A espiritualidade zen budista
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Resumo
Os
estudos de mística comparada e de espiritualidade interreligiosa vão ganhando
espaço cada vez mais singular nas universidades e núcleos de pesquisa que se
irradiam por toda parte. São pesquisas que envolvem também as religiões
orientais, em seu traço místico peculiar. Também no âmbito do budismo pode-se
falar em espiritualidade, entendida como um caminho de busca da libertação.
Esse artigo visa apresentar o tema da espiritualidade zen budista, com base na
reflexão de Eihei Dôgen Zenji (1200-1253), um dos mais importantes e destacados
mestres da tradição Soto Zen. O objetivo é mostrar a riqueza dessa
espiritualidade e sua peculiaridade de adesão à realidade cotidiana. Para
favorecer a compreensão da questão central apresentada, visou-se situar a
temática no âmbito do contexto histórico do nascimento do zen budismo e da
inserção da presença de Dôgen em seu campo de ação. A temática da
espiritualidade zen foi se evidenciando na abordagem da problemática da busca
do Dharma em Dôgen e de sua atenção aos pequenos sinais do cotidiano.
Palavras-Chave: Espiritualidade; Budismo; Zen; Cotidiano;
Religiões;
Introdução
Na introdução de uma obra sobre a
espiritualidade budista, a equipe responsável pelo trabalho – ligada ao
Instituto Nazan de Religião e Cultura (Nagóia, Japão) -, sinaliza que é o
budismo, dentre as diversas religiões, que se concentra com maior ênfase no
âmbito da espiritualidade. Não há outra religião que
“deu maior valor aos estados de
percepção e libertação espiritual, e nenhuma outra descreveu, tão metodicamente
e com tamanha riqueza de reflexões críticas, os vários caminhos e disciplinas
por meio dos quais esses estados são alcançados, ou as bases ontológicas e
psicológicas que tornam esses estados tão importantes e esses caminhos tão
eficientes” (YOSHINORI, 2006, p. IX).
Dentre
as diversas formas de budismo, o budismo zen traduz essa espiritualidade numa
perspectiva profundamente prática e colada ao cotidiano. O seu grande objetivo
é “captar o fato central da vida” (SUZUKI, 1999, p. 73) no curso mesmo de sua
realização, de forma direta e vital. Mais que um sistema filosófico-teorético,
o zen traduz uma “trama existencial”, que envolve aspectos religiosos,
filosóficos e experienciais, sempre interrelacionados (FORZANI, 2007, p. 69). Nessa
“atitude de fundo” com respeito à dinâmica da vida, o zen vai dar uma ênfase
fundamental à prática, que deixa de ser um simples aspecto particular,
firmando-se como chave essencial de acesso à unidade íntima da existência, que
escapa à percepção superficial. Por meio dela desvela-se o processo de
concentração e purificação do sujeito, de seu corpo-mente, favorecendo a
captação da intensidade de cada momento e
a possibilidade do exercício de comunhão com o mundo circundante.
Mediante o recurso de um “treinamento sistemático”, o zen instrumenta o
pensamento ao exercício de um novo olhar sobre as coisas: “abre os olhos do
homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração
para que ele abrace a eternidade no tempo e o infinito do espaço em cada
palpitação” (SUZUKI, 1999, p. 66).
Os passos de uma história
Num dos clássicos livros do
Shôbôgenzô[1],
de Eihei Dôgen Zengi (1200-1253), o Bendôwa – escrito em 1231 -, há um relato
interessante sobre a origem remota do zen budismo (DÔGEN, 2001a, p. 126).
Trata-se do clássico ensinamento silencioso de Buda Shakyamuni no Pico do
Abutre. Ali naquele histórico lugar ele girou a flor de Udumbara, sendo
correspondido pelo sorriso de seu discípulo Mahakassyapa (DÔGEN, 2005b, p. 187).
Sem necessitar de nenhum recurso verbal, o grande mestre utiliza-se do simples
gesto de girar uma flor para transmitir o seu ensinamento. Esse acontecimento
simbólico vem colocado no início da transmissão da escola que na China veio
nomeada ch´an e no Japão zen. Esse ensinamento (Dharma) foi transmitido, como
sublinha Dôgen, de patriarca a patriarca até chegar a Bodidarma (470-532),
considerado o iniciador da tradição ch´an na China[2].
Depois vem transmitido para o segundo patriarca, Hui-ko (487-593), e assim
sucessivamente, envolvendo posteriormente as cinco grandes escolas da tradição
zen: Hogen, Igyo, Unmon, Soto e Rinzai. Dessas cinco escolas, somente a da
tradição Rinzai ganhou importante difusão na China. Duas delas tiveram boa
penetração no Japão, a Rinzai – introduzida por Eisai (1141-1215)[3] -,
e a Soto, introduzida por Dôgen.
É interessante constatar esse traço
do giro da flor e do sorriso na origem do budismo zen. A flor de Udumbara é uma
metáfora do raríssimo despertar na dinâmica histórica. Sobre esse simbolismo
discorre Dôgen em outro livro do Shôbôgenzô, Udonge, que trata da flor de Udumbara. E como diz o cânone budista,
“uma flor desabrocha e o mundo se levanta” (DÔGEN, 2005b, p. 187-189)[4].
Dôgen faz aqui menção ao tema da “ressonância”. Como assinala Yoko Orimo, na
introdução de um dos volumes do Shôbôgenzô (tradução francesa), dada a “eclosão
de uma só flor, o mundo inteiro se transforma, pois esse mundo é um mundo da
ressonância onde todos os existentes fazem eco uns aos outros, posto que este
eco do universo seja audível à nossa escuta concreta” (ORIMO, 2005a, p. 18). No
processo do
“desenvolvimento de suas
pétalas, a flor abre seu coração para escutar o vento, para receber a água e a
luz, para divertir-se com as borboletas e se doar ao mundo. É neste universo da
ressonância onde todas as coisas fazem eco a todas as coisas, doando-se umas às
outras, que a Via do despertar deve se realizar como presença” (ORIMO, 2005b,
p. 222).
Na tradição zen, a relação entre mestre e discípulo, tão
bem expressa nesse episódio da flor de Udumbara, vem situada num plano de
grande importância. A experiência direta, de coração a coração, vem afirmada
como valor substantivo, o que não significa a relativização ou desprezo das
letras dos textos sagrados (TOLLINI, 2001, p. 156). De modo particular, a
espiritualidade de um mestre como Dôgen sempre esteve enraizada no Sutra do
Lótus[5]
como em outros textos sagrados, que também transmitiam com vigor o espírito do
Buda.
O budismo teve boa recepção na China
em razão de sua semelhança com a doutrina do filósofo Lao-Tsé, que também como
Buda, sinalizava a centralidade do vazio e a impermanência. Mas era um budismo
essencialmente teórico, e contra ele posicionou-se Bodidarma,
“que quis estabelecer na China
o genuíno Budismo de Gautama, todo ele vivência e ação. Como recomendava a
prática da meditação dhyana (Ch´an em
chinês, Zen em japonês) como método para o desenvolvimento do prajna, o conhecimento intuitivo, seus
seguidores passaram a ser conhecidos como adeptos de uma escola Zen, embora
Bodidarma não pensasse em fundar nenhuma seita ou escola, e sim transmitir o
verdadeiro espírito do Budismo” (GONÇALVES, 1976, p. 24).
Bodidarma foi também um “asceta do zazen[6]”,
a meditação sentada. Quando ele se estabeleceu
no templo de Shaolin, no monte Sung, passava grande parte do tempo
sentado em meditação, com o olhar voltado para a parede (pi-kuan). E assim ocorreu por nove anos. Era grande o destaque que
concedia à meditação silenciosa, em lugar da leitura ou meditação dos sutras ou
de outros comentários escritos (KASULIS, 2007, p. 24).
Os
primeiros mosteiros zen surgiram na época do quinto patriarca, Hung-Jen
(601-674). Visualizavam-se a partir desse período dois traços distintivos da espiritualidade que se firmava: a
comunidade monástica e a harmonia com a natureza. Com o sexto patriarca,
Hui-Neng (638-713), consolida-se o principal ramo do zen-budismo, o zen do sul,
que depois será subdividido em várias escolas, como já assinalado. É ao sexto
patriarca que “toda a tradição zen do presente remete sua origem” (YAMPOLSKY,
2007a, p. 3).
Dentre os grandes mestres da
tradição Ch´an encontra-se o monge Ma-tsu Tao-i ( Baso Doitsu - 709-788), da
dinastia T´ang, ao qual vem associada a escola Hung-chou. Com ele se processa
uma mudança importante no foco da prática da meditação. Não que ele tenha
deslocado o seu valor, mas possibilitou um “retorno” da experiência
contemplativa para a realidade cotidiana. A grande máxima passa a ser: “Essa
mente mesma é Buda”. Isso significa, em outros termos, que “a meta mais remota
e transcendental é o que está, paradoxalmente, mais próximo de nós” (WRIGHT,
2007, p. 35). A iluminação, entendida como busca da natureza búdica, é vista
então como uma retomada ou encontro com a natureza mais profunda do sujeito,
sua natureza original. O praticante vem,
assim, orientado a sintonizar-se com o presente, com o que já se encontra aqui,
o corriqueiro, que na perspectiva anterior era objeto de superação. O que a
escola Hung-chou enfatiza é essa “reorientação da atenção para o ´corriqueiro` e
o ´cotidiano`”. O cotidiano, ou a mente do cotidiano, firma-se como o caminho[7].
Nesse sentido, “a meditação não precisa ser uma atividade especial que quer seu
próprio tempo, ambiente e postura. Todo momento da vida, estando-se ´sentado,
de pé, ou deitado`, deve ser visto como uma manifestação da natureza búdica” (WRIGHT,
2007, p. 35-36).
Ao adentrar-se no Japão, por volta
do século XII[8]
(período Kamakura), o budismo zen adquire características próprias. Sua
introdução ocorreu por meio de duas escolas rivais, a partir da China: as
escolas Rinzai e Soto. Como nomes conhecidos na tradição Rinzai, podem ser
mencionados Eisai (1141-1215) e Myosen (1184-1225). Na tradição Soto firma-se
com destaque o nome de Dôgen (1200-1253), que introduziu essa escola no Japão.
Enquanto a tradição Rinzai centrava-se na prática dos koans, em que se exigia
dinâmica atividade mental, a tradição Soto concentrava-se na prática do zazen,
voltada para um processo de “iluminação gradual” (IZUTSU, 2009, p. 139-144)[9].
A
presença de Dôgen
Dôgen destaca-se como uma das mais
importantes figuras criativas da humanidade. Foi um grande reformador e
revitalizador da tradição budista japonesa na virada do século XIII. Foi ele o
introdutor da tradição Soto Zen no Japão. Foi sobretudo a partir da década de
1930 que ocorreu uma recepção mais ampla de seu pensamento, quando passa a ser
percebido como “um guia espiritual da humanidade”[10].
Sua inserção mais viva no âmbito dos estudos do budismo é firmada no período do
pós-guerra, ou seja, a partir de 1945, quando se intensificam os esforços de
incorporar Dôgen “no contexto histórico, social e cultural no qual se formou o
seu pensamento” (JIM KIM, 2010, p. 21-23).
Grande parte dos trabalhos de
recuperação do pensamento de Dôgen, em particular de sua obra capital, o
Shôbôgenzô, foram realizados no Oriente. Não só estudos importantes visando a
compreensão dessa obra, como também de outros escritos do mestre da tradição
Soto. Ocorreram investigações não apenas nos âmbitos filosófico-religiosos, mas
também linguístico, textual e literário. Não houve, infelizmente, um semelhante
acompanhamento reflexivo sobre a obra de Dôgen no Ocidente. Os trabalhos de
difusão do budismo zen no Ocidente foram favorecidos pela reflexão de D.T.
Suzuki, com base sobretudo no Zen Rinzai (JIM KIM, 2010, p. 24).
Muitas são as dificuldades de acesso
ao complexo pensamento de Dôgen. Não só a sua reflexão, como também sua
linguagem “são extremamente difíceis e sutis, e entretanto irresistivelmente
intrigantes” (JIM KIM, 2010, p. 24). O contato com sua obra abre inusitados
horizontes para a reflexão e uma visada inovadora para a compreensão efetiva e
aprofundada do zen budismo. Daí a escolha de seu itinerário como base para o
presente ensaio.
Dôgen nasce em janeiro de 1200 numa
família aristocrática. Sua vida foi marcada pela experiência precoce da
impermanência, tendo perdido o seu pai em 1202 e sua mãe um pouco depois,
quando tinha apenas sete anos. Apesar das dificuldades decorrentes dessas perdas,
conseguiu ter uma formação linguística e cultural refinada, e isso pode ser
observado na sua excelência poética. Não se deixou abater pelo pessimismo, que
também rondava sua época, mas reforçou a dinâmica de seu caminho com
substantiva vitalidade. Ele dizia: “Com uma vida assim transitória, não deveria
haver outro empenho senão a Via” (JIM KIM, 2010, p. 40)[11]
Depois da perda de seus pais, Dôgen
passou a ser criado pelo irmão mais jovem de sua mãe, Fujiwara Moroie, que
previa para o menino uma carreira aristocrática brilhante. O destino, porém, reservou-lhe uma sorte
diversa, tendo decidido pelo caminho
monacal. Entra no noviciado em 1213, com a idade de 13 anos, em ofício dirigido por Kôen, então abade do
templo Enryakuji, no monte Hiei. Inicia-se ali o seu estudo sistemático dos
sutras budistas. No curso de seus estudos deparou-se com uma interrogação que o
acompanhará por muitos anos: Se todos os seres humanos são dotados da natureza
de Buda desde o nascimento, por que então os budistas de todos os tempos buscam
incessantemente a iluminação, empenhando-se na prática espiritual? Trata-se de
uma interrogação que ninguém no monte Hiei conseguiu fornecer uma resposta
satisfatória (JIM KIM, 2010, p. 40-41).
Segue o seu caminho com essa
delicada questão na bagagem. Passa pelo templo de Onjôji, na província de Omi,
sob os cuidados do mestre Koin (1145-1216). Este o envia ao templo de Kenninji,
em Kyoto, tornando-se então aluno de Myozen (1184-1225), discípulo de Eisai,
que tinha introduzido o Zen Rinzai no Japão. Dôgen relata no Bendôwa esse
encontro:
“Depois de
ter despertado o desejo de iluminação e de busca da Via, vaguei por este país
buscando o conhecimento. Foi quando então encontrei o mestre Myozen no templo
Kenninji. Passaram-se rapidamente nove anos e estando com o mestre nesse
período aprendi diversas coisas da tradição Rinzai. Myozen era o principal
discípulo do fundador (do Rinzai) Eisai e era o único a ter recebido a correta
transmissão suprema do budismo” (DÔGEN, 2001a, p. 125).
É
no encontro com Myozen que Dôgen toma ciência do budismo zen, e reconhecia que
nenhum outro mestre se igualava a ele na dinâmica de transmissão correta do
budismo. Mas mesmo a presença desse mestre não respondeu ao sentimento de
insatisfação que o acompanhava desde os tempos de sua estadia no monte Hiei.
Identificava limites no ensinamento dos mestres japoneses, que a seu ver não
conseguiam penetrar a “compreensão intelectual da doutrina”. Não logravam
transmitir a seus discípulos senão “palavras e letras”, ou “nomes e sons”.
Dôgen ansiava por algo ainda mais profundo. Decidiu então empreender nova
aventura em viagem à China, para buscar conhecimento entre os grandes mestres
fundadores. Entendia que ali poderia encontrar o “melhor do budismo”.
Assinalava que seria melhor não estudar o budismo na ausência de um verdadeiro
mestre (JIM KIM, 2010, p. 45).
Em 1223, Dôgen parte para a China,
em difícil viagem marítima. Junto com ele, o mestre Myozen. Sua intenção era a
de aprofundar os estudos em mosteiros da tradição zen. Num dos pontos de
ancoragem do navio, ocorreu um dos famosos episódios do encontro de Dôgen com
um monge cozinheiro chinês, de 61 anos, que veio ao navio em busca de shitake
japonês, junto aos mercadores a bordo. O singular diálogo travado entre os dois
vem relatado no livro de Dôgen, Instruções
a um cozinheiro zen (Tenzo kyokun),
publicado em 1237 (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 23-25). Estranhando essa tarefa
exercida por um monge em final de carreira, Dôgen indaga ao cozinheiro se não
seria mais pertinente dedicar seu tempo à prática do zazen ou ao estudo dos
koans, em vez de um trabalho duro como o de tenzo. Em resposta, o velho monge
desatou em risos e fez a seguinte observação: “Meu bom amigo estrangeiro! Tu
não compreendes ainda em que consiste a prática, nem conhece o significado dos
caracteres”. Foi uma verdadeira lição para Dôgen, como uma luz que se acendeu
em sua consciência, acionando uma compreensão distinta e novidadeira do zen[12].
Pôde perceber que no simples e cotidiano trabalho na cozinha, como tenzo,
alguém pode viver plenamente a experiência do zen autêntico, do budadarma.
Nessa obra citada, Tenzo Kyokun,
escrita mais de uma década depois desse encontro, Dôgen reconhece que o
trabalho de cozinheiro na tradição zen só vem exercido por “mestres estáveis na
Via”, ou por mestres que despertaram em si o espírito do bodhisattva. Ao longo dos séculos, essa nobre tarefa veio exercida
por grandes mestres e patriarcas, recorda Dôgen. É um trabalho que toca um dos
temas mais fundamentais da tradição zen, ou seja, o espírito de cuidado e
atenção. Nada mais importante, relata Dôgen, do que preparar o alimento com
aplicação e poder ocupar-se pessoalmente de cada detalhe do preparo das
refeições. Diz ele: “Deixe que, dia e noite, todas as coisas entrem e permaneçam
em vossa mente. Cuide para que vossa mente e todas as coisas possam agir
conjuntamente como um todo”. Nada mais sagrado do que essa harmonização da vida
com o trabalho. Diz ainda: “Manuseie uma única folha de verdura de modo a que
manifeste o corpo do Buda” (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 19 e 21).
Na China, Dôgen visitou vários
mosteiros junto com o mestre Myozen. Na ocasião o budismo chinês vivia uma
situação de dificuldade e declínio. Eram múltiplas as causas dessa situação,
entre as quais a degeneração moral da comunidade monástica em razão da venda
pelo governo de certificados monásticos e títulos honoríficos para fazer frente
à crise financeira. Nesse contexto desfavorável mestres zen passaram a se
envolver na política e os mosteiros dessa tradição tornaram-se centros de vida
social e política. Dôgen expressa seu descontentamento com tudo isso, e reage
contra o empobrecimento daqueles que se proclamam descendentes do Buda e o
enfraquecimento do ensinamento da Via (JIM KIM, 2010, p. 49). As crítica de Dôgen
voltavam-se não apenas à situação geral do budismo, mas também à ordem Rinzai,
muito popular na época.
As viagens realizadas por Dôgen pela
China favoreceram a ele um bom conhecimento do budismo chinês, mas não lhe
possibilitaram o acesso a um verdadeiro mestre. Marcado por certa desilusão,
resolveu voltar ao Japão. Decide fazer uma última visita ao monte T´ien-t´ung,
onde estava adoentado o seu mestre Myozen. No templo de Chiug-shan Wan-shoussu,
Dôgen encontra um velho monge que acende nova luz em seu caminho ao falar de um
famoso mestre, Ju-Ching (1163-1228)[13],
que assumia a função de abade no mosteiro de Ching-te-ssu, no monte
T´ien-t´ung. Foi a senha que precisava
para realizar um encontro que marcou decisivamente a sua vida. O contato com
Ju-Ching aconteceu no quinto mês de 1225. O acolhimento foi caloroso, e entre
os dois ocorreu o desvelamento do mistério do Dharma.
O mestre Ju-ching reagia às divisões
sectárias do budismo e aspirava a um budismo aberto e universalizante. Não
gostava nem mesmo de nomear sua prática como sendo zen. O objetivo essencial de
seu trabalho era aprofundar o Dharma. Ao tratar da personalidade desse mestre,
Dôgen assinala o seu traço dinâmico e carismático e sua intransigente defesa do
só-zazen, entendido como caminho essencial do budismo. Para Ju-Ching, segundo a
descrição tecida por Dôgen a seu respeito, o budismo “não devia reverenciar
nada daquilo que sinalizasse glória e poderes mundanos; devia, sim,
contentar-se com a virtude da pobreza e do viver na profunda paz das montanhas.
O Dharma deveria ser buscado para o bem do Dharma” (JIM KIM, 2010, p. 56).
Momento decisivo na experiência de
aprendizado de Dôgen sob a guia de Ju-Ching ocorreu em 1225. No decorrer de uma
prática de zazen, na primeira manha de um retiro intensivo (Geango), um monge que estava ao seu lado
adormeceu. Em advertência a tal acontecimento inesperado, Ju-Ching bradou com
firmeza em sua direção: “No zazen é imperativo abandonar o corpo e a mente.
Como pode podes ceder ao sono?”. O toque dado por Ju-Ching acabou fazendo
efeito em Dôgen, que sentiu todo o seu ser estremecer, provocando a experiência
de uma grande alegria em seu coração. Na mesma manhã, nos aposentos de
Ju-Ching, Dôgen ofereceu incenso e se prostrou diante da imagem de Buda.
Admirado pela atitude de Dôgen, o mestre Ju-Ching perguntou-lhe sobre a razão
de tal procedimento. Recebeu como resposta uma frase reveladora: “O meu corpo e
a minha mente foram abandonados!”. Uma expressão que se tornou célebre no livro
Genjo koan do Shôbôgenzô: shinjin datsuraku (deixar cair o corpo e
a mente)[14].
Diante da exuberância da resposta de Dôgen, e sua certeira percepção, Ju-Ching
reconheceu a autenticidade de sua iluminação. No nono mês de 1225, ele conferiu
a Dôgen, um monge japonês, o certificado oficial da sucessão patriarcal da linha
Chen-hsieh da Ordem Tsao-tung, uma novidade na história do budismo chinês (JIM
KIM, 2010, p. 59).
Dôgen, finalmente, conseguia a
resposta à questão que tanto lhe angustiara durante muitos anos, desde os
tempos de sua presença no monte Hiei. Na certeira percepção desse “deixar cair
corpo e mente” estava a chave de acesso à compreensão da natureza búdica.
Através da prática do só-zazen, do simplesmente sentar (shikantaza), consegue, finalmente, acessar a perspectiva de uma
existência não dualística. E este “abandonar corpo e mente” não anulava, em
hipótese alguma, a existência histórica e social, mas a acionava numa
perspectiva nova e distinta, de modo a facultar a “encarnação auto-criativa e
auto-expressiva da natureza-do-Buda” (JIM KIM, 2010, p. 59).
Durante dois intensos anos, entre
1225 e 1227, os dois mestres viveram uma rica experiência de prática e ensino
comuns na busca da verdadeira compreensão do Dharma. Em 1227, Dôgen expressou
ao seu mestre o desejo de retornar ao Japão, recebendo na ocasião o hábito
sacerdotal, que é o documento genealógico da sucessão patriarcal.
O mestre Dôgen retornou ao Japão com
as “mãos esvaziadas” de sutras, imagens ou documentos. Trazia para seus
conterrâneos apenas o seu corpo, a sua mente e sua existência, agora libertados
das amarras do ego e radicalmente transformados. Esse retorno ocorreu,
provavelmente, no outono de 1227. Ele logo assume o templo Kenninji, depois dos
anos de ausência. Nesse mesmo ano escreve o breve texto do Fukan zazengi, com os conselhos práticos em torno do zazen. É um
livro que não faz parte do Shôbôgenzô, mas que expressa um traço importante do
ensinamento de Dôgen, sendo a primeira descrição do zazen realizada por um
autor japonês (TOLLINI, 2001, p. 47).
O tempo de permanência de Dôgen em
Kenninji foi de três anos. Depois deslocou-se para o templo de An´yoin em
Fukakusa, onde escreveu um dos clássicos livros do Shôbôgenzô, o Bendôwa, que é na verdade um discurso
sobre a prática da Via. Trata-se de uma obra que desvela os traços fundamentais
do ensinamento de Dôgen. Com esses dois primeiros escritos, Dôgen lança as
bases de sua concepção religiosa e filosófica.
Com o crescimento de seus
discípulos, Dôgen transfere-se para o templo de Kosho-horinji – uma ampliação
do original Kannon-dorin -, onde permanece por dez anos (1233-1243). Foi,
talvez, o período mais criativo para ele, compondo simplesmente quarenta e
quatro capítulos do Shôbôgenzô, entre os quais alguns de grande importância
como o Genjo-koan e o Bussho. Foi também ali que acolheu Koun
Ejo (1198-1280) como seu discípulo. Entre os dois nasceu uma forte amizade, que
os manteve ligados por quase vinte anos, até a morte de Dôgen[15].
Os dois trabalharam juntos para a afirmação do Soto Zen no Japão.
O templo de Kosho-horinji foi um espaço aberto à comunidade, traduzindo
uma preocupação sempre presente em Dôgen, de fazer do budismo uma “religião do
povo”. Num de seus breves e belos livros, Shôji,
que trata dos nascimentos e mortes, Dôgen expressa sua ideia da compaixão
ilimitada. Assinala que a estrada que conduz ao despertar passa necessariamente
por uma “profunda compaixão por todos os seres”. Para que isso ocorra é
necessário um coração liberado do pequeno eu egoísta, de forma a poder acolher
e ressoar com todos os seres do universo (DÔGEN, 2007, p. 353).
A itinerância de Dôgen continuou
pelos templos de Kippoji e depois Daibutsuji, onde se estabeleceu no sétimo mês
de 1244. Em junho de 1246, mudou o nome do templo para Eiheiji, que significa
paz eterna. Consegue, então, realizar o seu sonho de “fundar uma comunidade
monástica ideal segundo os ditames de Po-chang Huai-hai (720-814), no coração
das montanhas e dos cursos de água” (JIM KIM, 2010, p. 71). Nesse templo
escreveu oito capítulos do Shôbôgenzô, mas dedicou-se sobretudo à formulação
dos preceitos e regras de consolidação da vida monástica. O mosteiro de Eiheiji
tornou-se um importante ponto de referência como comunidade educativa e
religiosa.
A saúde de Dôgen começou a
agravar-se a partir de 1250, limitando suas atividades monásticas. Escreve
ainda um derradeiro capítulo do Shôbôgenzô, em 1253 – o Hachi-dainingaku -, expressando uma última mensagem a seus
discípulos, já prevendo a proximidade de sua morte. Ele nomeia Ejo como seu
sucessor em 1253 e no oitavo mês do mesmo ano vem a falecer, junto a seus
discípulos, em postura de zazen.
Dôgen
e os caminhos do Dharma
Um dos traços fundamentais do
ensinamento de Dôgen está relacionado ao jijuyu
zanmai, ou seja, à capacidade intrínseca do ser humano para a iluminação.
Na visão do mestre japonês, o Dharma está presente no íntimo de cada pessoa,
mas sua vinda à luz depende de um exercício de prática. Assinala no Bendôwa que
um “método misterioso” foi transmitido de Buda a Buda, que é aquele do
sentar-se em zazen. Não há outro “portal” mais propício para a iluminação:
trata-se “da verdadeira Via para se alcançar a iluminação” (DÔGEN, 2001a, p.
123-124 e 127)[16].
Na visão de Dôgen, não há como
separar a prática da iluminação. O acesso à iluminação não se dá tanto por meio
especulativo, mas sobretudo por intermédio de uma ação que se desdobra do fundo
de si mesmo. Há em verdade uma unidade de prática e iluminação (shusho ichinyo)[17].
O caminho dessa prática, quando orientado por um bom mestre, leva ao horizonte
da iluminação. O simplesmente sentar-se, retamente orientado, favorece a
percepção do “selo do Buda”, e o olhar se desprende para captar em todas as
coisas do universo uma presença iluminada (DÔGEN, 2001a, p. 127).
Os traços da prática do zazen foram particularmente
desenvolvidos em três obras de Dôgen: Zazengi,
Fukan zazengi e Zazenshin. Na
primeira obra, Zazengi, Dôgen
assinala que “a prática do zen é o zazen”. Nesse livro, Dôgen aborda as
condições propícias para a realização dessa prática: as condições do lugar e o
estado mental desejado para o seu exercício. É necessário deixar-se habitar
pelo “sem-pensamento”[18],
rompendo com todos os laços ou vínculos que prejudiquem a concentração do
praticante. Não há que ter objetivos, nem mesmo o de se tornar Buda. O zazen
deve ser assumido em “alta consideração” (DÔGEN, 2001b, p. 43-44). Há que
deixar “cair” corpo e mente, livrando-se de todos condicionamentos e “simplesmente
sentar”, sem nada esperar. No Fukan
zazengi, que é o primeiro texto escrito por Dôgen (1227), ele aborda os
princípios do zazen. Sugere que o praticante volte-se para o interior, mediante
a prática do zazen, buscando o fundamento originário do caminho, ou da Via.
Esse fundamento, ao contrário da opinião corrente em certa tradição budista, pervade
todas as coisas. O samsara e o nirvana não são dimensões separadas, mas
interpenetradas. O nirvana acontece
no processo mesmo do samsara[19].
E este “rosto originário” do Dharma não emerge senão quando o corpo e a mente
deixam-se cair, e isso ocorre naturalmente, com o desdobramento da prática. Os
aspectos formais e físicos do zazen são desenvolvidos por Dôgen em sua obra Zasenshin. Ele retoma ali o tema
essencial do exercício do “não-pensamento” na prática do zazen: o desafio de
“pensar o não-pensamento”. Na prática mesma do zazen se dá a dinâmica da
iluminação, não devendo o praticante deixar-se levar por nenhum desejo, nem
mesmo o de tornar-se Buda[20]. Trata-se
de algo tão impossível como fazer de uma telha um espelho mediante seu
polimento com uma pedra. Para Dôgen, há que ultrapassar o “fato imediato” que
se apresenta aos olhos e saber buscar mais fundo, visando captar o mistério das
coisas. Isso é para ele o significado mais largo do estudo do budismo. Seguindo
a trilha aberta pelo mestre Nangaku Daie (677-744), Dôgen sinaliza a
importância do exercício de gratuidade no zazen. Não há por que se preocupar
com as “formas do sentar-se”, mas voltar-se para o seu “princípio”. Para tanto,
a disposição essencial é a de “deixar cair mente e corpo” (DÔGEN, 2001d, p.
60-70).
Essa expressão “deixar cair o
próprio corpo/mente” (shinjin datsuraku),
tão citada por Dôgen, tornou-se muito famosa, traduzindo de forma límpida e
sintética a essência de sua reflexão sobre o budismo. A forma mais precisa onde
ela aparece na obra deste autor é no Genjo
Koan: “Aprender o budismo é aprender a si mesmo; aprender a si mesmo e
esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser despertado para a
realidade. Despertar-se para a realidade é deixar cair o próprio corpo/mente e
o corpo/mente dos outros” (DÔGEN, 2001e, p. 180)[21].
A dinâmica desse precioso aprendizado
envolve a presença de um bom mestre, que possibilita abrir o caminho da
transmissão correta. É um “aprendizado de desaprender”, como tão bem mostrou
Fernando Pessoa em seu Guardador de
rebanhos. Há que romper a percepção da realidade que se funda na perspectiva
de um “eu permanente”. Não há o que fazer com a ideia de um “eu permanente”.
Como sublinha Dôgen, “a realidade não se baseia sobre o nosso eu” (DÔGEN,
2001e, p. 180). O exercício do zazen faculta a emergência de um si mesmo que
nasce a partir da morte de um eu egocentrado. Esse eu “deixa-se cair” para
fazer emergir o verdadeiro si (jiko).
Trata-se do si real ou universal, habitado pela realidade da vida. O passo
essencial da prática do zazen é facultar a emergência deste “si” que inclui
toda coisa (UCHIYAMA, 2006, p. 38-39)[22].
Tem razão Taisen Deshimaru quando
assinala que o zazen favorece um “alargamento da consciência e o
desenvolvimento da intuição”. Não é uma prática que desloca o sujeito da vida e
da história, mas provoca, antes, um adentramento singular em sua concretude. É
uma técnica que possibilita atenção permanente, concentração viva “sobre cada
instante da vida” (DESHIMARU, 1981, p. 14 e 30).
Há que salientar, seguindo as pistas
abertas por Dôgen, que a realização da Via ocorre também por caminhos
inusitados, que não se restringem à prática específica do zazen. É uma
realização que se estende para todo o universo, pois sua luz emana de toda
parte. Está presente no golpear e sibilo do vento e no misterioso som de um
sino. Todo fenômeno é para Dôgen portador da possibilidade de iluminação
(DÔGEN, 2001a, p. 129-139)[23].
Uma
espiritualidade do cotidiano
Toda a espiritualidade zen acentua
com vigor o valor e o significado da experiência da vida. Mesmo reconhecendo a
relevância imprescindível da prática do zazen, a base essencial onde habita o
múnus do Dharma é a vida mesma, em toda a sua tessitura. Em rica reflexão de
Uchiyama Roshi, Como cozinhar a vossa
vida, ele aborda o tema do “apaixonar-se pela vida”. Reconhece que na
tradição budista Mahayana a vida é o que há de “mais essencial” (DÔGEN; ROSHI,
1986, p. 67).
Dôgen sublinha a todo tempo a
importância do cuidado, delicadeza e atenção para com o presente em cada um de
seus instantes. Há para ele uma relação de proximidade entre a natureza e o
despertar. Os diversos capítulos ou fascículos do Shôbôgenzô, bem como os
poemas recolhidos no Sanshodoei[24],
expressam esse “profundo amor” do mestre zen pela natureza. Alguns títulos da
grande obra de Dôgen expressam essa presença: Tsuki (a lua), Shunju
(primavera e outono), Katto (cipó), Hakujushi
(cipreste), baika (flor de pêssego), udonge (a flor de udumbara) keisei sanshokoku (a voz dos vales, as
formas-cores das montanhas), sansuikyo
(montanhas e rios como sutra).
Há todo um rico aprendizado favorecido
na tradição zen de desocultar a presença do invisível, ou do mistério, no
âmbito mesmo do visível e poder captar a ressonância essencial do universo. Mas
quando, por exemplo, Dôgen fala em natureza, a sua percepção é distinta daquela
usual no Ocidente. O termo vem carregado de uma clara conotação religiosa. Não
há como deslocar a compreensão de natureza da experiência do despertar. O termo
natureza vem desvelado como “a realidade concreta percebida a partir do
despertar, o mundo mesmo do despertar” (FAURE, 1987, p. 23). Sob essa
perspectiva, Dôgen pode cantar num de seus poemas do Sanshodoei: “O eco dos vales e o grito dos símios nas alturas não
fazem senão recitar sem cessar as Escrituras” (FAURE, 1987, p. 25)[25].
Na verdade, toda a realidade natural, envolvendo as montanhas, rios e toda a
imensidão da terra constituem “o oceano da natureza de Buda”. Ou ainda, como
assinalado no livro Hotsumujôshin, em
cada poeira “existem milhares de escrituras santas e um número incomensurável
de despertares” (DÔGEN, 2005a, p. 173)
Essa percepção profunda da realidade
natural pressupõe, porém, um trabalho da interioridade, um exercício de
aperfeiçoamento do olhar. Não são todos que conseguem captar a ressonância do
universo, mas aqueles que passaram por uma transformação interior, rompendo com
a perspectiva egoica e possessiva, deixando-se envolver pela “experiência
direta”, que antecede toda distinção entre sujeito e objeto (FAURE, 1987, p.
26).
Em esclarecedora obra sobre a filosofia
do budismo zen, Toshihiko Izutsu aborda esta questão do “Ver” na tradição zen.
Com o recurso da visão ordinária, que se limita ao fato imediato, nem sempre se
consegue captar o “outro lado” das coisas, ou o seu mistério implícito. É
quando o olhar se perde nas coisas sem, porém, reconhece-las. Nem sempre a
visão daquilo que está diante dos olhos favorece a percepção de sua
profundidade. Como assinala Izutsu,
“para poder ver numa só flor
uma manifestação da unidade metafísica de todas as coisas, não só de todos os
denominados objetos mas também do sujeito observador, o ego empírico deve ter
sofrido uma transformação total, uma completa anulação de si mesmo – a morte de
seu próprio ´eu` e seu renascer numa dimensão de consciência totalmente
distinta” (IZUTSU, 2009, p. 20-21).
Verifica-se
que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo fenomênico. Não
se fala ali de uma ordem de coisas transcendental, que se destaca do espaço e
do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua espessura vital. O
pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da existência
cotidiana, sem que ocorra um acento numa transcendência específica. Há algo de
“singularmente profano” e “absolutamente cotidiano” no zen por ele apresentado.
Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador Wu, sobre o traço de
santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu com tranquilidade: “Uma
imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade” (COOK, 1981, p. 59). Em
ilustrativo capítulo do Shôbôgenzô, dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes
mestres e patriarcas do zen simplesmente “comem arroz e bebem chá”. Não há nada
de muito “nobre” na vida desses grandes homens: “O chá ordinário e as refeições
frugais de sua vida cotidiana constituem os pensamentos daqueles que
despertaram e as palavras dos patriarcas” (DÔGEN, 2007, p. 306).
O que o zen, porém, pontualiza é que o mundo fenomênico não se reduz à trama
das coisas sensíveis que se apresentam ao ego empírico ordinário. Ele pode
estar vitalizado por uma particular espécie de poder dinâmico capaz de
redimensionar o ver (IZUTSU, 2009, p. 33). Enquanto o olhar ordinário,
essencialista, só consegue ver a montanha como montanha e o rio como rio, o
olhar zen passou pela experiência do “abismo do Nada”, pela experiência
fundamental do desapego. Para além da superfície fenomênica, ele consegue,
agora dinamizado por distinta experiência, captar a mesma montanha sob nova
perspectiva: “A montanha é de novo montanha”, ou ainda: “A montanha é
simplesmente montanha”. O olhar vem revigorado a partir de seu “renascimento
desde o próprio abismo do Nada”, sinalizando a presença de um indivíduo que foi
completamente transformado na sua estruturação interna. Trata-se, segundo
Dôgen, de um olhar que passou por uma atividade específica (gyoji), pontuada por um modo de conceber
e viver a própria vida cotidiana segundo a espiritualidade zen.
Um dito tradicional do mestre zen
Ma-tsu (709-788), muito repetido por Suzuki, indica que o “zen é a consciência
cotidiana”. Todas as coisas “cantam a verdade”, também sinaliza Dôgen. Não há,
portanto, que sair do mundo para gozar da experiência espiritual. Se alguém
quer, de fato, penetrar a verdade do zen, indica Suzuki, com base em Pen-hsien,
deve fazê-lo quando está de pé ou andando, dormindo ou sentado, na palavra ou
no silêncio e em meio aos afazeres do trabalho cotidiano (SUZUKI, 1993, p.
92-93).
Acolher o cotidiano na sua elementar
maravilha é dos mais importantes desafios apresentados pela tradição zen, e por
Dôgen em particular (TOLLINI, 2012, p. 158-160). A percepção da novidade das
coisas em cada singular momento ou instante é favorecida pelo olhar que passou
por processo dinâmico de mudança. É um olhar capaz de captar a essencial
gratuidade (mushotoku) das coisas. O
mestre Kodo Sawaki (1880-1965) dizia: “Os homens acumulam conhecimentos, mas eu
penso que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as cores da
montanha” (FAZION, 2003, p. 101). A autêntica meditação não se dá no
distanciamento do instante presente, mas no adentramento de sua espessura. Ela
envolve uma atenção vigilante aos pequenos detalhes do cotidiano, com a mente
aberta e desimpedida. O zazen não se dá somente num tempo específico e num
lugar privilegiado, mas acontece em todo momento, iniciando-se com o abrir dos
olhos pela manhã e finalizando com o seu fechamento à noite, de modo que todas
as atividades realizadas no dia sejam tradução viva de uma prática (COOK, 1981,
p. 25).
Em outro fascículo de seu
Shôbôgenzô, Zenki, Dôgen aborda o
precioso tema do instante. Para ele “cada instante é um instante de plenitude”.
Questiona duramente nessa obra aqueles que ensinam que o alcance do nirvana se
dá com a saída do mundo ordinário. Sublinha enfaticamente que os dois mundos,
do nirvana e do samsara necessitam-se mutuamente. Na verdade, assinala que o
nirvana se opera no samsara (DÔGEN, 2011, p. 64-67). Na visão de Dôgen, “o
acontecimento por excelência é a vida”, a vida que se vive em cada um de seus
instantes, e por meio da qual todos podem celebrar a alegria de estar aí. O
despertar espiritual, assinala o mestre zen, não é nada mais que a tomada viva
de consciência deste instante presente, nas suas misteriosas malhas de enigma,
surpresa e gratuidade. Só há plena consciência, adverte Dôgen, quando a consciência
consegue abraçar todas as coisas em cada instante (DÔGEN, 2011, p. 75-76).
O organismo privilegiado para
acolher essa pulsação de vida que se acomoda em cada instante da vida cotidiana
é, para Dôgen, o coração (shin – kokoro). Mas para que ele possa “ressoar
com a multidão dos seres do universo” , necessita de esvaziamento, de
destacamento dos traços do “pequeno eu” que impedem o abraço universal da
acolhida e da compaixão. É o coração liberto que coloca o ser humano em
disponibilização para ouvir com alegria o “canto das coisas”, ou na expressão
de Dôgen, o “sentimento e a emoção das flores” (DÔGEN, 2007, p. 348 e 353).
Conclusão
Em sua obra de introdução ao zen
budismo, Suzuki aborda a questão de ser ou não o budismo zen um misticismo. Com
o humor típico dos grandes mestres, ele indica que o zen “é um misticismo a seu
próprio modo”. Sinaliza que ele “é místico no sentido de que o sol brilha” ou
“que uma flor desabrocha”. Reconhece que o traço de religiosidade habita a
presença de uma camélia em flor, em mesma proporção que sua evidência no ato
explicitamente religioso de se prosternar diante dos deuses ou outras
atividades rituais (SUZUKI, 1999, p. 60 e 65). Trata-se, em verdade, de uma
espiritualidade fundada na experiência mais singela do cotidiano. Há muito de
humano, demasiadamente humano, na espiritualidade zen. É o que esse artigo
buscou sublinhar de várias formas. A tradição zen budista vive a
espiritualidade no tempo, sem deslocar a experiência da iluminação para um além
incognoscível, ou um nirvana impalpável. É neste “tumultuado” mundo do samsara
que se dá a oportunidade de iluminação. É por isso, como tão bem mostrou
Francis Cook, que o budismo convoca a todos para uma atitude de observação da
vida, com delicadeza, clareza e atenção, visando encontrar uma liberdade única
e um bem estar partilhado, sempre nesse espaço dado e nas condições precisas
que constituem o edifício da vida humana (COOK, 1981, p. 56).
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(Artigo
publicado na Revista Horizonte, v. 10, n. 27, Jul./Set. 2012:
Dados
sobre o autor: Faustino Teixeira é doutor em teologia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma e professor no Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. É também
Pesquisador do CNPQ e Consultor do ISER-Assessoria (RJ). País de origem:
Brasil. E-mail: fteixeira@uaigiga.com.br
[1] Trata-se do mais importante trabalho realizado por
Dôgen, e que se tornou um clássico da tradição budista japonesa . O Shôbôgenzô
(O Tesouro do olho da verdadeira lei) foi escrito entre os anos de 1231 e 1253,
cobrindo os diversos períodos da vida de Dôgen. É uma obra que se divide em
vários livros ou fascículos, de extensões diversificadas.
[2] Para o conhecimento da árvore de transmissão do zen
na China e no Japão cf. Dôgen & Ejo
(2011, p. 117-118).
[3] Que tem na origem de sua linha de transmissão a
importante presença de Lin Chi (m. 867). É com ele que se firma uma nova visão
de mundo na tradição zen, e de atenção ao mundo fenomênico. Viver plenamente o
presente, esse era o seu mote. Num de seus discursos assinala essa ideia: “Oh,
irmãos de caminhada, deveis saber que na realidade do budismo não há nada de
extraordinário que deveis cumprir. Viveis simplesmente como é costume sem nunca
intencionar fazer algo em especial, satisfazendo vossas necessidades naturais,
vestindo roupas, consumindo alimentos e deitando-se ao se sentir cansados”:
Apud Izutsu (2009, p. 17)
[4] Trata-se de uma expressão de Han.nyatara
(Prajnâtara), o 27º patriarca indiano e mestre do primeiro patriarca chinês,
Bodidarma.
[5] (NHAT HANH, 2008).
[6] A palavra japonesa zazen deriva-se da palavra chinesa
tso-ch´an e indica o estar sentado em meditação.
[7] No clássico texto de Wou-men, “Passe sans porte”
(Wou-men-kouan), composto em 1229, há uma regra que vai bem nessa linha: “O
coração cotidiano é a Via”. Trata-se da regra 19. Ver a respeito: Wou-Men (
1968, p. 79).
[8] Fala-se aqui em budismo zen, pois a tradição budista
já tinha entrado no Japão na metade do século VI AEC, com cerca de 1.000 anos
de tradição, com presença diversificada em quase toda a Ásia.
[9] Como assinala Hee-Jin Kim, o Zen Rinzai vem marcado
pela dinâmica da “introspecção mediante os koans”, enquanto o Zen Soto pela
“iluminação silenciosa” através do “só-zazen” (shikan-taza) (JIN KIM, 2010, p. 79). Na perspectiva da literatura
da escola zen, o koan é “um texto escrito ou oral de conteúdo hermético ou
mesmo ilógico ou absurdo, utilizado como instrumento, ou ´ábil meio`, para
guiar o praticante para a compreensão da realidade” (TOLLINI, 2001, p. 177).
[10] Como assinalou Hee-Jin Kim, os estudos de Dôgen
ficaram circunscritos aos estudiosos da Ordem Soto por cerca de setecentos
anos, só vindo a ganhar uma projeção mais ampla a partir do ano de 1926, quando
ocorre uma nova fase do despertar das reflexões em torno de suas obras (JIN
KIM, 2010, p. 18 e 21).
[11] Em comentário à obra de Dôgen, Instruções a um cozinheiro zen, Uchiyama Roshi assinala como o
espírito de alegria sempre envolveu o grande mestre zen. Sublinha um pensamento
de Dôgen que exemplifica isso: “A mente alegre é aquela da gratidão e do
otimismo” (DÔGEN; ROSHI, 1986, p. 98).
[12] Os dois monges irão se encontrar novamente na China,
durante o sétimo mês de presença de Dôgen ali, quando tinha sido admitido no
templo de Ching-tê-ssu. O velho tenzo estava para retirar-se de seu encargo no
mosteiro de A-iu-wang. Retomaram a velha discussão. Esses dois encontros foram
decisivos para a vida e o pensamento de Dôgen, como bem lembrou Hee-Jin Kim.
Foi a partir deles que ele conseguiu compreender a “relação entre prática e
linguagem, entre ações e palavras, entre atividade e expressões”, bem como a força da linguagem e dos símbolos
em seu poder de abertura para a compreensão da realidade (JIN KIM, 2010, p.
48).
[13] Ju-Ching (ou Nyojo), embora estivesse num mosteiro
vinculado à ordem Rinzai, pertencia à tradição Soto Zen. Era um fervoroso e
regular praticante do zazen.
[14] (DÔGEN, 2001e, p. 180; DÔGEN, 2001d, p. 70).
[15] Além de um fiel discípulo, Ejo assumiu igualmente a
função de chefe dos monges (shuso) em
Kosho-horinji. Foi posteriormente nominado por Dôgen, em 1253, como seu
sucessor e responsável pelo mosteiro de Eiheiji. Como indica Yampolsky, ele
igualmente auxiliou Dôgen na compilação do Shôbôgenzô, podendo também ter
ampliado o texto depois da morte de seu mestre (YAMPOLSKY, 2007a, p. 270).
[16] No seu livro Zazengi,
Dôgen assinala que o zazen constitui “simplesmente a entrada no Dharma da
grande paz” (DÔGEN, 2001b, p. 45).
[17] Na perspectiva de Dôgen, as palavras “shu” (prática) e “sho” (iluminação) são
indicadas com uma palavra só, e justamente para indicar que elas não podem ser
compreendidas separadamente.
[18] Segundo Dôgen, o que diferencia o não-pensamento do
sem-pensamento é que o primeiro ainda comporta a presença de um eu egoístico,
enquanto o segundo prescinde da presença de um eu, que se deixou abandonar ou
cair. Com a ausência desse eu não é mais possível falar em amarras ou vínculos
de apego (DÔGEN, 2001c, p. 50).
[19] Trata-se de uma perspectiva acentuada no budismo
mahayana, de modo particular no sutra Prajna
paramita. O que se indica ali, como lembra Okumura, é que “samsara e nirvana são uma só coisa. Se não encontramos o nirvana no interior do samsara,
não há lugar onde possamos encontrá-lo” (OKUMURA, 2012, p. 43).
[20] Dôgen faz menção a uma citação do mestre Nangaku Daie
(ou Nangaku Ejo – 677-744): “Se tu fazes o Buda sentado, então tu matas o
Buda”. Há, portanto que se desfazer no zazen da concepção mesma da budidade (de
uma concepção fixista do Buda), ou seja, libertar-se do Buda para incorporá-lo
na vida (DÔGEN, 2001d, p. 69).
[21] Ver também Jim Kim (2010, p. 12) e igualmente
(OKUMURA, 2012, p. 66-79).
[22] Como mostrou Ychiyama, o jiko identifica-se com um “si que vive a inteira verdade”. Ele não
se refere a um si egoístico, mas a um si que ultrapassa a ideia de uma
“consciência pessoal”. O verdadeiro si, o si total, está envolvido por uma
“força ou qualidade da vida” (UCHIYAMA, 2006, p. 48-51).
[23] Aldo Tollini, em comentário de passagem do Bendowa,
sublinha que essa possibilidade de iluminação também fora da prática do zazen
vem reconhecida por diversos textos canônicos da tradição zen ( TOLLINI, 2001,
p. 159).
[24] (DÔGEN; EJO, 2011). Trata-se do livro que recolhe os
poemas de Dôgen, que foram compostos entre os anos de 1245 a 1253.
[25] Ou ainda, noutro poema do Sanshodoei: “O contorno dos cumes, o murmúrio dos vales, não são
senão a voz e o espírito de nosso Buda Shakyamuni” (FAURE, 1987, p. 25).