do silêncio para cada uma delas?

O silêncio é sempre uma barreira protetora contra a arrogância humana de pretender abarcar o Mistério ou a Verdade. O místico é alguém possuído pelo “desaforado amor pelo Todo”. Sua sede é insaciável, movida por um desejo infinito de “atravessar os umbrais da vida”, mas sempre vinculado ao tempo e seus desafios. Mas tem também viva a consciência de que não consegue avançar para além de um limiar, protegido por reserva inalcançável. Os místicos muçulmanos dizem que nem mesmo Muhammad (Maomé) em sua famosa ascensão noturna à inacessível cidade santa, conseguiu penetrar no amor de Deus, permanecendo no seu limiar. A ninguém é permitido, assinala o estudioso Louis Massignon, “ultrapassar o limiar onde Muhammad se fixou, nem penetrar na ´luz santa` (incêndio divino) anteriormente prometida a Abraão como herança: ela está interditada por um vidro, contra o qual as mariposas amorosas vêm se queimar”.

Quem são os principais nomes da história das religiões que ficaram conhecidos pelo silêncio que fizeram em determinado momento, e qual foi esse momento para cada um deles ?

Posso simplesmente apontar dois nomes que me surgem neste momento, e que me impressionaram por sua fragrância espiritual, regada continuamente pelo aroma do silêncio: um da tradição hindu e outro do cristianismo. Cito em primeiro lugar o grande guru Râmana Maharshi (1879-1950), também conhecido como Bhagavan. Vem largamente reconhecido com um dos grandes mestres espirituais indianos dos tempos modernos, portador dos segredos do Advaita Vedanta, ou seja, da intuição upanixade da não-dualidade. Na linha dos grande gurus indianos, tinha a consciência desperta para o circuito do Real, e a percepção de que todos os nomes precisam ser ultrapassados, num desafio de mergulho no silêncio e na escuridão. Seu aprendizado foi gestado na montanha sagrada de Arunachala (aruna = aurora; achala = imóvel). O grande ensinamento desse mestre, não estava referenciado a livros ou palavras. Tudo isso era secundário. O segredo estava na potencialidade de uma comunicação espiritual firmada no seu modo de ser, no canto de seu olhar, na força de sua presença. Assim transmitia o vigor da sua experiência. Tudo regado por sua trajetória de reserva e silêncio. Cito também, da parte cristã, o místico trapista Thomas Merton (1915-1968). Foi um grande amante da solidão e do silêncio. Dizia que na solidão “permanecemos diante da realidade crua das coisas”. Dizia ainda que “o silêncio nos ensina a conhecer a realidade respeitando-a lá onde as palavras a profanaram”. Não há máscaras na vida silenciosa: o sujeito está diante de si, na integralidade de sua realidade, sem disfarces. Por isso é tão difícil para muitos. Merton, ao contrário, avançou arriscadamente nesse trajeto, e pôde perceber que quanto mais aprofundava sua vida interior, regada pelo silêncio, mais percebia o elo de ligação entre todas as coisas. O silêncio, na verdade, não o retirava do real, mas favorecia o adentramento em suas entranhas. É o silêncio que abria para ele as portas da “grande percepção do Real”, como quando deparou-se com duas grandes imagens de Buda em Polonnaruwa (Ceilão). Ali naquele lugar, regado pelo “silêncio dos extraordinários rostos”, foi invadido por uma impressionante torrente de paz e serenidade. E assinala no seu diário: “De repente, enquanto olhava essas figuras, fui completa e quase violentamente arrancado da maneira habitual e restrita de ver as coisas. E uma clareza interior, patente, como que explodindo das próprias pedras, tornou-se evidente e óbvia”. Foi uma experiência única e novidadeira, quando então conseguiu penetrar através da superfície e ultrapassar a sombra e a aparência.

(Entrevista para a UOL – setembro de 2016)


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Experiência religiosa: abordagem das ciências da religião

Experiência Religiosa: abordagem das ciências da religião

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF


            Abordar a questão da experiência religiosa é adentrar-se por caminhos extremamente complexos e cada vez mais problematizados nesse tempo de crise das instituições tradicionais de sentido. A própria categoria “religião” ganha uma pletora de significados, assim como o “campo religioso” abrange hoje outros aspectos que não se enquadram precisamente no âmbito das religiões. Como assinalaram Carlos Steil e Rodrigo Toniol, o conceito mesmo de religião torna-se hoje inadequado para “designar um habitus que se expressa por meio de espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado que compõem determinado regime de crer” (STEIL & TONIOL, 2012).

            A noção de experiência veio definida com o rigor necessário pelo filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz, em clássico artigo do início da década de 1970. Justificava na ocasião a pertinência de uma não oposição entre experiência e pensamento. Em sua argumentação, a experiência vem definida como “a face do pensamento que se volta para a presença do objeto” (LIMA VAZ       , 1974, p. 76). A experiência envolve assim um campo de relação ativa entre a consciência e o fenômeno, suscitando sua tradução em linguagem, apesar de toda dificuldade que acompanha esta operação, sobretudo em razão da “inefabilidade da presença”. A linguagem busca, porém, traduzir a presença, mesmo com o limite de sua formalidade: “A presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a presença é vazia” (LIMA VAZ, 1974, p. 79).

            A experiência religiosa diz respeito ao envolvimento com o sagrado, evocando na consciência questões que tocam o âmbito essencial do sentido. Na busca de situar a peculiaridade desta experiência religiosa vinculando-a à estrutura da experiência, pode-se dizer que

“na experiência do sagrado o polo da presença define-se pela particularidade de um fenômeno cujas características provocam, no polo da consciência, essas formas de sentimento e emoção que formam como que um halo em torno do núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de Rudof Otto procuram descrever” (LIMA VAZ, 1974, p. 82).

                  A experiência religiosa pode ser captada por oculares diversificadas, envolvendo campos distintos de saber, que se inter-relacionam e dialogam, favorecendo perspectivas dinâmicas para a sua compreensão. Ao lado de um olhar sociológico, outras contribuições se somam, como as advindas da perspectiva fenomenológica, psicológica e teológica, de forma a abrir o campo da discussão em terreno tão complexo e removido como este da experiência religiosa.



O olhar sociológico

            A peculiaridade do olhar sociológico sobre o fenômeno religioso consiste em trazer a questão para suas formas concretas de inserção no tempo. O fenômeno está aí, acontecendo em expressões efetivas. São representações e crenças, são ritos específicos que traduzem, como indica Emile Durkheim, um “sistema de forças” bem vivo. Esse sentimento não pode ser ilusório, pois esteve sempre acompanhando a dinâmica da humanidade: tem correspondência a algo no real. Trata-se de um sentimento “demasiado geral” e que traduz a presença no humano de uma força dinamogênica inusitada, que o ajuda a suportar as dificuldades da existência e também superá-las. Como pontua Durkheim, a religião tem como função ajudar a viver, suscitar um agir, tudo isso animado por um sentimento peculiar de “poder” que eleva o ser humano acima de suas potencialidades, auxiliando-o a fazer frente às provas do dia a dia. Ela é mais um sistema de forças que de ideias.

            O que irmana as diversas crenças religiosas, indica Durkheim, é a percepção de classificação das coisas como sagradas ou profanas. As coisas sagradas envolveriam um círculo de objetos de extensão infinitamente variável, tendo como peculiaridade uma percepção de “dignidade” singular – e superioridade – com respeito às coisas profanas.  O caráter sagrado, por sua vez, não é algo intrínseco a uma coisa reconhecida como sagrada, mas é um dado “acrescentado”. Quando se fala em “força religiosa” o que está em jogo é um sentimento inspirado pela coletividade em seus membros e que vem projetado e objetivado.

            No mesmo movimento que estreita o laço do fiel com seu Deus, firma-se também os laços que unem o indivíduo à sociedade de que é membro. Isso acontece de forma precisa nas práticas do culto. Ali ocorre não apenas um “sistema de signos” que traduzem a expressão da fé, mas uma “coleção de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente” (DURKHEIM, 1989, p. 494). A religião vem definida como um sistema solidário de crenças e práticas relacionadas às coisas sagradas, que congregam seus aderentes numa mesma comunidade moral (DURKHEIM, 1989, p. 79).

            O traço dinamogênico da religião veio também sublinhado por Peter Berger em sua reflexão sociológica. A religião vem concebida como empreendimento fundamental na manutenção da plausibilidade do sentido, com derivação ainda mais substantiva por relacionar-se a uma fonte poderosa. Trata-se de uma “cosmificação” pontuada pela qualidade desse poder misterioso e envolvente que é o sagrado. Na medida em que transcende e envolve o ser humano nessa dinâmica de ordenação da realidade, o cosmos sagrado “fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa relação ´correta` com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo da ameaça do caos” (BERGER, 1985, p. 40)

            Dizia com razão Durkheim que as crenças “só são ativas quando compartilhadas”. É também o que reitera a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger ao destacar uma importância singular ao exercício da crença numa tradição ou linha de continuidade do dispositivo devocional. A tradição ganha em sua reflexão um lugar singular, enquanto lugar de “conservação” e atuação da crença. Ela é “geradora de continuidade”.  Sua definição de religião é bem precisa: “Uma ´religião` é um dispositivo ideológico, prático e simbólico mediante o qual se forma, se mantém, se desenvolve e se controla a consciência (individual e coletiva) da pertença a uma descendência crente específica” (HERVIER-LÉGER, 1996, p. 129).

            Com o advento da modernidade e das sociedades pós-tradicionais ocorre uma crise de credibilidade dos sistemas religiosos e a emergência crescente de novas formas de crença. O que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito à crença, mas a perda de sua “regulamentação” por parte das instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé. Como sublinha Hervier-Léger,

“o principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa é, portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgirem novas formas de crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p. 41)

                  Torna-se impróprio falar simplesmente de um “retorno” ou “revanche” do religioso no tempo atual. O processo é mais complexo. Há de um lado a desqualificação das “grandes explicações religiosas do mundo” que forneciam o sentido e plausibilidade para as pessoas e grupos religiosos. Mas por outro, essa mesma modernidade secularizada não consegue responder às demandas de nomização, acumulando não só utopia mas também opacidade, e com isso gerando simultaneamente “as condições mais favoráveis à expansão da crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p. 41).
           
O olhar fenomenológico

            A experiência religiosa foi objeto de muita reflexão também na fenomenologia da religião e na teologia, buscando resgatar o desejo de transcendência presente na dinâmica humana. Clássica é a posição do pensador romeno, Mircea Eliade, na busca de uma essência do fenômeno religioso, visando encontrar na experiência do sagrado o traço fundamental da experiência religiosa. Para Eliade, o sagrado não pode ser entendido como uma “fase” na história da consciência, mas um “elemento na estrutura da consciência” (ELIADE, 1978, p. 13). Nesse sentido, o dado religioso seria constitutivo do ser humano como tal. Segundo essa visão mais essencialista, o sagrado seria “o real por excelência”, fonte de vitalidade e fecundidade. Estar em relação com o sagrado, ou viver marcado por essa presença, é propiciar uma inserção na realidade objetiva (ELIADE. s/d, p. 42). Nesse quadro interpretativo, é o sagrado que possibilita a orientação e a construção de mundo, firmando propriamente a ordem cósmica. Não se poderia conceber a existência humana fora dessa comunicação com o numinoso, pois ele é por excelência o dossel protetor contra a ameaça de carência de sentido ou do caos.

            No olhar fenomenológico, o âmbito do sagrado circunscreve o “mundo do definitivo” e do necessário. Diante dele todas as realidades da vida ordinária e todas as criaturas passam a ser percebidas como penúltimas, envolvidas por um sentimento vivo de dependência. O sagrado traduz uma realidade que denota majestade, superioridade e transcendência. Diante dele não há sentimento possível senão o de criatura. É algo simultaneamente fascinante e tremendo, como mostrou com acuidade Rudof Otto. Por um lado, arrebata, desconcerta e comove, por sua qualidade de “tremendum” e de “totalmente outro”. Isto pelo fato de estar fora da alçada do domínio das coisas familiares e habituais, típicas do mundo profano. Por outro, provoca fascínio, encanto e atração. Como sublinha Otto, “provoca na alma um interesse que não se pode dominar” (OTTO, 1992, p. 41). É esse sentimento do numinoso, do totalmente outro, que está na base do sentimento religioso e da experiência religiosa, como indicam os autores da fenomenologia da religião.

            Essa abordagem fenomenológica vem sendo objeto de crítica de autores das ciências da religião, sobretudo em razão de sua perspectiva essencialista e sua tendência à generalização (GASBARR0, 2013, p. 93 e 95). Como assinala Frank Usarski, um dos mais fortes crítico a tal perspectiva no Brasil,

o maior desafio que o mundo complexo das religiões representa para um fenomenólogo ´clássico` é o da abstração da complexidade dos fatos reais para chegar ao ´conhecimento` do sagrado o mais imediatamente possível, ou seja, da suposta essência de qualquer ´verdadeira` religião que repercute no interior de um ser humano sensível para tal ´ultima realidade` (...). Enquanto os fenomenólogos pretendiam ir além dos aspectos particulares que constituem uma religião no contínuo  tempo-espaço, para chegar à essência da religião em si, as gerações posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidisciplinar dos seus estudos e a necessidade de uma colaboração entre especialistas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as dimensões que compõem qualquer religião concreta” (USARSKI, 2006, p. 41-43).

                  Mas não se pode desconhecer a importância do aporte da fenomenologia da religião para acessar a experiência religiosa, sobretudo o destaque dado à importância do “tato religioso” para o pesquisador que se disponha a adentrar-se no domínio complexo desse fenômeno. Em casos particulares, a perspectiva contrária, animada pelo “ateísmo metodológico”, não consegue aproximar-se com profundidade do mundo do outro, ou o que é mais grave, acaba por favorecer uma cognição problemática, quando não miserável sobre a experiência da alteridade (PONDÉ, 2001, p. 54-59).

O olhar psicológico

            Não há como captar a experiência religiosa desconhecendo a “extraordinária polimorfia” que a caracteriza. Trata-se de uma realidade que vem carregada por múltiplos e complexos significados. A abordagem psicológica da religião busca uma aproximação do fenômeno tendo em conta suas tensões e polarizações constitutivas. O objetivo proposta é o de “observar” a conduta dos sujeitos e das instituições, com particular atenção aos aspectos subjetivos. Como indicou com acerto Edênio Valle, ainda que reconhecendo os inúmeros “desacordos” que dividem os praticantes dessa disciplina, a aproximação psicológica ao fenômeno religioso guarda alguns traços importantes:

“As definições deixam claro que as religiões reais – com seu peso institucional e sócio-histórico – e a religiosidade, sua face subjetiva, acontecem no jogo das múltiplas relações que se estabelecem entre o sujeito religioso, o grupo religioso ao qual se afilia e o universo das crenças e valores vigentes naquela dada sociedade, grupo ou época, considerados, inclusive, seus respectivos modelos civilizatórios e respectivos estágios de desenvolvimento tecnológico-científico e político-organizativo. Neste contexto de extraordinária complexidade, o psicólogo tenta chegar à opção vivencial e à realidade psicológica e humana dos indivíduos, assim como essa aparece em seu comportamento religioso (VALLE, 1998, p. 260).

                  O olhar psicológico, aninhado num ramo específico das ciências da religião, busca examinar os fenômenos e manifestações religiosas tendo em vista a polifonia de suas dimensões comportamentais. É, porém, um olhar que se encontra ainda em “estágio de construção”, mesmo com uma história que já soma quase cento e cinquenta anos. Esse caminho veio recentemente traçado por Jacob Belzen, da Universidade de Amsterdã, que sintetiza de forma muito feliz os passos até agora percorridos pela Psicologia da Religião. A forma como se concebeu ou se exerceu esse campo temático foi muito diversificado: ora se firmou a serviço do religioso, ou então a serviço da crítica à religião ou do conhecimento científico. Perspectivas que se vinculam a um dos três caminhos são recorrentes. Mas uma outra perspectiva, sublinhada por Belzen, vem também se firmando, e é bem sugestiva. Trata-se do caminho nomeado como “Parecerista” (do alemão Rezensentin). Para usar uma metáfora do mundo da música, esta perspectiva tem como foco principal a “atenção” desperta para os que praticam a música, no caso, os executantes da religião. E o autor justifica esta posição: “Os psicólogos da religião que exercem sua profissão como Pareceristas sobre uma religião ou comportamento religioso não se sentem chamados a escrever sobre religião em geral, mas sim sobre um comportamento religioso concreto” (BELZEN, 2013, p. 326-327). Esse modo de procedimento é distinto de certa concepção exteriorista ou neutra, bem vigente neste campo, que destaca o pesquisador do objeto de seu estudo em vista de uma maior cientificidade. Ao contrário, os que seguem a nova orientação estão bem cientes da importância de uma maior aproximação da religiosidade particular para uma interpretação correta das manifestações subjetivas do exercício da religiosidade. Esta nova ocular vem assim recuperar a dimensão hermenêutica da Psicologia da Religião, instrumentando-a com novos atributos para conhecer o sujeito religioso tanto a partir “de fora” como “de dentro” de sua prática religiosa.

O olhar teológico

            O desejo de transcendência, já presente na ocular fenomenológica, vem também trabalhado em âmbito teológico, sendo destacado com ênfase por autores como Karl Rahner. Esse grande arquiteto da teologia católica dedicou-se a compreender os traços dessa “experiência transcendental” que, a seu ver, opera em todos os seres humanos. Para ele, não há como desvencilhar-se desse dinamismo que atua na consciência subjetiva, como traço necessário e insuprimível, mesmo que ocorra de forma anônima ou atemática. Cada consciência subjetiva estaria assim animada por esse “caráter ilimitado de abertura”. Enquanto ser de transcendência, o ser humano está sempre, e antes de qualquer ato de liberdade, situado e orientado na atmosfera de um “mistério santo e absolutamente real”. É este mistério, simultaneamente transcendente e familiar, o que existe “de mais evidente”, colocado sempre à disposição do humano.

            Segundo Rahner, esta experiência transcendental do sujeito vem marcada por universalidade, podendo ocorrer de forma atemática e mesmo “arreligiosa”, independente de uma experiência religiosa explícita. É uma experiência original, ontologicamente fundada.  Ela acontece de fato onde quer que o sujeito atue de forma livre e profunda a sua existência. É algo que se disponibiliza para todos, e que pode ocorrer “até mesmo em formas e conceituação que aparentemente nada têm de religioso” (RAHNER, 1989, p. 164). Ocorre quando o sujeito se vê defrontado, no âmbito de suas atividade cotidianas, com o “abismo de sua existência”, com a profundidade que escapa ao burburinho tranquilo das coisas familiares.

Um campo semântico em discussão

            Torna-se cada vez mais complicado querer hoje caracterizar a religião como uma atividade específica do ser humano, como definido em alguns campos da fenomenologia da religião. É verdade que alguns autores como Keiji Nishitani e Paul Tillich buscaram ampliar esse campo semântico, visando identificar um sentido mais lato de religião. Nesse caso, a expressão envolveria uma dimensão mais ampla, associada à metáfora da profundidade. Religião seria assim a “dimensão da realidade suprema nos diferentes campos do encontro do homem com a realidade” (TILLICH, 1968, p. 96). Igualmente Nishitani, da Escola de Kyoto, apresenta um conceito de religião mais amplo, que a associa à “real consciência da realidade”. Para ele, a exigência religiosa envolveria a “busca humana da verdadeira realidade de um modo real”, para além de uma expressão exclusivamente teorética (NISHITANI, 2004, p. 35-36).

            Com base nas experiências do sagrado ou espirituais que não se encaixam exclusivamente no conceito tradicional de religião, há que problematizar certa ideia rotineira de religião que a enquadra como um traço do humano. Estudiosos da história das religiões e das mitologias, como Jean-Pierre Vernant lançam suspeitas sobre os procedimentos analíticos habituais com respeito à cobertura da noção de religião. Há povos ou tradições que não trabalham com a distinção sagrado/profano, nem com noções como a de um Deus único, ou mesmo de Deus. Outras tradições que não trazem em seu repertório dogmas ou credos, um clero regular ou promessas de imortalidade. Critica-se a ideia mesma de religião como sendo “estreitamente etnocêntrica e ocidental” (GEFFRÉ, 2012, p. 15-16).

            Como mostrou Pierre Gisel, o dado religioso não pode ser concebido como algo apriorístico, ou dimensão específica do humano, mas é algo que só se dá em formas determinadas de crenças ou religiões específicas. Trata-se, antes, de uma “construção cultural”. As religiões são historicamente firmadas e construídas. O termo “religioso”, distintamente da forma como veio concebido numa perspectiva mais substantiva ou essencialista, é um constructo:

“o que ele circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações, e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de cristianismo -, este campo é, de fato, um ´cenário`, no qual realidades antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar” (GISEL, 2011, p. 169).

            Mudanças essenciais vêm ocorrendo no âmbito da modernidade pós-tradicional, com implicações bem precisas na dinâmica religiosa. Junto com a desinstitucionalização crescente, expressão da crise das instâncias sólidas que fundavam, enquadravam e regulavam o campo das experiências religiosas, instala-se a quebra de transmissão da memória religiosa. As filiações tradicionais sofrem impacto decisivo e novas crenças se firmam fora do circuito tradicional das religiões tradicionais. Como pontua Pierre Sanchis, “um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas” (SANCHIS, 2013, p. 13-14).

            Com todas as mudanças provocadas pela modernidade pós-tradicional, um dado permanece vigente: a incapacidade de lidar com as incertezas antropológicas que permanecem acesas no tempo. Ainda que superando certos fatalismos típicos das sociedades tradicionais, a modernidade não conseguiu responder à sede de sentido de seus indivíduos. É uma demanda que permanece viva e aguda (HERVIEU-LÉGER, 1996, p. 151). Isto  talvez ajude a explicar a grande sede espiritual que move um importante segmento de pessoas no momento atual, suscitando novas questões e indagações e ampliando o campo da discussão em torno da experiência do sentido.
           
A busca pela experiência espiritual

            Ainda que a experiência religiosa vigore como um dado presente e singular, talvez seja mais pertinente falar em experiência espiritual, caso se queira buscar um campo de maior universalidade. Há que distinguir entre religião e espiritualidade, como tão bem mostrou Dalai Lama. A espiritualidade está relacionada com “qualidades do espírito humano” tais como o amor, a compaixão, a paciência, a hospitalidade, a atenção, delicadeza e doação. São qualidades que independem de uma vinculação religiosa, e qualquer indivíduo é capaz de desenvolvê-las, mesmo em alto grau, mesmo não pertencendo a um sistema religioso determinado. Pode-se até dispensar a religião, mas não essas “qualidades espirituais básicas” (DALAI LAMA, 2000, p. 32-33).

            Uma série de autores não religiosos têm hoje sublinhado a importância da vida espiritual como traço elevado do ser humano, e capaz de ser experimentado mesmo fora de uma inserção religiosa. É o caso de André Comte-Sponville em seu trabalho sobre O espírito do ateísmo. Para ele, a espiritualidade tem a ver com a abertura do espírito e o defrontar-se com a vida em profundidade. Essa abertura ao infinito, à eternidade, ao singular que existe no próprio sujeito, despertando dimensões inusitadas, é de fato exercício de vida espiritual. Se é verdade que “toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade”, há também que afirmar que “nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 129).

            A espiritualidade, sublinha Comte-Sponville, é algo que se dá, de forma simples e até mesmo banal, no domínio da experiência cotidiana, diante da força da “imanensidade”. Trata-se do sentimento essencial de estar diante do Todo, que se apresenta no tempo e que transborda o sujeito por todos os lados. Criando-se as condições para uma tal experiência, algo que requer atenção e disponibilização interior, a estupefação diante do Mistério revela-se imediata: “O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso cotidiano” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 137).

            Em linha de sintonia com esta perspectiva, pode-se também assinalar a reflexão de Pierre Hadot, que fala em “exercício espiritual”, entendido como uma prática voluntária e pessoal de desapego e transformação de si mesmo, de descentramento do ego em favor de uma aliança superior do sujeito com a totalidade das coisas (HADOT, 2008, p. 119-120; MANCUSO, 2012, p. 143-144; ). Trata-se de uma experiência que não está destacada da vida cotidiana, mas que encontra aí o cenário vivo de sua realização. Citando uma passagem de Wittgenstein a propósito da mística, Hadot destaca essa singularidade da “maravilha pela existência do mundo”, de ser capaz de ver o mundo como um “milagre”. Não há como acessar a riqueza de uma tal experiência espiritual fora do cotidiano. É ali que os aspectos mais, simples, ricos e essenciais das coisas encontram sua guarida (HADOT, 2007, p. 16-17 e 77; PENA-RUIZ, 1998, p. 22).

Referências Bibliográficas

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Publicado na Theologica Latinoamericana. Enciclopedi Digital: