O Haikai
e a revelação do instante
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
“Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta
E a falta de uma asa”
Mariana Ianelli
Resumo: Dentre as formas mais belas e provocadoras
da poesia inserem-se os haikais. São “cápsulas” de poemas dotadas de uma beleza
e simplicidade que maravilham. Eles tratam daquilo que é mais terrenal, do que
está próximo, embora muitas vezes escape ao olhar desatento. Expressam uma
atenção particular ao que advém, nos momentos singulares, de encontros e
despedidas; evocam sentimentos e estados que acompanham as estações da vida.
Não são movidos por razões explicativas, estão simplesmente aí, para indicar e
aludir a força e a vitalidade do instante. Sua relação com o espírito zen é
muito clara, e guardam a força secreta do despertar.
Palavras-Chave: literatura; poesia;
espiritualidade; cotidiano
Introdução
O
Ocidente antenou para a riqueza dos haikais tardiamente. As primeiras
referências aos poemas datam do início do século XX, mas um marco importante
foi a publicação dos quatro volumes escritos por R.H. Blith durante a guerra no
Japão e publicados entre os anos de 1949 e 1952. Esses volumes, “contendo
centenas de poemas comentados se tornariam a bíblia dos cultores desse gênero e
marcariam profundamente a Geração Beat americana” (BASHO, 2008 p. 69). É
notório o seu influxo sobre autores como Gary Snyder, Jack Kerouac, e Allan
Watts; mas também sobre outros escritores: Ezra Pound, Rainer Maria Rilke,
Giuseppe Ungaretti, Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa. No Brasil, foi objeto
de atenção de importantes nomes da literatura, como Guimarães Rosa, Manuel
Bandeira e Haroldo de Campos. Mas recentemente, ganhou um impulso importante
entre poetas como Paulo Leminski.
A
poesia dos haikais está em íntima sintonia com a tradição zen-budista, com o
destaque para o “lado interior das coisas”, aquele que mais importa. No
refinamento da palavra, em estado breve, a presença de uma sutileza que
encanta, de uma simplicidade que “salta” e de uma comunhão profunda com a
natureza. Movido por “metafísica sem sujeito”, e por visão que ressalta o campo
da imanência, o haikai reflete uma escritura singular, que faz brilhar o
acontecimento, e ao mesmo tempo, suscita a quebra do conhecimento, ou seu abalo
sísmico que alude uma linguagem que hospeda o vazio. Na verdade, trata-se de
“um vazio de fala que constitui escritura; é desse vazio que partem os traços
com que o Zen, na isenção de todo sentido, escreve jardins, os gestos, as
casas, os buquês, os rostos, a violência” (BARTHES, 2007, p. 10).
Pequena cápsula de poesia
Não há como acessar a
cultura japonesa deslocando-a de sua energia e valor espiritual. São traços
essenciais para se compreender um universo que é bem distinto daquele que marca
a experiência ocidental. Como mostrou com acerto Octavio Paz, “nem antes nem agora
o Japão foi para nós uma escola de doutrinas, sistemas ou filosofias, mas uma
sensibilidade” (PAZ, 2003, p. 171). Trata-se de uma sensibilidade que vem regada
pela experiência do esvaziamento, bem como de uma singular relação com a
realidade, pontuada pela “reconquista do instante”. Num dos clássicos
fascículos do Shôbôgenzô do grande mestre Dôgen (1200-1253) – Zenki – ele assinala
que “cada instante é um instante de plenitude” (DÔGEN, 2011, p. 33), e que o
despertar envolve a plena consciência desse instante presente.
Dentre as artes japonesas
que despontaram como transfiguradoras do instante situa-se a forma poética
conhecida como haikai[1],
essa “palavra cápsula carregada de poesia”, esse poema curto de 17 sílabas, com
três versos de 5,7 e 5 sílabas, derivado de outra expressão poética, denominada
renga ou variação dos poemas curtos do tanka. Os primeiros haikais remontam ao
princípio do século XIII (SAVARY, 1980, p. 27), mas ganharam expressão singular
com Matsuo Bashô (1644-1694) no século XVII. Os poemas curtos, envolvidos por
jogos de palavras, eram traços da poesia tradicional japonesa, reduzidos
“metricamente a sequências de cinco e de sete sílabas, e mesmo a prosa
cadenciada das narrativas poéticas
mantém, como base rítmica, a alternância desses metros fundamentais”
(FRANCHETTI; TAEKO DOI, 2012, p. 10).
A celebração do instante
é uma marca do haikai, de um instante incomensurável. Nesses breves poemas há
dois elementos importantes: aquele que expressa a circunstância geral e o outro
que envolve a percepção momentânea, ligados em geral por uma palavra cortante, kireji, que produz um efeito impactante,
semelhante ao exercido por um koan. Pode-se, do ponto de vista formal, falar em
duas partes:
“uma da
condição geral e da ubiquação temporal ou espacial do poema (outono ou
primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou um rochedo, a lua, um
rouxinol); a outra, relampagueante, de conter um elemento ativo. Uma é
descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge
do choque entre ambas” (PAZ, 2003, p. 163).
No
clássico exemplo do haikai de Bashô, sobre o sapo ou rã (kawásu) no velho tanque, temos os dois elementos. O elemento
passivo, que indica o velho tanque em “seu silêncio”; e o elemento ativo, que
envolve a surpresa ou impacto do salto do rã que transforma a quietude (tobikômu). É do encontro desses dois
elementos que emerge a iluminação poética.
Sobre
o tanque
um
ruído de rã
submergindo.[2]
Furu-ike
ya
Kawasu
tobikumu
Mizu
no oto.
O poema refere-se
“fielmente à beleza tanto como uma espécie de significação que por meio da mais
absoluta simplicidade desperta um sentimento de liberdade conceitual do leitor”
(SAVARY, 1980, p. 29 ). Algo se irradia desse silêncio de luz, provocando a
presença de um “mundo de ressonâncias”.
A relação com o zen
budismo é bem evidenciada na dinâmica dos haikais. Assim como nos koans, da
tradição rinzai, que levantam dúvidas e interrogações, também os haikais
provocam indagações. Igualmente avessos às racionalizações, eles buscam apontar
a realidade das coisas por meio do caminho da simplicidade, com ênfase nas
intuições. Mais que tudo, é “poesia vivida”. Os grandes mestres desta arte como
Basho, Buson ou Issa, deixam sempre algo no ar, nunca dizem tudo: limitam-se “a
entregar-nos alguns elementos, os suficientes para acender a chispa” (PAZ, 2003,
p. 165). Ainda que alusivamente, os haikais buscam dizer a realidade de forma
mais imediata e direta, despojando-se da carcaça racionalista. Seu desafio é
acender no olhar a capacidade de ver, de ver as coisas como são. Dizia Alberto
Caeiro, num jeito bem familiarizado ao zen: “O que nós vemos das cousas são as
cousas” (PESSOA, 1992, p. 217). Ou como expresso num dito zen: “Aprender sobre
o pinheiro com o pinheiro, e sobre o bambu com o bambu”.
O haikai provoca um
despertar, não há dúvida, e nesse sentido aproxima-se do satori destacado no
zen budismo, quando se rompe a relação entre sujeito e objeto, provocando uma
sabedoria distinta: prajna[3].
E o sentimento estético é vivido de forma mais intensa. O satori, como assinala
Suzuki, revela
“um olhar
intuitivo na natureza das coisas, por contraste com a compreensão lógica ou
analítica. Praticamente, ele significa a descoberta de um mundo novo,
desapercebido até então na confusão de um espírito formado no dualismo.
Poderíamos dizer ainda que com o satori, tudo o que nos cerca é visto sob um
ângulo de percepção totalmente inesperado” (SUZUKI, 1972, p. 270).
Assim como no despertar zen, algo semelhante ocorre
com a força poética e reveladora do haikai. Tudo concorre para a intensidade de
um momento estético único, de poesia pura:
Diante
do relâmpago
sublime
é aquele
que
dele nada sabe! (Bashô)
Esta
primavera em minha cabana
Absolutamente
nada
Tudo,
absolutamente! (Yamagushi Sodô)[4]
A presença de Bashô
Um
nome de referência para o estudo dos haikais é Matsuo Bashô, o poeta da
delicadeza espiritual. Ele nasce no ano de 1644 em Ueno, pequena cidade
japonesa vinculada à província de Iga. Provinha de uma família ligada à casta
dos samurais. Aprendeu a arte da poesia quando ainda morava no palácio dos
Todo, estando muito ligado ao jovem Todo Yoshimada (Sengin), herdeiro da
poderosa família. Sob a orientação de Kitamura Kigin (1624-1705), Bashô – que
adota o nome literário de Sobo -, e o amigo, Sengin, estudam a arte poética
japonesa, bem como caligrafia. Com a morte prematura de seu amigo, em 1666,
Bashô passa a se aprofundar na arte dos haikais, e resolve também assumir uma
vida pobre e errante. Inspirava-o o grande poeta do século XII, Saigyô,
conhecido por seu amor à natureza. Perambulou por todo o Japão, acomodando-se
em ermidas e pousadas, animado por dois grande amores: viver a vida e
aprofundar-se na poesia. Desta vida “de perambulações contam-se histórias
belíssimas mas o resultado mais importante destes anos consiste na notável
técnica alcançada por seus poemas, assim como pela nobreza de seu conteúdo,
virtudes que estenderam sua fama por todo o Japão” (SAVARY, 1980, p. 34-35).
O
contato com o zen budismo, através da presença do mestre Bucchô – então abade
do templo Konponji em Kashima – revigora a sua poesia, favorecendo uma
ampliação de horizontes. Isto ocorre a partir de 1681, quando conhece o mestre
zen, e então a concisão do haikai vem enriquecida com “a amplidão do pensamento
zen” (BASHÔ, 2008, p. 10; BASHÔ, 2001, p. 60-61). Chegou a viver por um tempo
retirado numa cabana em Fukagaha, nas proximidades de uma plantação de bananas,
daí a origem de seu nome (bashô: bananeira). Um incêndio em sua cabana,
ocorrido um pouco depois, incita-o a retornar a vida de peregrino, reforçando
nele ainda mais vivamente a percepção do sentido efêmero da vida.
Belos
são os relatos de suas viagens, entre os quais, o Pequeno manuscrito no alforge
(Oi no kobumi), datados de 1687, e publicados postumamente em 1709 (BASHÔ,
2006). Há também o clássico Sendas de Oku (Oku-no-Hoso-Michi).[5]
O poeta definia-se como “uma folha regida
pelo vento”, um viajante e itinerante, animado pelas “divindades ancestrais das
Estradas”. Outro singular diário de viagem, Trilha estreita ao confim, que
recolhe as impressões de um longo período de viagem, de aproximadamente quatro
anos – iniciado em 1689 – começa com as seguintes palavras:
“Dias e
noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes
que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos foram os
ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela
nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir” (BASHÔ,
2008, p. 31).
Viagem (tabi) e
viajante (tabi-bito to) são expressões
prediletas de Bashô. Estava sempre a caminho, dispondo-se de poucos recursos e
embalado pelo ritmo dos ventos filtrados pelos cedros. Tinha sempre diante de
si muitas léguas a percorrer: “Assim viajou Bashô, a pé, em sua vida errante,
por todo um Japão agreste e agrário, atrás de luas, lagos, templos dentro de
florestas, buscando o vaga-lume do haikai” (LEMINSKI, 2013, p. 84).
A cada
brisa
A
borboleta muda de lugar
Sobre o
salgueiro (Bashô).[6]
O estilo de vida
conduzido por Basho, em viagens e peregrinações desgastantes, acabou
enfraquecendo-lhe a saúde. Com pouco mais de quarenta anos já estava bem
alquebrado. Adoece gravemente no ano de 1694, e nesse mesmo ano morre cercado
de discípulos e amigos, sendo “enterrado às margens do lago Biwa alaúde em
japonês), no jardim do templo de Yoshinaka à sombra de uma bananeira (BASHÔ, 2008,
p. 17).
A poesia de Bashô respira
de uma atmosfera peculiar, pontuada pelas cores e sons da natureza. Em tudo o
que via pelo caminho reconhecia o brilho e a graça de uma flor. Luminosos eram
seus pensamentos. Tudo era para ele motivo de contemplação: a árvore, o corvo
sobre a árvore, as cigarras, os patos selvagens, as borboletas, a lua cheia na
noite, a neve iluminada, o brilho da luz sobre a pedra, as glicínias e camélias.
Tudo era para ele um “convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia”
(PAZ, 2003, p. 167). Os exemplos são muitos:
Um doce ruído
Interrompe
meu sonho:
Gotas
de chuva sobre a folhagem.
Imensa
calma.
Penetrando
as rochas
O
canto das cigarras.
De
que árvore florida
Chega?
Não sei.
Mas
é seu perfume...
Nesta
noite
Ninguém
pode deitar-se:
Lua
cheia.
Para
minha fadiga
Um
albergue... Mas, oh,
Estas
glicínias![7]
Nesses
pequenos poemas o mundo aparece em sua concretude mais viva, mais pura, mais
iluminada. Tudo está alí, à disposição do olhar: os objetos, os animais, os
ventos, as flores. O olhar sensível do poeta capta, num relance, o dado da
relação, a dinâmica da harmonia ou tensão que habita o universo, os seus
segredos ocultos. É justamente mediante a vigilância e atenção duradouros que o
poeta capta e traduz as relações menos perceptíveis e sutis que regem a teia do
tempo, a delicada e tenra dinâmica que preside e acalenta estados essenciais do
mundo interior, que podem irromper em despertar.
Na visão de Octavio Paz, estar diante dos haikais
de Bashô é ser convocado a uma aventura, que também foi a dele, uma “viagem
imóvel” que leva, na verdade, ao conhecimento de si mesmo. Tudo pode ser
resumido numa simples expressão: “a de nos perdermos no cotidiano para encontrar
o maravilhoso” (PAZ, 2003, p. 166). Sua poesia é um convite insistente para um
novo olhar, um olhar atento diante do real, como ele mesmo expressa num de seus
haikais:
Quando olho atentamente
Vejo
florir a nazuna
Ao
pé da sebe!
O
poeta é alguém que experimenta, que participa de um evento essencial: estar
diante da flor que, consciente de si mesma, em silêncio expressivo,
manifesta-se eloquentemente como dom. Assim como os poetas orientais, Bashô é
um “poeta da natureza”, que se identifica com ela, e ainda mais, deixa-se
habitar por sua pulsação, que lhe repercute nas veias. É alguém, como diz
Suzuki, que “sabe ler em cada pétala o mais profundo mistério da vida ou do
ser”, que sabe colher até numa haste de relva silvestre os traços da
transcendência. Ou seja, alguém capaz de perceber a “grandeza das coisas”
(SUZUKI et al, 1970, p. 10-11).
O instante privilegiado
Na
sétima elegia de Duíno, há uma sentença de Rainer Maria Rilke que traduz a mais
viva afirmação da vida: “Estar aqui é esplendor” (Hiersein ist herrlich)
(RILKE, 2013, p. 61). Como no canto de Zaratustra, o poeta celebra a força e a
beleza de cada instante: as manhãs de estio e a beleza da aurora, os dias junto
às flores, os campos nas tardes, a luz que dá sequência às tormentas tardias,
as grandes noites e as estrelas da
terra. Tudo vem coberto de um significado íntimo e profundo. Assim também
ocorre com os haikais, na celebração do instante incomensurável. Toda a carga
de emoção poética, concentrada, vem acionada para indicar o “instante
privilegiado”, que é também de silêncio reverencial (BARTHES, 2007, p. 93).
Essa pequena “capsula” de poesia não apenas apresenta a realidade, mas também –
de certa forma – faz a realidade saltar, suspendendo a linguagem. Uma arte que
Bashô conhecia tão bem:
Como é admirável
Aquele
que não pensa: “A vida é efêmera”
Ao
ver um relâmpago![8]
É sabido o influxo do mestre zen Bucchô sobre o
poeta Bashô. Num de seus relatos de viagem – Noite de viagem a Kashima – o
poeta fala sobre a visita que fez ao mestre-eremita que habita nos declives de
um monte em Kashima, e que durante a noite em sua cabana vislumbrou a
experiência profunda do que é a pureza do coração. Relata-se, inclusive, que o
clássico haikai da rã no poço foi composto depois de um momento de iluminação
junto ao mestre Bucchô (BASHÔ, 2001, p. 60; LEMINSKI, 2013, p. 92-93). O salto
da rã, na verdade, detém a linguagem e interrompe o fluxo habitual das
asserções cotidianas. O objetivo do poeta é trazer de volta o ser humano “ao
cotidiano mais elementar”. O que se visa é um “despertar diante do fato”, uma
“captura da
coisa como acontecimento e não como substância, acesso à margem anterior da
linguagem, contígua à opacidade (aliás inteiramente retrospectiva,
reconstituída) da aventura (aquilo que acontece à linguagem, mais ainda do que
ao sujeito)” (BARTHES, 2007, p. 102).
Ao
buscar entender a dinâmica que preside a composição do haikai sobre o salto da
rã no velho poço – cujo rumor na água teria despertado Bashô para a verdade do
zen - Roland Barthes sinaliza que Bashô
teria descoberto nesse ruído
“não o
motivo de uma ´iluminação`, de uma hiperestesia simbólica, mas antes o fim da
linguagem: há um momento em que a linguagem cessa (momento obtido à custa de
muitos exercícios), e é esse corte sem eco que institui, ao mesmo tempo, a
verdade do Zen e a forma, breve e vazia do haicai” (BARTHES, 2007, p. 97-98).
A razão de ser do haikai foge a qualquer
objetividade da linguagem, é algo que quebra a tradicional “radiofania interior”
que marca a rotina do dia-a-dia. Ele provoca uma suspensão do código da
linguagem, levando o leitor a ruminar o seu sentido, “até que o dente caia”,
até que ocorra a intuição singular. A pequena capsula poética visa encontrar a
“formulação justa”. O que ela busca apontar é muito simples: apenas o “é isso”
(BARTHES, 2007, p. 98; PERRONE-MOISÉS, 1982, p. 135):
No
perfume da flores de ameixa
O
sol de súbito surge –
Ah,
o caminho da montanha!
A lua da montanha
Gentilmente
ilumina
O
ladrão de flores.
(Issa)
“Ah!”
Foi
tudo o que disse –
Monte
Yoshino coberto de flores.
(Teishitsu)
Chuvas
de verão –
E
certa noite, de mansinho,
A
lua entre os pinheiros.
(Ryôta)
Doce
perfume –
Vem de
que flor?
Arvoredo
de verão.
(Taigi)
Que
maravilha:
Nas
folhas verdes, nas folhas novas,
Brilha o
sol!
(Bashô)
É outono
E eu
estou velho demais –
Nas
nuvens, os pássaros.
(Bashô)
Ah, o
orvalho da manhã –
Completamente
invisível
Sobre as
flores brancas.
(Kakei)
O ano
chega ao fim –
O vento
Faz soar
o vasto céu.
(Gyôdai)
Jogos e risos
Que
cessam:
Lua de
outono.
(Bashô)
Um doce
ruído
Interrompe
o meu sonho:
Gotas de
chuva sobre a folhagem.
(Bashô)
Chegado
pra ver as flores,
Sobre
elas dormirei
Sem
sentir o tempo.
(Buson)[9]
Duas das funções
essenciais da escrita clássica, a descrição e a definição, deixam de operar nos
haikais. Não há mais simples designação. Algo de mais profundo acontece quando
se diz no poema: é tal. Como se num lampejo de luz, o mundo invisível se manifestasse.
A palavra emerge como porta do sagrado, como um “arranhão de luz” expresso
assim na sua forma instantânea e curta. Mas como indica Barthes, esse flash de luz não tem por que, ele
“não
ilumina, não revela nada; é como o de uma fotografia que tirássemos com muito
cuidado (à japonesa), mas tendo esquecido de carregar o aparelho com a
película. Ou ainda. O haicai (o traço) reproduz o gesto designador da criança
pequena que aponta com o dedo qualquer coisa (o haicai não faz acepção do
assunto), dizendo apenas: isto!, com
um movimento tão imediato (tão privado de toda mediação: a do saber, do nome ou
mesmo da posse) que aquilo que é designado é a própria inanidade de toda
classificação do objeto: nada de especial,
diz o haicai, conforme o espírito do Zen: o acontecimento não é nomeável
segundo nenhuma espécie, sua especialidade falha; como um meandro gracioso, o
haicai se enrola nele mesmo, e a esteira do signo, que parece ter sido traçada,
se apaga: nada foi adquirido, a pedra da palavra foi jogada à-toa: nem vagas
nem escorrimento do sentido” (BARTHES, 2007, p. 112-113).
Com sua espantosa
simplicidade, o haikai convida o ser humano a participar da dinâmica de seu
momento: a apenas estar presente. Trata-se de uma perspectiva muito rica, bem
sintonizada com o modo de viver zen. Há também uma provocação no sentido de uma
mudança de perspectiva com respeito à natureza. Sugere um caminho novo, que
implica o deixar-se habitar pelo mundo, pela natureza. Em geral, a forma como o
ser humano relaciona-se com o mundo natural vem marcada pelo traço da
distinção, da diferença. Ele se sente diverso e o mundo natural aparece como
algo estranho e alheio. E esse sentimento pode se transformar em hostilidade:
“Cada galho de árvore fala uma linguagem que não entendemos; em cada matagal
dois olhos nos espiam; criaturas desconhecidas nos ameaçam ou escarnecem de
nós”. Esse sentimento, porém, pode ser transformado, caso algo aconteça na
nossa experiência de contemplação, ou caso nos demoremos na experiência da
contemplação. É o que sugere Octavio Paz em linda reflexão sobre o tema:
“Não somos
nada diante de tanta existência fechada em si mesma. E desse sentir-nos nada
passamos, se a contemplação se prolonga e o pânico não nos embarga, ao estado
oposto: o ritmo do mar se adapta ao compasso do nosso sangue; o silêncio das
pedras é o nosso próprio silêncio; andar nas areias é caminhar pela extensão da
nossa própria consciência, ilimitada como elas; os sons do bosque nos aludem.
Todos nós fazemos parte de tudo. O ser emerge do nada. Um mesmo ritmo nos move,
um mesmo silêncio nos rodeia” (PAZ, 2012, p. 160-161).
Há um toque de gratuidade
no haikai que é essencial, em linha de grande sintonia com a prática do zazen,
que envolve atenção e despojamento. Há que deixar “cair” corpo e mente (shinjin datsuraku) e estar simplesmente
presente, ou como também se diz: simplesmente sentar (shikantaza). Assim como na zazen, também no haikai rompe-se com a
ideia de finalidade. Como expressa Barthes, “o haikai não serve a nenhum dos
usos (eles mesmos entretanto gratuitos) concedidos à literatura”. Na verdade,
ele é regido por outra dinâmica, sem intenção propriamente produtiva. O que ele
indica ou sugere é um “despertar diante do fato”. Grandes mestres da tradição zen, como Kodo
Sawaki (1880-1965), souberam traduzir com muita felicidade essa percepção do
cotidiano captado na sua “elementar maravilha”, na dinâmica do respeito e da
gratuidade (mushotoku). Em dada
ocasião, o mestre havia observado: “Os homens acumulam conhecimentos, mas penso
que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as cores da
montanha” (FAZION, 2003, p. 101).
Referências
Bibliográficas:
BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BASHÔ, Matsuo. Elogio
della quiete. Milano: SE SRL, 2001.
BASHÔ, Matsuo. Piccolo
manoscritto nella bisaccia. SE SRL, 2006.
BASHÔ, Matsuo. Trilha
estreita ao confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.
BRANDÃO. Carlos Rodrigues. Três linhas. Haikais traduzidos e recriados. Disponível em:
http://carlosrodriguesbrandao.blogspot.com.br/2011/09/tres-linhas.html. Acesso em: 25 mai. 2015.
DÔGEN, Eihei. Zenki.
Chaque instant est un instant de
plenitude. St-Just-La-Pendue: Les Belles Lettres, 2011.
FAZION, Gianpietro Sono. Lo Zen di Kodo Sawaki. Roma: Ubaldini, 2003.
FRANCHETTI, Paulo & TAEKO DOI, Elza. Haikai. Antologia poética. 4. Ed.
Campinas: Editora Unicamp, 2012.
LEMINSKI, Paulo. Vida. 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
PAZ, Octavio. Signos
em rotação. 3 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
PAZ, Octavio. O
arco e a lira. O poema. A revelação poética. Poesia e história. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.
PESSOA, Fernando. Obra poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1982.
RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.
SAVARY, Olga. O
livro dos hai-kais. São Paulo: Massao Ohno & Roswitha Kempf, 1980.
SUZUKI, Daisetz Teitaro. Essais dur le Bouddhisme Zen. Paris: Albin Michel, 1972.
SUZUKI, D.T.; FROMM, E.; MARTINO, Richard de. Zen budismo e psicanálise. São Paulo:
Cultrix, 1970.
(Publicado na Revista Interações: Cultura e Comunidade.
PUC-Minas, Departamento de Ciências da Religião, v. 10, n. 17, 2015, p. 48-61)
[1] Optamos aqui por trabalhar com a expressão haikai e
não haiku, seguindo a mesma argumentação de Leyla Perrone-Moisés, que entende
que esta é “a forma mais corrente (aportuguesada) nos textos brasileiros sobre
o assunto”: PERRONE-MOISÉS, 1982, p. 134.
[2] Tradução de Olga Savary (O livro
dos Hai-Kais).
[3] A expressão prajna
envolve um conhecimento transcendental não discriminante. Como sublinha Suzuki,
“Prajna é a experiência por que passa
o homem quando percebe, no sentido mais fundamental, a infinita totalidade das
coisas, isto é, psicologicamente falando, quando o ego finito, rompendo sua
crosta rija, se reporta ao infinito, que envolve tudo o que é finito e limitado
e, portanto, transitório”: SUZUKI et al, 1970, p. 88.
[4] Traduções de Carlos Rodrigues
Brandão (Três linhas).
[5] São ao todo cinco diários de
viagem, com apontamentos e impressões colhidos pelo poeta em suas
peregrinações. O texto em prosa (haibun) vem complementar os poemas, rodeando
os haikais como paisagens referenciais.
[7] Todos estes haikais de Bashô
recolhidos da obra de SAVARI, 1980.
[8] Apud BARTHES, 2007, p. 95.
[9] FRANCHETTI; TAEKO DOI, 2012, p. 86, 87,89, 101,114, 116, 123, 137,153;
SAVARY, 1980, p. 60, 63 e 87.