sábado, 28 de agosto de 2010

Raimon Panikkar, buscador do mistério

Raimon Panikkar, buscador do Mistério

 

Faustino Teixeira

 

Os místicos dizem que a morte mais difícil não é a morte física, essa morte pequena, mas aquela que acontece com o desapego radical e o mergulho na profundidade da alma. A expressão utilizada é “morrer antes de morrer”. Assim aconteceu com Raimon Panikkar, que nos deixou nesse agosto de 2010, aos 91 anos de idade. Talvez tenha sido um dos Buscadores do Mistério mais ousados e provocadores. Sua vida foi toda tecida pela dinâmica da relação. De mãe católica e pai hindu, traz em sua vida esse traço de dialogação. Uma vez perguntado sobre o seu itinerário pessoal respondeu que partiu cristão, descobriu-se hindu e retornou budista, sem ter jamais cessado de ser cristão. E anos depois, acrescentou que no seu retorno, descobriu-se um cristão melhor. Esse é Panikkar, referência singular para o diálogo das religiões e a reflexão sobre a espiritualidade. A perspectiva dialogal estava envolvida em sua vida como o musgo na pedra. Não via futuro nas religiões a não ser no intercâmbio criativo entre elas. Dizia que sem a interlocução externa as religiões não poderiam senão afogar-se. Propunha um “diálogo dialógico”, mais existencial, de “fecundação mútua”, que pudesse de fato envolver os parceiros numa busca comum do mistério. O diálogo para ele era, antes de tudo, um ato espiritual, que implicava uma profunda consciência da humildade e vulnerabilidade dos interlocutores diante do Mistério sempre maior e adiante. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades que acompanham a abertura e o êxodo para o mundo do outro, acreditava que esse era o caminho seguro para a construção da identidade. Tornava-se necessário conhecer e dialogar com uma outra tradição religiosa para poder situar verdadeiramente a própria tradição. Em frase lapidar, assinalava que “aqueles que não conhecem senão sua própria religião não a conhecem verdadeiramente”.

Na visão de Panikkar, o diálogo interreligioso requer como condição fundamental a atitude de “uma busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre um solo sagrado”. Há que se despir de preconceitos para acessar o mundo do outro. E essa viagem não é fácil. Mas há que sair do “esplêndido isolamento”. O encontro com o outro torna-se hoje “inevitável, importante e urgente”. Mas alongar as cordas é sempre muito difícil. Exige um questionamento profundo às nossas convicções e a disposição de deixar-se transformar pelo outro. Como indica Panikkar, é também um encontro “perigoso e desconcertante”, mas certamente purificador. É a condição indispensável para nos darmos conta da profundidade inexaurível da experiência humana e dos limites precisos de nossos vínculos contingenciais e limitados. Para Panikkar, o salto desarmado na realidade é “audacioso e mortal”, e esse foi o exemplo deixado por peregrinos como Buda e Jesus. No horizonte dessa busca o que existe é algo encantadoramente simples, como destaca Mestre Eckhart: algo que é “florescente e verdejante”. Panikkar indica que o verdadeiro buscador deve voltar-se para o que é simples por excelência: o Mistério que nos habita e que também brilha no mundo do outro. Na verdade, o diálogo é uma viagem novidadeira que toca de perto nossa própria peregrinação pessoal, no sentido do encontro com a plenitude de nós mesmos. Há que jogar-se com liberdade nessa água, nos diz Panikkar, ainda que nossas pernas vacilem e nosso coração titubeie. Mesmo sabendo que há o risco de nele nos perdermos e afogar, é o caminho essencial para tocar o fundo.

No último período de sua jornada, Panikkar dedicou-se ao tema da mística e da espiritualidade. Para ele, a mística vem entendida como a “experiência integral da vida” ou “experiência da Realidade última”. E a categoria Realidade assumia para ele uma importância única, de densidade mais ecumênica para expressar o significado profundo da experiência do Mistério sempre maior. Enquanto a mística traduz para ele essa “experiência suprema da realidade”, a espiritualidade vem entendida como o caminho para alcançar essa experiência. É ela que faculta o essencial fermento para a qualidade da vida e para o encontro autêntico com o outro.

Em bela iniciativa da editora italiana Jaca Book, toda a obra de Panikkar está sendo recolhida e organizada e vários volumes, divididos por temas, entre os quais: mística e espiritualidade, religião e religiões, cristianismo, hinduísmo, budismo, cultura e religiões em diálogo, hinduísmo e cristianismo, visão trinitária e cosmoteândrica, mistério e hermenêutica, filosofia e teologia, secularidade sagrada, espaço tempo e ciência (Opera Omnia). 

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Testemunhos Espirituais

Testemunhos Espirituais

 

Faustino Teixeira

 

 

Em sua clássica obra sobre a teologia da libertação (1972), Gustavo Gutiérrez sublinhou a importância de uma espiritualidade marcada pelo toque da gratuidade, entendida como o segredo para um testemunho libertador efetivo. O encontro com o Deus gratuito firma-se como um requisito essencial para o despojamento necessário ao exercício de amor aos outros: “Só o amor gratuito vai até a raiz de nós mesmos e faz aí brotar o verdadeiro amor”. Ao definir a espiritualidade da libertação, Gutiérrez sinalizou que ela “é uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho. Maneira precisa de viver ´diante do Senhor` em solidariedade com todos os homens”. Dois importantes exemplos desse testemunho espiritual, singulares teólogos da libertação, deixaram o nosso convívio nesses últimos meses. Dois teólogos chilenos virtuosos: Ronaldo Muñoz (1933-2009) e Segundo Galilea (1928-2010). Não há como falar da teologia da libertação sem recordar esses dois profetas da espiritualidade. Ronaldo Muñoz, que faleceu em dezembro de 2009, foi uma das figuras mais delicadas de nossa reflexão teológica latino-americana. Conseguiu articular com maestria o trabalho acadêmico com a experiência junto às comunidades cristãs populares. Impressiona o carinho com que se dedicou aos mais pobres, que para ele refletiam de forma viva e transparente o rosto de Jesus. Em depoimento dado num encontro de teólogos da libertação em Embu-Guaçu (São Paulo), no ano de 1989, e que depois saiu em vídeo (Iser-Vídeo 1990), dizia que a opção pelos pobres é de direito divino, pois eles são os prediletos de Jesus: “É Deus mesmo que opta pelos pobres. Os pobres são a ´debilidade` de Deus. São o ponto de onde Deus se faz sensível, sofrido e esperançado na história humana”. Em sua rica e permanente convivência com  comunidades cristãs populares encontrou um povo sofrido e esperançoso, marcado por infinita acolhida e ternura. E confessa: “Devo dizer que para mim o carinho de meus vizinhos, dos meus irmãos de comunidade, entre os pobres, tem chegado a ser como as mãos de Deus que me sustentam na vida e na alegria de viver”. Todos os que tiveram a alegria e o privilégio de entrar em contato com ele, puderam captar a irradiação viva de sua ternura, acolhida e generosidade. Também Segundo Galilea, que faleceu em maio de 2010, foi exemplo de uma espiritualidade viva. Aliás, sempre que se fala em espiritualidade da libertação é um nome que vem à tona. Foi um dos pioneiros dessa reflexão na teologia da libertação. No clássico numero da revista internacional de teologia, Concilium, de 1974 (n. 96), dedicado à teologia da libertação, o teólogo Claude Geffré sublinhava no editorial o nascimento de um novo tipo de espiritualidade, marcado pela dimensão bíblica do compromisso. Dizia: “Não se trata de negar outras dimensões tradicionalmente válidas de contemplação cristã, mas de tornar a encontrar por meio da integração a dimensão bíblica, histórica, comprometida, da contemplação, dimensão tão esquecida pelos cristãos”. No mesmo número da revista, o artigo de Segundo Galilea expressava o novo modo de compreender a espiritualidade na América Latina, pontuado pela doação e pelo compromisso. A experiência contemplativa e o toque da oração são traços essenciais que irrigam com nova luz e vida a dinâmica de inserção na história. Como indica Galilea, “o Cristo encontrado e contemplado na oração ´se prolonga` no encontro com o irmão”. Anos mais tarde, Gustavo Gutiérrez iria traduzir e aprofundar essa perspectiva no belo livro Beber no próprio poço, firmando a idéia de que a gratuidade faculta um “clima” essencial para o compromisso histórico. Um clima fino e precioso que “envolve e banha nosso empenho em sermos eficazes na história”. Em singular imagem bíblica, Galilea evoca o exemplo de Moisés para delinear a dinâmica de proximidade e êxodo que acompanham a espiritualidade libertadora. A experiência de Deus não se encerra na esplêndida contemplação da sarça ardente no deserto. Ali se dá o encontro com o Mistério do “Outro”, que é pessoal e solitário: “Tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Ex 3,5). Mas esse encontro provoca a sede pelo Mistério dos “outros” e a missão de responder ao clamor de Deus em favor da libertação do povo cativo no Egito (Ex 3,7ss). Esses dois teólogos chilenos deixaram um exemplo transparente de simplicidade, abertura e compromisso com os mais pobres. Esse é o testemunho que fala mais alto. A primeira geração dos teólogos da libertação começa a brilhar noutras esferas, deixando para nós o desafio imprescindível de levar à frente uma espiritualidade sintonizada com o tempo e atenta aos dons do Mistério sempre maior.