quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Mística: experiência que integra anima e animus

Mística: experiência que integra anima e animus

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

Entrevista IHU (por Moisés Sbardelotto)

IHU On-Line – “Êxtase”, “evento”, “experiência”: o que é mística para o senhor? Nesse sentido, é possível falar de uma “mística feminina”?

Para responder a essa questão faço recurso à narrativa de uma grande mística, Teresa de Ávila. Em seu livro da vida, no capítulo 10, ela descreve sua experiência como um evento interior, marcado por grande “sentimento da presença de Deus”. Trata-se de um sentimento que não dá lugar à dúvida, que envolve toda a pessoa no regaço do Mistério e cala todas as tentativas de explicação. Numa tal situação “a alma fica suspensa” e o “intelecto não discorre”. Mas permanece acesa a vontade que ama. É uma experiência singular de estar mergulhado na “ternura” de Deus, com a consciência viva de que tudo é dado por Ele. Muito rica também é a narrativa do místico e poeta nicaraguense, Ernesto Cardenal, em sua linda obra Vida no amor. Ele fala também de uma presença que envolve o sujeito e o deixa com “tremor e espanto”. E não há como escapar dessa presença que inflama a alma: “Quer esconder-se e desaparecer dessa presença e não pode, porque está como entre a espada e a parede, esta entre Ele e Ele, e não tem onde escapar, porque essa presença invade céus e terra e a invade também a ela totalmente, e ela está em seus braços”. Não é um deleite qualquer, mas um “deleite insuportável”, pois a alma é pequena para o alvoroço que ele provoca. É um deleite agridoce, enquanto “infinitamente amargo e infinitamente doce”, mas traz consigo uma alegria genuína e única, maior do que toda a felicidade que a vida até então proporcionou. E não é uma experiência facultada unicamente aos que se definem como religiosos, mas a todos, indistintamente, na medida em que estão propensos a viver situações precisas de um sentimento de envolvimento que ilumina a vida e acende o olhar. Não sem razão, Raimon Panikkar definiu a mística como uma “experiência integral da vida”. É verdade que ela envolve uma “experiência” e o sentimento de uma “presença” que escapam do controle e transcendem as práticas religiosas usuais, mas é algo que ocorre em nossa vida cotidiana e terrenal. Todos podemos ser eventos dessa “visita” inesperada de uma “misericórdia” que escorre do inefável, e que encanta a vida com o toque de sua beleza, que é “presença que fala”. Não há como enquadrar a experiência mística como feminina ou masculina, ela transcende e ao mesmo tempo envolve essas categorizações. Diria que é uma experiência que integra, em reciprocidade fundamental, as dimensões de anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa humana.

IHU On-Line – Em sua opinião, que figuras históricas mais se destacam na abordagem feminina de Deus e do Mistério? Por quê?

Nessa abordagem feminina de Deus e do mistério destacam-se inúmeras figuras históricas. Encontramos na época medieval a esplêndida experiência das beguinas, que beberam na fonte da teologia do amor dos cistercienses Bernardo de Claraval e Guilherme de S.Thierry, que foram pioneiros na retomada da interpretação mística do Cântico dos Cânticos. Destacam-se entre as místicas beguinas, Hadewijch d´Anvers, Mechthild von Magdeburg e Marguerite Porete, todas do século XIII. São mulheres ousadas, que traduzem uma rica e original abordagem do divino. São místicas que se inserem na dinâmica da mística nupcial (brautmystik), distinta da mística especulativa (wesenmystik). O tema chave é o do amor, que se insere no coração mesmo da divindade, entendida como Minne. Trata-se da força divina que invade e escorre por todo o universo, que flui gratuitamente para todo canto. Ou então, como em Marguerite, a “Dame-amour”, que confere uma nova configuração de gênero à Deidade. Essa tradição mística nupcial ganha vitalidade e também inusitada riqueza simbólica na experiência de outra grande mística do século XVI, Teresa de Ávila. Pode-se ainda lembrar, as presenças mais modernas de Edith Stein, Simone Weil e Etty Hillesum.

IHU On-Line – Para falar do Mistério ou da Realidade Última, místicos e especialmente místicas sempre fizeram referência ao “amor”. Em sua opinião, quais as principais facetas do amor a partir da experiência das grandes mulheres místicas da história?

Vou me concentrar aqui no relato das beguinas, que é exemplar a esse respeito. Retomando a experiência mística dessas mulheres medievais, cuja linguagem vem tecida pelo “parler-femme”, o tema do Amor é central. A idéia de Minne para expressar a divindade é muito rica e plástica. É um predicado de Deus, mas que envolve a realidade fundamental que a tudo anima. Como assinala Hadewijch, é como o ar que se respira, que atua sem cessar no interior de cada um. Não há como escapar desse fluir do amor, desse “jogo” do amor onde todos estão envolvidos. A divindade não se encontra distanciada do tempo e da vida cotidiana, mas está ao alcance do desejo humano. Em alguns casos, como na narrativa de Mechthild, estamos diante de um “encontro erótico com Deus”. Em passagem do Livro sétimo, de sua obra A luz fluente da divindade, em resposta a uma pessoa que suplicava e rezava, Nosso Senhor responde: “Eu te desejei antes da criação do mundo. Eu te desejei e tu me desejas. Lá onde se encontram dois desejos ardentes, ali o amor é perfeito” (VII,16). Em outra impressionante passagem do mesmo livro, Mechtihild relata o encontro da alma com a divindade. Assim que a alma entra na câmara da divindade, no seu leito de amor, vem por ela interrompida, e se assinala que para adentrar-se nessa câmara há que estar desnuda, sem nenhum obstáculo entre as duas. Para se dar entrada no leito nupcial dos amantes - sublinha Deus - há que romper o temor e a vergonha (I,44). Assim também em Porete, na obra O espelho das almas simples, a figura divina vem representada no feminino, Dame Amour, a LoinPrés, que se vela e desvela simultaneamente. Rompendo com os estereótipos do tempo, a oradora divina é feminina, firmando uma compreensão singular da Trindade poretiana: Dame Amour, LoinPrés e Alma aniquilada. Em passagem dessa obra, diz o Amor: “Eu sou Deus, pois o Amor é Deus e Deus é Amor, e essa Alma é Deus por condição de Amor” (capítulo 21). E mais adiante, acrescenta a Alma: “Lá onde está o mais de meu amor, é onde está o mais de meu tesouro” (capítulo 32).

IHU On-Line – Teresa d’Ávila, ao falar de Deus, fala de “experiência”, “gozo da alma”, que é diferente de “só pensar e crer nele”. Como Teresa interpretava a experiência mística de Deus?

Ao tratar do tema do “gozo” na mística espanhola, a estudiosa Luce López-Baralt assinala que o sentido que este termo adquire no século de ouro dessa mística esponsal não pode ser espiritualizado. Com base na reflexão da Canção XXXVI do Cântico Espiritual de João da Cruz, “Gozemo-nos Amado”, a autora sublinha que João da Cruz lança a “petição mais ousada” de toda a sua poesia. E o sentido dado a tal expressão nesse período era mesmo “fazer amor”. É nas escarpas mais íngremes e nas “subidas cavernas pedregosas” que os amantes se entregam e se adentram na espessura. Nada de estranho para quem bebe no mais clássico e erótico epitalâmico palestino que é o Cântico dos Cânticos. Teresa de Ávila vem também movida por semelhante perspectiva. Assim como João da Cruz, Teresa é uma “mística das carícias”, da proximidade amorosa e do envolvimento corporal. É a mística que diz no Livro da Vida que “não somos anjos, pois temos um corpo” (LV 22,10). Sua mística é envolvida pelo “êxtase”, tão bem retratado por Gian Lorenzo Bernini, em imagem da transverberação, que se encontra na Igreja de Santa Maria da Vitória em Roma. Nada mais ousado para uma mulher européia do período que sua descrição do dardo que perfura o coração e atinge as entranhas: “A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava senão com a presença de Deus” (LV 29,13). Como mostrou Julia Kristeva em seu livro sobre a mística, Therèse mon amour (2008), é um relato que “desafia o pudor”. Sua experiência da proximidade com Deus é única e de intensidade inaudita. É algo que escapa à compreensão de todo aquele que não partilha algo semelhante. Ela mesma sublinha que “tudo será bem obscuro para quem não tiver experiência”. Na base dessa experiência está um encontro que transformou sua vida. Aprendeu sobretudo por experiência (LV 10,9), e de uma maneira que “espanta” (LV 12,6). Teresa dizia que para descrever sua sublime experiência só fazendo recurso aos “desatinos santos”, dada a fragilidade da linguagem humana. Tudo se desarticula diante de tão divina beleza: “É uma luz tão diferente das do mundo que o clarão do sol que vemos parece sem brilho em comparação com a claridade e a luz que se apresentam à vista” (LV 28,5).

IHU On-Line – Houve algum tipo de tensão entre a mística vivida por Teresa d’Ávila e a instituição-Igreja da sua época? Por quê?

O contexto histórico em que viveu Teresa foi pontuado pela presença sombria da inquisição. Vale lembrar que suas primeiras visões de Jesus, entre os anos de 1559 e 1560, foram anos difíceis na Espanha. Em 1559 a inquisição espanhola publica um index de livros religiosos, entre os quais muitos apreciados e utilizados por Teresa. A atuação desse organismo chega a seu auge na Espanha em 1621. Alguns temas centrais da mística de Teresa, como a oração mental, a contemplação, a quietude eram olhados com grande desconfiança por segmentos da instituição católico-romana. Preocupados, seus confessores orientavam-na num sentido distinto de sua experiência, e isso a entristecia. Sua coragem e ousadia eram, porém, maiores. Dizia: “Sempre que o Senhor me ordenava uma coisa na oração e o confessor me dizia outra, o próprio Senhor repetia que lhe obedecesse; depois Sua Majestade mudava a sua opinião, para que me ordenasse outra vez de acordo com a vontade divina” (LV 26,5). Teresa comenta e lamenta a proibição desses livros, mas logo seu ânimo se levanta: “O Senhor me disse: Não sofras, que te darei livro vivo” (LV 26,5). Queixa-se da carência de guias que pudessem contar com uma semelhante experiência no caminho espiritual. Contava sobretudo com o favorecimento do Senhor, sem o qual soçobraria. E argumentava: “Não faltavam coisas para me tirar o juízo, e algumas vezes eu me via em situações em que só me restava elevar os olhos ao Senhor” (LV 28,18).

IHU On-Line – Marguerite Porete no deixou como legado o seu “Espelho das Almas Simples”. Como essa metáfora nos ajuda a compreender a sua mística?

O Espelho das almas simples (Mirouer) é fundamentalmente um “tratado místico”, um livro de instrução religiosa. Foi escrito por volta de 1290, quando sua autora estava no auge de sua potencialidade física e intelectual. O titulo da obra vem tomado da própria obra, no capítulo 13,15, na voz da palavra do Amor. É uma obra que nasce, sem dúvida, da experiência mística pessoal de Marguerite, e essa experiência vem à tona em determinados momentos de sua redação, ainda que de forma velada ou alusiva, como acontece em geral na literatura mística. A exposição da autora deixa transparecer acenos velados de uma mensagem revestida de alegorias peculiares, que rompem com as rotas conhecidas do conhecimento tradicional. Já no prólogo da obra, Marguerite sinaliza que a adequada compreensão da mesma só poderá ocorrer mediante o “entendimento interior sutil”, que ocorre em geral com aqueles que estão movidos pelo Amor Cortês. O livro tem uma estrutura dialógica, com personagens que são centrais e outros que são secundários. Os interlocutores principais são a Dama Amor, a Alma e a Razão, todas figuras femininas. Como indicado no próprio titulo, o tema central da obra gira em torno do caminho gradual de libertação da alma e de sua união mística com Deus. O grande protagonista da obra é o Amor, e o horizonte visado é o despojamento radical da alma em seu processo de ruptura com todos os vínculos que impedem o exercício da verdadeira humildade e o encontro com Deus. Diversos estudos sobre esta obra de Porete sinalizam sua proximidade cronológica e espiritual com a reflexão mística de Meister Eckhart.

IHU On-Line – Na vida de Marguerite, como se deu a relação entre teologia, mística, instituição eclesial e heresia?

Apesar das inúmeras críticas sofridas por seu livro ao longo de sua vida, Porete sempre resistiu, animada pela força do Espírito. O traço singular de sua reflexão é o acento na liberdade. Através da personagem Amor, diz Porete: “Essa Alma, diz Amor, é livre, mais que livre, libérrima, abundantemente livre, em sua raiz, em seu tronco, em todos os seus ramos e em todos os frutos de seus ramos. A herança dessa Alma é a perfeita liberdade, cada uma de suas partes tem o seu brasão de nobreza” (Capítulo 85, 5). Essa Alma livre não tem por que temer, pois é habitada pelo Amor. Não é mais como rio que tem um nome, enquanto ruma para o mar, mas já se fundiu e se dissolveu em suas grandiosas águas. Perdeu assim o seu nome, transformando-se no nome daquele com o qual se fundiu. A Alma foi “queimada pelo ardor do fogo da caridade, e suas cinzas jogadas em alto-mar pelo nada da vontade” (Capítulo 85,15). Assim também Porete, animada com a força do Amor. Foi permanente sua resistência aos desmandos da inquisição, até ser queimada em praça pública, em 1310, acusada de “herética recidiva, relapsa e impenitente”. Seu olhar sobre a instituição é marcado por crítica incisiva. Entende que a “Santa Igreja, a Pequena” encontra-se ainda sob o domínio da Razão, que permanece movida por pequeno entendimento: muitas vezes toma a palha e deixa o grão. Trata-se de uma instituição definida e delimitada, não alcançando o mistério que habita nas almas despojadas e aniquiladas. É uma instituição que não capta igualmente a medula que habita o fundo da alma, pois ali não pode entrar nada de determinado. Daí o auxílio fundamental exercido pela “Santa Igreja, a Grande”, que vem constituída pelas almas animadas e preenchidas pelo Amor: as almas aniquiladas. Na visão de Porete, é essa Grande Igreja que sustenta a fé da “Santa Igreja, a Pequena”. Essa posição da autora suscitou muita tensão e conflito, sobretudo em razão de suas possíveis ressonâncias gnósticas e joaquimistas. Mas como mostrou com clareza a especialista italiana, Romana Guarniere, em nenhum momento Porete manifesta a intenção de romper com a instituição, mas permanece animada com o desejo de permanecer ligada a ela, ainda que consciente de suas limitações históricas.

IHU On-Line – Em momentos de crise como o nosso, em que aspectos a mística de Teresa e de Marguerite nos é contemporânea? Em que elas nos iluminam?

No caso específico de Marguerite e Teresa, o grande legado que fica é o do desafio do despojamento, da humildade, da liberdade e da abertura. As duas místicas estão marcada pela fina atenção aos sinais dos tempos. A mística beguina chama a atenção para auscultar a presença de Deus não só nos templos e mosteiros, mas também em toda a parte e em todos os lugares (Capítulo 69, 42-50). Teresa, por sua vez, convoca ao essencial desafio do amor fraterno, que está dialeticamente unido ao amor a Deus. A prática do amor fraterno, por um lado, realiza o amor a Deus. E o amor a Deus, por outro, faculta o aperfeiçoamento do amor ao próximo, pois “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor a Deus” (Quintas Moradas, 3,9). Teresa adverte às irmãs “encapotadas” em suas orações sobre a importância das obras: “Não irmãs, não é assim! O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela” (Quintas Moradas, 3,11). Destacaria também um tópico muito rico, presente nas duas grandes místicas: a entrega aos cuidados de Deus. Nosso tempo é marcado pela busca de resultados, pela eficácia e produtividade. Os místicos, na contramão dessa lógica, insistem na virtude da paciência. Há que saber esperar. Numa rica passagem de seu livro, Porete fala de um sábio trabalhador que cultiva sua terra para dela tirar seu sustento. Ele cultiva e ara a terra, num duro esforço laborativo. Mas depois que coloca o trigo na terra, cessa o seu poder. O que vale agora é a paciência para aguardar os frutos: “Todo o seu poder não pode mais ajudar. É preciso que ele deixe o resto ao cuidado de Deus, se quer ter um bom resultado em seu trabalho. Por si ele não pode fazer mais nada (...)” (Capítulo 124, 35-50).

IHU On-Line – Como o senhor percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Existiria hoje a necessidade de uma gramática teológica/filosófica adequada para se poder captar a novidade dos místicos?

Esta tensão entre mística e filosofia percorre as narrativas místicas, veja os exemplos de Rûmî, em seu Mathnawi e também Farid ud-din Attar, em sua obra Linguagem dos pássaros. Na conclusão de seu livro, Attar fala das dificuldades que impedem o acesso ao segredo de seu livro. Faz uma distinção entre os “filhos das ilusões” e os “filhos da Realidade”. Os primeiros apenas arranham a casca, não conseguindo penetrar nos enigmas e mistérios de sua poesia. Diz Attar: “Os filhos das ilusões são náufragos na música de meus versos, mas os filhos da Realidade conseguem penetrar nos meus segredos mais íntimos”. Há algo de sigiloso e velado na linguagem dos místicos que escapa às interpretações tradicionais. Necessita-se de algo mais para penetrar em seus mistérios. Há uma “lógica do coração” que transborda a “lógica da razão”. Attar convida os leitores de seu livro para abraçar o que chama de “ciência de Medina”, que é porta de acesso à linguagem esotérica dos pássaros. É necessário sublinhar a peculiaridade da teoria do conhecimento dos místicos, que é distinta da forma de teoria que conhecemos, que se dá mediante o aprendizado convencional. O místico, ao contrário, faz também recurso à “aprendizagem direta”, por via do dom divino. Dizia um grande místico sufi egípcio: “Conheci o meu Senhor por meio do meu Senhor, sem o meu Senhor, jamais poderia conhecer o meu Senhor”. Trata-se do conhecimento íntimo de Deus, bebido em sua câmara secreta, e que os místicos sufis nomeiam como ma´rifa. Para firmar o seu conhecimento, os místicos rastreiam também os “atalhos da inspiração”, para além da rota conhecida, traçada no tradicional mapa do conhecimento. Em clássico texto de Ibn´Arabi sobre a tensão entre os eruditos exotéricos e os sufis, ele trata da diferença entre o conhecimento de ambos. A seu ver, os primeiros recebem seu conhecimento dos mortos, e os outros do “eternamente vivo”. Essa é a diferença para ele. No âmbito da filosofia ocidental, pensadores como Jean Baruzzi, Jacques Maritain e Georges Morel debateram intensamente esta questão. Este último autor, no prefácio de sua volumosa obra sobre João da Cruz, abordou este tema da filosofia, teologia e mística. Assinala que o místico, na verdade, toca o coração do filósofo, despertando nele uma “nostalgia, talvez rechaçada, a nostalgia do mistério das coisas”.

IHU On-Line – Em sua opinião, como se manifesta a radicalidade da linguagem mística em geral, uma linguagem muitas vezes ousada para os padrões sociais e eclesiais? Em que ela se diferencia da linguagem teológica ou filosófica?

Na ampla introdução de Leonardo Boff feita para a tradução brasileira do livro de Mestre Eckhart sobre A mística de ser e de não ter, ele fala das dificuldades da mística com as instituições religiosas. Segundo Boff, “a instituição religiosa assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos de controle, dificilmente convive com a experiência dos místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que experimentaram o inefável do Mistério”. A linguagem dos místicos é tecida por alusões, oxímoros e dislates. Não é uma linguagem usual e rotineira, mas marcada pelo traço excessivo. Ao final de seu complexo sermão sobre a bem aventurança dos pobres, Eckhart assinala: “Quem não compreende a fala, não aflija com isso o seu coração. Pois enquanto o homem não se iguala a essa verdade, não compreenderá essa fala. Essa é, sim, uma verdade sem véu, vinda diretamente do coração de Deus” (Sermão Alemão 52). É uma fala de ousadia, “abusada”, como também vislumbramos em Ibn ´Arabi, que chegou uma vez a dizer: “Diversa são as crenças professadas pelas pessoas sobre Deus. Mas eu as professo todas. Creio em todas as crenças”. Ao refletir sobre a linguagem excessiva dos místicos alemães, o filósofo Amador Vega – grande especialista em Eckhart – assinala o traço de sua novidade linguística. É esta novidade que provoca resistências e oposições, pois desloca a perspectiva tradicional que sustentava até então o conhecimento ou o dogma. Indica não haver uma gramática teológica plausível para interpretar a novidade linguística que acompanha uma experiência que é viva e profunda. Esse é um desafio que fica para nós, estudiosos da mística.

IHU On-Line – Como as grandes religiões do mundo abordam a mística? Que contribuições a mística pode dar ao fortalecimento do diálogo inter-religioso?

Prefiro fixar-me na segunda parte da questão, que está mais ligada ao meu campo de pesquisa e reflexão. Trabalhei esse tema em vários artigos. Sublinho aqui o que entendo como essencial. A experiência mística carrega consigo uma fundamental exigência de humildade, esvaziamento de si e abertura ao mistério irredutível do outro. Ela faculta também um trabalho interior, essencial para a criação de espaços de hospitalidade. Há que acolher e hospedar o outro dentro de si. Sem esse exercício fundamental não há disponibilidade dialogal. É interessante verificar como que à medida em que avançamos em direção ao nosso mundo interior, no âmbito da profundidade, cresce a consciência da particularidade e contingência de nossos vínculos identitários e despertamos para uma tal liberdade espiritual, capaz de desvelar para nós a irradiadora presença de Deus em toda parte.

IHU On-Line – Na sociedade contemporânea, qual é o papel da mística e da espiritualidade, especialmente feminina? É possível levarmos uma “vida mística” hoje? Quem seriam os místicos/as contemporâneos?

O grande místico cistercience, Thomas Merton, sinaliza em seu livro sobre As novas sementes da contemplação, que “é precisamente porque os santos estavam absortos em Deus que possuíam a capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”. Essa é a delicadeza peculiar do místico: sua capacidade de atenção aos pequenos sinais do cotidiano e sua abertura ao canto das coisas. É alguém sempre desperto para o infinito Real que brilha dentro da realidade. É alguém dotado de um inaugural potencial de ver, e de ver para além dos nomes e formas que estão aí. Ele busca em seu “desaforado amor pelo todo”, ir sempre além e mais fundo. Sua meta é “atravessar os umbrais da vida” e penetrar na tessitura do tempo, e de forma radical.

(Publicada no IHU On-Line – n. 385, ano XI – 19/12/2011, pp. 12-17)

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=385 (acesso em 04/01/2012)