A salvaguarda da diversidade e a
defesa da criação
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Resumo
A partir de
um desafio lançado pelo Comissão Teológica Internacional da EATWOT, em torno do
paradigma pós-religional, o texto busca reagir a questões pontuais como a crise
das religiões, o colapso dos exclusivismos e a emergência das novas
espiritualidades. Na argumentação proposta, verifica-se que de fato está em
curso uma crise das “instituições tradicionais produtoras de sentido”, sem que
isto ocasione necessariamente o desaparecimento da religião, mas uma
diversificação no modo de sua presença no tempo. Como ponto de concordância com a proposta, em
favor de um novo paradigma pós-religional, há a percepção da irradiação cada
vez mais patente de espiritualidades que vão se firmando, mesmo fora dos
arranjos religiosos. Essa presença talvez seja um traço peculiar e novidadeiro
desse novo milênio. Ao final, busca-se sinalizar o diálogo, a salvaguarda da
diversidade e a defesa da criação como passos essenciais na nova configuração
das espiritualidades e religiões no tempo atual.
Palavras-chave: Religião; Espiritualidades; Diálogo; Criação; Terra
Introdução
Responder ao convite de Horizonte – Revista de
Estudos de Teologia e Ciências da Religião para abordar esta complexa questão
de um possível paradigma pós-religional foi para mim desafiante. Em primeiro
lugar, por não estar muito certo sobre a plausibilidade desta hipótese, embora
veja a importância da discussão que ela levanta. Em segundo lugar, pelo espaço
que se abre para levantar novas indagações a respeito do momento atual que
envolve tanto as religiões como as espiritualidades, mas também sobre a dinâmica
em curso sobre o novo passo relacional dos seres humanos, neste momento, que
alguns vêm designando como Antropoceno, ou seja, uma nova era do humano,
enquanto agente geológico, caracterizada por seu impacto sobre a Terra, onde se
firmam condições profundamente adversas para o futuro da espécie humana.
Em defesa de um paradigma
pós-religional tinha já se posicionado a Comissão Teológica Internacional da
EATWOT, em artigo publicado em Koinonia - Revista Electrónica Latinoamericana
de Teología.[1] É
uma discussão que vem sendo levada adiante por um segmento de teólogos, entre
os quais destaca-se José María Vigil, que esteve também na ousada iniciativa da
Comissão Teológica Latino-Americana da ASETT/EATWOT em favor de um diálogo
criativo da teologia da libertação com a teologia do pluralismo religioso.
Foram cinco volumes publicados, com o título amplo Pelos muitos caminhos de Deus. No quinto volume, publicado em 2011,
propunha-se o tema de uma teologia planetária e multirreligiosa (uma teologia interfaith). Como sua marca, uma
perspectiva leiga, livre das amarras institucionais, não inclusivista e de
perfil cosmo-biocêntrica, voltada sobretudo para “humanizar a humanidade e o
planeta” (VIGIL, 2011, p. 276 e 277). Este quinto volume veio precedido de uma
consulta realizada com teólogos de diferentes religiões e de várias partes do
mundo, levantando uma série de indagações, entre as quais a possibilidade de um
caminho previsto em direção a algo além de uma “teologia confessional
pluralista”. A consulta vem concluída com algumas “perguntas concisas”, onde se lança a hipótese do traço pós-religional
de uma espiritualidade interfaith
(VIGIL, 2011, p. 17-18).
Esta proposta de um paradigma
pós-religional vem também defendida, com seus traços peculiares, pelo teólogo
espanhol Marià Corbí (1932 - ), diretor do Centro de Estudo das Tradições
Religiosas de Barcelona (CETR). Trata-se de um autor ainda pouco conhecido no
Brasil, e que vem se dedicando ao estudo das transformações geradas pelas
sociedades pós-industriais, em particular o seu impacto nas tradições
religiosas. Na perspectiva por ele defendida, nas atuais sociedades de conhecimento,
as religiões deixam de ocupar a centralidade que encontravam nas sociedades
pré-industriais, e o seu interesse vem substituído pela busca de
espiritualidade em variegadas formas de expressão. Como ele sublinha, “a grande
maioria dos jovens não quer saber nada de religião. Para eles, a religião não é
sequer um problema. Nem a consideram nem a combatem, pois, para os jovens, a
religião é só coisa de tempos passados e de gerações passadas” (CORBÍ, 2010, p.
15). Mas esse desinteresse pela religião não traduz um desencanto com a
espiritualidade e com a busca diversificada de novos caminhos de sensibilização
e busca interior. Isto é também um fenômeno recorrente, entre os jovens.
Este é um tema importante, que
envolve não apenas os países da Europa, onde as igrejas encontram-se vazias e
os agentes religiosos tradicionais perdem o seu prestígio cultural, mas
firma-se igualmente em países do Terceiro Mundo e em desenvolvimento onde o
fenômeno dos “não afiliados” ou “sem religião” firma-se a cada década de forma
singular e importante.
1 A crise das “instituições
tradicionais produtoras de sentido”
Não há
como negar no tempo atual a presença de uma crise nas instituições religiosas
tradicionais, e de modo muito particular no cristianismo. Isto ocorre não apenas
na Europa, mas também em parte substantiva das Américas. Um olhar mais
abrangente capta essa sangria de participação, que vem corroborada pelo
crescimento dos “não afiliados” nas várias partes do mundo. De acordo com o
relatório do Pew Research Center,
publicado no final de 2012, cerca de 16,3% da população de nosso globo
terrestre enquadra-se nesta categoria, com uma presença importante em países
como a China, Japão e Estados Unidos[2].
No Brasil, os “sem religião” firmam-se como terceira força na declaração de
crença do Censo Demográfico, como ocorreu na divulgação dos dados do Censo de
2010. Eles somam cerca de 15,3 milhões de pessoas, ou seja, 8% da população
geral (TEIXEIRA, 2013, p. 27).
Buscando explicar o refluxo das religiões tradicionais no
Brasil, com base no Censo de 2000, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci
justifica tal situação com o clima instaurado nas sociedades pós-tradicionais,
com a crise das filiações rotineiras:
Nas
sociedades pós-tradicionais, et pour cause,
decaem as filiações tradicionais. Nelas os indivíduos tendem a se desencaixar
de seus antigos laços, por mais confortáveis que antes pudessem parecer.
Desencadeia-se nelas um processo de desfiliação em que as pertenças sociais e
culturais dos indivíduos, inclusive as religiosas, tornam-se opcionais e, mais
que isso revisáveis, e os vínculos, quase só experimentais, de baixa
consistência. Sofrem, fatalmente, com isso, claro, as religiões tradicionais (PIERUCCI, 2004, p. 19).
Alguns acreditam que inclusive o termo religião não
consegue mais dar conta dos caminhos trilhados pelos novos buscadores da fé. É
o caso do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, que prefere falar em “sistemas
de sentido”. Em texto biográfico, onde visa traçar seu itinerário de buscador,
Brandão levanta uma questão que se coloca com cada vez mais pertinência para
muitas pessoas que, como ele, vivem uma “diáspora de fé”. São pessoas que
descobrem, com angústia e perplexidade, que lhes “falta um nome” para definir o
universo específico de sua crença em tempos de tantas mudanças. O antropólogo
carioca traduz de forma muito feliz o sentimento de muitos de seus
contemporâneos:
Está
ocorrendo algo que a todos nós parece evidente, só que ainda pouco compreensível:
tal como outros campos sociais e simbólicos dos mundos em que vivemos nossas
vidas, o campo da religião ´já não é mais como era`. E não apenas porque mudam
as porcentagens dos censos e as variações das alternativas de escolhas e formas de fé, de estilos de crença e de
modos de vida religiosa e/ou espiritual. Talvez a pergunta essencial não seja
´quem está crendo no que`, mas de que plurais maneiras pessoas que ´creem no
mesmo` estão participando diferencialmente de uma mesma fé, de uma mesma
crença, de uma mesma religião, de uma mesma espiritualidade (BRANDÃO, 2012b, p.
76-77).
Não são poucos itinerantes, como Brandão, que
buscam novas formas de viver a religião ou a espiritualidade. Esse campo da
busca axiológica vem sendo tecido por singular diversidade nas formas de
conceber, crer e praticar a experiência do sentido, o que se dá dentro e fora
das práticas religiosas usuais. Um clássico livro publicado na Alemanha em
1990, depois traduzido ao espanhol em 1992, abordava justamente esta questão
das modalidades da crença no tempo atual. Nesta obra, diversos intelectuais,
artistas, religiosos e pensadores buscaram responder a uma simples questão: Em que creio eu ? Dentre os que
responderam: Hans Albert, Shalom Ben-Chorim, Keith Jarret, Karl Popper,
Fernando Savater, Peter Singer e Dorothee Sölle (ALBERT et al, 1992). No
compasso das respostas, uma sensação comum: da permanência em nosso tempo do
eterno problema da busca do fundamento e do sentido da vida humana. E também a
consciência da quebra das barreiras rígidas e dogmáticas e da importância essencial
da liberdade. Curiosamente, um dos grandes vaticanistas da atualidade, Luigi
Accattoli, reconhece como uma das mais singulares novidades aportadas pelo papa
Francisco a defesa da liberdade, bem como a inaceitável “ingerência espiritual
na vida da pessoa” (ACCATTOLI, 2014, p. 117).
Estamos diante de algo que é
incontestável: a insatisfação face às instâncias tradicionais de sentido e a
busca por caminhos novos. Algo inusitado surge nos movimentos individuais e
coletivos de busca de sentido. Há também uma demanda por novas leituras, que
permeiam e avançam para além da perspectiva teísta, como também lembrou Carlos
Rodrigues Brandão:
Quando
converso com vários amigos que foram como eu cristãos católicos engajados em
algum movimento de igreja vejo que uma soma considerável deles (eu incluído)
está precisando agora realizar uma espécie de releitura não teísta em sua fé
para poder se manter ainda cristão, mesmo que já não mais restritamente...
católico. Muitos de nós precisamos crer que o próprio Jesus nunca foi o Cristo;
nunca foi um ´deus enviado a Terra para nos salvar de nosso próprio pecado
coletivo`, para acreditarmos não na mitologia, mas na substância humana dos
evangelhos. Não precisamos mais de um deus-homem milagreiro que ´morreu para
nos salvar` , e depois ressuscitou para nos dizer que isso irá acontecer com
todos nós (pelo menos com o pequeno rol ´dos salvos`). Precisamos de um
homem-deus (justamente porque humano) que, entre vários outros, nos diga
palavras de sentido e nos envolva de gestos de ternura... para que saibamos
como viver e para onde ir, mesmo que não haja ´um céu para os eleitos`.
(BRANDÃO, 2012a, p. 57).
2 Um jeito diverso de presença
do religioso
Num clássico texto de Durkheim, que reproduz uma
conferência realizada em janeiro de 1914, na União dos Livres Pensadores
(Paris), ele dizia que enquanto houver sociedade humana haverá religião,
entendida como um sistema de forças superiores, dinamogênico, que atua sobre as
pessoas e a sociedade. Firmava a ideia de que um tal sentimento, demasiado
geral à humanidade, não poderia ser algo ilusório (DURKHEIM, 1969, p. 77).
A teoria sociológica evidenciou esse
traço da religião como projeção humana e duradoura. As religiões instituídas
são, de fato, “historicamente construídas”, e não podem ser concebidas como
fundadas na dimensão do humano, como tendem mostrar as análises mais
essencialistas. Elas são, na verdade, construções culturais. E o que
circunscrevem, como apontou Pierre Gisel, “não se encontra em todas as culturas
ou em todas as civilizações” (GISEL, 2011, p. 169). Foi o que igualmente
indicou a Comissão Teológica Internacional da EATWOT, em sua proposta de um paradigma
pós-religional: as religiões não estiveram sempre em cena. As mais antigas,
como o hinduísmo, remontam a 4.500 anos. O que sempre esteve presente, adverte
o documento, foi o homo spirituales,
não necessariamente religioso.
Há autores que no âmbito da reflexão
acadêmica quiseram ampliar esse campo semântico da religião, visando trabalhar
com um conceito “lato” de religião, distinto do conceito a que estamos
habituados. É o caso de autores como Paul Tillich e Keiji Nishitani. Buscam com
sua análise resgatar uma dimensão mais ampla ao termo: seja associando-o à dimensão
de profundidade (TILLICH, 1968, p. 96) ou de consciência mais profunda da
realidade (NISHITANI, 2004, p. 35-36). Mas tais propostas fogem do objetivo
proposto neste artigo. O que buscamos evidenciar aqui é justamente o campo
movediço no qual as expressões religiosas hoje se apresentam. A categoria religião
vem ganhando, assim, uma “pletora de significados”, assim como também o “campo
religioso”, envolvendo a presença de aspectos que não se enquadram precisamente
no âmbito das religiões. Como assinalaram Carlos Steil e Rodrigo Toniol, o
conceito mesmo de religião torna-se hoje inadequado para “designar um habitus que se expressa por meio de
espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado que compõem
determinado regime de crer” (STEIL; TONIOL, 2012).
Outra questão se coloca para o
analista atento à presença do religioso em nosso tempo atual. A forma movediça
e fluida com que ela se apresenta na situação contemporânea. O estudioso
francês, Philippe Portier, fala em “mutações do religioso” ao abordar a questão
da religião na França contemporêna. Ali se dá, a seu ver, um fenômeno muito
interessante. Por um lado, a dessubstancialização do catolicismo, ou seja, seu
enfraquecimento institucional. Por outro, o reencantamento da civilização
republicana, também tomada pelo influxo da “nebulosa místico-esotérica” ou de
uma espiritualidade secular e leiga (PORTIER, 2012).
Estudos realizados na Europa
sublinham uma nova configuração do fenômeno religioso. Indicam também a perda
do poder de imposição das instituições tradicionais sobre os seus fiéis. Verifica-se
a presença sutil de um “religioso difuso” que se irradia pela sociedade. O
caminho religioso passa agora, necessariamente, pelas escolhas realizadas. Não
há mais garantia da tradição como força de imposição sobre os sujeitos. E a
forma de ligação com as instituições é muito menos rígida que no passado. Isto
não significa a morte das religiões, mas sua presença diferenciada. Como bem
mostrou Jean-Paul Willaime, o avanço da modernidade não ocasionou a morte da
religião, mas possibilitou novos arranjos para o seu exercício no tempo.
Sublinha a necessidade de romper o esquema tradicional que vincula o avanço da
modernidade com o enfraquecimento das religiões. O que se dá em verdade com o
avanço da modernidade é a irrupção de novas possibilidades de presença do
religioso: “Plus de modernité = du religieux autrement” (WILLAIME, 2012, p.
23).
Não há dúvida, porém, sobre a
crescente “desinstitucionalização” da religião no tempo atual. As buscas
identitárias e espirituais deixam de ser vividas com a exclusividade do
passado. Tornam-se muito mais fluidas e livres. Quebra-se o monolitismo de
tradições que se apresentam como imutáveis, firmadas em dispositivos institucionais
normativos e rígidos. Como pontuou Pierre Sanchis, “as estruturas sólidas que
fundavam, enquadravam, regulavam o universo das experiências religiosas,
conferindo-lhes distinção, identidade e conteúdo, não o fazem mais com o mesmo
rigor, e até quando se reafirmam com renovado vigor, não o fazem com a mesma
abrangência.” (SANCHIS, 2013, p. 13; LENOIR, 2012, p. 5).
3 Questões em torno de um novo
paradigma pós-religional
Na proposta da Comissão Teológica Internacional da
EATWOT em torno do paradigma pós-religional estão em jogo algumas questões bem
precisas. Em primeiro lugar, a distinção entre “religioso” e “religional”. Não
se fala em fim do “religioso”, entendido como “dimensão misteriosa do ser
humano”. Esta dimensão permanece e anima a dinâmica das espiritualidades que
vão se firmando no tempo. O que entra em crise é o “religional”, entendido como
o “âmbito das configurações sócio-culturais e institucionais” que conformaram
as religiões agrícolas do período neolítico. Essas tradições, sim, sofrem um
derradeiro impacto com a nova situação cultural que se desdobra com as
transformações científicas e o processo de industrialização, iniciados nos
séculos XVI e XVII, culminando nas novas sociedades de conhecimento. Marìa Corbí aborda em sua obra o impacto que
acompanha a irrupção destas novas sociedades, que segundo ele “vivem da criação
de conhecimentos”, estando animadas por inovações substantivas em quatro
âmbitos: das inovações científicas, tecnológicas, organizativas e axiológicas
(CORBÍ, 2010, p. 158). Para este autor, as religiões, assim como constituídas,
não conseguem acompanhar a dinâmica das sociedades desenvolvidas, ficando cada
vez mais à margem. Esse descompasso deve-se à forma como às religiões vivem sua
experiência da “dimensão absoluta da realidade”, mais instrumentadas para
responder a desafios das sociedades pré-industriais. O documento da EATWOT
segue, em geral, uma lógica semelhante à traçada por Corbí. Também identifica o
tempo das religiões com o mundo agrário-neolítico, que tende a soçobrar com a
afirmação da sociedade do conhecimento.
Em
segundo lugar, o traço exclusivista e de controle ideológico que em geral
acompanha o exercício da religião. O documento da Comissão da EATWOT reitera
esse traço demasiadamente humano das religiões, surgidas “aqui de baixo”, e
sujeitas aos efeitos da absolutização. Elas foram tomadas pela sede de
absolutização, com a atribuição de sua origem ao próprio Deus. E essa
perspectiva foi também sendo minada com a dinâmica da sociedade de
conhecimento: “Hoje estamos perdendo a ingenuidade desse caráter absoluto das
religiões”, diz o documento. O que antes era verdade auto-evidente, perde sua
transparência e passa a ser objeto de discussão, dúvida e contestação. Na nova
ocular, as religiões são assim entendidas como um “fenômeno histórico”
contingente e limitado.
Em terceiro lugar, a ênfase concedida
à espiritualidade, enquanto “dimensão constitutiva humana” (COMISIÓN, 2014;
CORBÍ, 2014, p. 690). Trata-se de uma dimensão que antecede às formas de
inscrição das religiões e que perdura no tempo, atuando mesmo fora da dinâmica
religiosa. Como indica o Documento da Comissão da EATWOT, “podemos prescindir
das religiões, mas não podemos prescindir da dimensão da transcendência do ser
humano”.
A proposta de um paradigma
pós-religional tem seus aspectos positivos, como por exemplo a crítica ao modo
de inserção das religiões no tempo, aos riscos de exclusivismos e
fundamentalismos; a ênfase dada sobre o caráter
histórico e contingente das religiões. A linha de argumentação é
precisa: as religiões não estiveram presentes desde sempre, não sendo
igualmente – por natureza – destinadas a durar eternamente. Ocorre que elas
continuam aí, presentes, ainda que em processo contínuo de transformação. Assim
como foi um equívoco em tempos passados decretar o fim da religião, em razão do
crescimento da secularização, corre-se o risco de repetir algo semelhante, com
a indicação da crise da religião em razão da afirmação de uma nova situação
cultural com as sociedades de conhecimento. Acho precipitado, no momento,
decretar sua falência. Entendo que elas estarão no cenário ainda por muito
tempo, como apontam os clássicos como Émile Durkheim ou Peter Berger (BERGER,
2001, p. 19-21). Vejo, sim, que a seu lado estarão vicejantes, e com força
crescente, uma gama de espiritualidades, religiosas ou não, respondendo ao
fundamental imperativo humano de busca de sentido.
4 Um tempo de crise do
antropoceno
Com base em reflexões que vão sendo tecidas em
âmbito multidisciplinar, considero essencial ampliar o olhar para além da
configuração das “novas sociedades industriais de conhecimento, inovação e
mudança” – como proposto pelo paradigma pós-religional – e pensar para além do
antropocentrismo. Somos hoje provocados a incluir em nosso projeto de defesa do
pluralismo a questão fundamental da unificação da diversidade cultural com a biodiversidade.
Como mostrou Eduardo Viveiros de Castro, “a diversidade humana, social ou
cultural, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural – é ela que
nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de
interiorizar a diversidade ´externa`(ambiental) e assim reproduzi-la” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2007, p. 256).
Com a entrada no novo século, nós,
os humanos modernos, nos damos cada vez mais conta de que somos mortais e
mortíferos. Junto com essa consciência, o início de irradiação de uma percepção
nova e urgente: de que pertencemos a vida e não o contrário. Toda a lógica que
moveu nossa sede de empreendimentos, também no campo da religião, esteve ainda
enquadrada numa perspectiva antropocêntrica. Daí a importância de uma mudança
de rumo, que implica a inserção do “ambiente” e das “espécies de companhia” em
nossa compreensão do “nós”. Isso significa entender que a diversidade é
simultaneamente um fato social e ambiental, e que é “impossível separá-los sem
que não nos despenhemos no abismo assim aberto, ao destruirmos nossas próprias
condições de existência” (VIVEIROS DE CASTRO, 207, p. 257).
Acolher esta diversidade em tom
maior é ampliar o desafio dialogal, envolvendo novos e fundamentais parceiros.
O grande desafio que vem apresentado é o de habitar dignamente o mundo,
acolhendo com alegria a riqueza da diversidade das espécies, reconhecidas agora
como portadoras de um valor intrínseco. Para que isto aconteça, é necessário
quebrar com a dicotomia que isola o ser humano de seu mundo “lá fora”. Habitar
o mundo é a condição primeira, que antecede todo e qualquer processo de
empreendimento construtivo (INGOLD, 2004, p. 113 e 216).
Os seres humanos não são mônadas
isoladas, e muito menos espécies superiores na sua excepcionalidade. O que
caracteriza o ser humano é sua teia de relações, sua capacidade de “habitar um
devir-com”. É no rico processo de interação com as alteridades que o humano
ganha vida e brilho. É assim que se constitui, nas relações dinâmicas com as
“espécies de companhia” (Donna Haraway). Trata-se de um grave equívoco
dissociar as entidades de seu ambiente. Daí se recorrer a um conceito da
biologia, o conceito de holobiontes, para mostrar a riqueza das
relacionalidades: é nesse processo que vai se firmando uma unidade sempre em
construção.
Há que romper o “circuito narcísico
do nós” e deixar-se habitar pela presença de outros coletivos. A fixação na
excepcionalidade dos humanos acabou reforçando os etnocentrismos e provocando
violência por todo canto. Eduardo Viveiros de Castro sintetizou isto muito bem
em entrevista concedida a Eliane Brum:
Tem uma
frase que o Lévi-Strauss escreveu certa vez, que é muito bonita. Ele diz que
nós começamos por nos considerarmos especiais em relação aos outros seres
vivos. Isso foi só o primeiro passo para, em seguida, alguns de nós começar a
se achar melhores do que os outros seres humanos. E nisso começou uma história
maldita em que você vai cada vez excluindo mais. Você começou por excluir os
outros seres vivos da esfera do mundo moral, tornando-os seres em relação aos
quais você pode fazer qualquer coisa, porque eles não teriam alma. Esse é o
primeiro passo para você achar que alguns seres humanos não eram tão humanos
assim. O excepcionalismo humano é um processo de monopolizaçãoo do valor. É o
excepcionalismo humano, depois o excepcionalismo dos brancos, dos cristãos, dos
ocidentais... Você vai excluindo, excluindo, excluindo... Até acabar sozinho,
se olhando no espelho de sua casa. O verdadeiro humanismo, para Lévi-Strauss,
seria aquele no qual você estende a toda a esfera do vivente um valor intrínseco
(BRUM, 2014).
O caminho em aberto envolve o resgate essencial da
dignidade da diferença. Não há protagonismo do ser humano, há cadeia dialogal,
processo dinâmico de aprendizados diversificados. Fala-se hoje com razão na
ampliação do quadro da alteridade, com o reconhecimento da dignidade dos
viventes e da qualidade de seu valor. Reconhecer isso é ampliar a esfera dos
direitos, para além dos direitos humanos: é “reconhecer direitos característicos
e próprios daquelas diferentes formas de vida” (BRUM, 2014).
Não são pequenas as barreiras em curso que
dificultam esse processo de abertura à diversidade. A forma como o ser humano
se inseriu no tempo provocou esta dificuldade, é o que os estudos em curso
mostram hoje com muita clareza. Fala-se em Antropoceno[3]
como a era dos humanos, ou seja, uma nova era que se sucede ao Holoceno[4],
marcada pela presença do agente humano como agente geológico, na medida em que
sua ação predatória no tempo altera a paisagem do planeta, comprometendo o
exercício vital de sua própria espécie e dos outros seres vivos. Ou seja, a
humanidade deixa “registros” problemáticos que configuram condições para os
parâmetros utilizados na determinação da mudança do tempo geológico da Terra.
Nesta nova Idade da Terra nos
deparamos com situações que beiram a calamidade e anunciam um horizonte
tenebroso para a humanidade. Os exemplos são múltiplos para expressar a crise
ambiental planetária: o choque da regulação planetária com a diminuição e perda
da biodiversidade e a desestabilização dos ecossistemas[5];
o aquecimento global e o encaminhamento para a morte térmica do planeta; a
queima dos combustíveis fósseis e sua incidência nas mudanças climáticas; a
acidificação dos oceanos, colocando em risco a cadeia alimentar etc.
No Brasil, os índios, que são
especialistas em fim de mundo, são os primeiros a levantar sua voz crítica
contra os desmandos do Antropoceno, contra esse mundo diminuído e empobrecido.
O líder Yanomani, David Kopenawa[6],
descreve de forma impressionante a situação, em depoimento de 1998:
Nos
primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram
pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras, mas não o
escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e
petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar
sob a terra e a água porque seu calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram
e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se
tornaram eufóricos e se disseram: ´Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só
nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!´. Foi nesse
momento que eles perderam realmente toda sabedoria (KOPENAWA, 1998).
É curioso observar que não só os índios brasileiros
como também os pequenos agricultores vão se dando conta com sua sensibilidade
apurada que mudanças estão ocorrendo, e captam que algo sério vem acontecendo:
No
calendário agrícola de uma tribo indígena você sabe que está na hora de plantar
porque há vários sinais da natureza. Por exemplo, o rio chegou até tal nível, o
passarinho tal começou a cantar, a árvore tal começou a dar flor. E a formiga
tal começou a fazer não-sei-o-que. O que eles estão dizendo agora é que esses
sinais dessincronizaram. O rio está chegando a um nível antes de o passarinho
começar a cantar. E o passarinho está cantando muito antes de aquela árvore dar
flor. É como se a natureza tivesse saído de eixo. E isso todos eles estão dizendo.
As espécies estão se extinguindo, e a humanidade parece que continua andando
para um abismo (BRUM, 2014).
Diante da atuação dos brancos, e sua sede
aceleracionista, os líderes indígenas e seus xamãs advertem para os riscos que
se apresentam. A leitura que fazem das graves secas ou inundações que vão se
sucedendo nas diversas partes do planeta é bem peculiar, sendo interpretados
com o registro de suas escatologias: trata-se de uma “vingança sobrenatural”.
Gaia não é apenas uma mãe-bondosa que acolhe com alegria os seus filhos, mas é
também a “intrusa” que reage de forma rebelde e dura aos ataques do
Antropoceno. Essa face da “intrusão” de Gaia vem sendo defendida nos últimos
anos pela pesquisadora Isabelle Stengers, de modo particular na sua obra “Au temps des catastrophes: résister à la barbarie
qui vient” (2009)[7].
Gaia é assim uma figura “ambígua e complexa” que acorda furiosa neste tempo de
catástrofes. Ela é “a transcendência que responde, de modo brutalmente
implacável, à transcendência igualmente indiferente, porque brutalmente
irresponsável, do Capitalismo” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 143). O
que se revela é um conflito assimétrico, onde os humanos são muito mais
desprovidos diante da força imperativa de Gaia, uma “estranha guerra” onde a
derrota já está traçada (LATOUR, 2012, p. 483).
A revolta de Gaia traduz assim uma
“provocação anti-modernista”, contra os destemperos da ação humana no
Antropoceno. Revela também um aceno contra o “crescimentismo” em curso,
acordando nos corações e mentes uma advertência essencial: “O que estamos
fazendo com Terra onde a gente vive?”. Trata-se de uma crítica impiedosa aos
caminhos necrófilos da humanidade, que protagonizou uma invasão contra si
mesma. E são hoje os índios – entendidos aqui em seu sentido lato[8],
os terranos – que voltam ao cenário apontando para os humanos os caminhos
possíveis para “viver melhor em um mundo pior”.
Há uma parte da espécie, o povo de
Gaia, também reconhecido como terrano, que se ergue contra o rumo do tempo e
luta contra esta afirmação de um “mundo sem nós”, de um mundo diminuído e
desambientado. O povo de Gaia é um povo ligado “ontológica e politicamente à
causa da Terra”, e se rebela contra os Modernos (os humanos) em sua sandice
desenvolvimentista. Estes preferiram permanecer como humanos no Holoceno. O
povo de Gaia não, é um povo que capta o chamado de resistir ao Antropoceno,
mesmo situando-se em seu dorso, mas criticamente. O inimigo, na verdade, são os
Humanos mesmos.
Da teia que envolve o povo de Gaia
participam também muitas vozes das religiões, como é o caso de Dalai Lama e
agora também o papa Francisco. Em dois momentos recentes, Francisco lança o seu
protesto contundente contra a devastação da terra e o descaso com a criação,
como na homilia da celebração realizada no cemitério romano de Verano no início
de novembro de 2014; e também no discurso do Encontro Mundial dos Movimentos
Populares, ao final de outubro do mesmo ano. Neste último encontro ele falou de
três direitos sagrados que marcam a luta dos pobres: a terra, o teto e o
trabalho. São direitos que se irradiam do centro do evangelho. Reiterou também
que estes direitos não podem se realizar quando se carece de paz e se destrói o
planeta. E concluiu afirmando que “todos os povos da terra, todos os homens e
mulheres de boa vontade têm que levantar a voz em defesa desses dois dons
preciosos: a paz e a natureza” (PAPA FRANCISCO, 2014a)[9].
Conclusão
A proposta teológica em favor de um paradigma pós-religional
aventa a questão de que as religiões não são eternas, não duram para sempre. Há
um traço de verdade nessa reflexão ao sinalizar que as religiões são “fragmentos”
e estão marcadas pelo sulco da contingência e da impermanência. Tudo bem! Não
há dúvida sobre isso. Mas diante do desafio maior que está adiante, da crise
ambiental planetária, elas são convocadas a uma presença mais viva no tempo e
ao imperativo dialogal entre si. Isto vale também para as espiritualidades que
vão surgindo por todo canto. Religiões e Espiritualidades são desafiadas a
alinharem-se com os terranos na luta em favor da
salvaguarda da criação. Firma-se uma nova aliança, que irmana as diversas
“espécies de companhia” num empenho comum em favor da Vida. Seguindo a pista
aberta por Donna Haraway, a reação dos terranos envolve o desafio “de habitar
um devir-com”, numa responsabilidade partilhada . Assumir a condição de
“terranos” num Antropoceno que se revela ameaçador.
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[1] Ver COMISIÓN, 2014 e especialmente todo o número
da revista VOICES publicado em 2012: COMISSÃO, 2012 (v. 35, n. 1, jan./mar.
2012).
[2] PEW RESEARCH CENTER, 2012.
[3] Este termo vem cunhado em 1980
pelo biólogo americano Eugene Stoermer e firma-se no mundo científico com a
proposta de sua adoção em dois artigos publicados no boletim do Programa
Internacional para a Geosfera-Biosfera (IGBP) e a revista Nature, com a autoria do mesmo Eugene em parceria com o Nobel de
Química (1995), Paul Crutzen.
[4] A era geológica iniciada há 11,7
mil anos, que coincide com a última idade do gelo.
[5] Para essa questão, tendo em conta
o caso particular da Amazônia, cf. NOBRE, 2014.
[6] Impressionante o livro publicado
na França com os depoimentos de Kopenawa: Davi Kopenawa & Bruce Albert. La chute du ciel. Paroles d´un chaman
Yanomani. Paris: Plon / Terre Humaine, 2010. A tradução brasileira está em
curso, com publicação prevista pela Companhia das Letras.
[7] A questão dos “mil nomes de Gaia”
foi tema de um rico evento no Rio de Janeiro, em setembro de 2014, com a
presença de pensadores brasileiros e estrangeiros, entre os quais Bruno Latour,
Isabelle Stengers, Vinciane Despret, Antônio Nobre, Eduardo Viveiros de Castro,
Déborah Danowski, José Augusto de Pádua, Márcio Santilli e outros. Foram também
apresentados vídeos com as falas de Donna Haraway e Elizabeth Povinelli. Foi
publicado a respeito em TORRES, 2014 e PONTO DE VISTA, 2014.
[8] Na visão de Eduardo Viveiros de
Castro, os índios “são todas as grandes minorias que estão fora, de alguma
maneira, dessa megamáquina do capitalismo, do consumo, da produção, do trabalho
24 horas por dia, sete dias por semana” (BRUM, 2014).
[9] Discurso também publicado no
Portal do IHU: IHU-Notícias, de 29
de outubro de 2014. E para a homilía no Cemitério de Verano, ver PAPA
FRANCISCO, 2014b.