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domingo, 18 de setembro de 2016

Assis, um acontecimento do Espírito

Assis, um acontecimento do Espírito

ENTREVISTA IHU – FAUSTINO TEIXEIRA

O que é, como e por quais razões surgiu a Jornada Mundial de Oração pela Paz, realizada em 1986 na cidade de Assis, na Itália?  Quais foram as lideranças religiosas mundiais que participaram desse encontro há 30 anos?  Pode nos contar a história da Jornada Mundial de Oração pela Paz?

O evento de Assis foi precedido por duas viagens do papa João Paulo II com colorações inter-religiosas bem decisivas. Em agosto de 1985, esteve em Casablanca falando para os jovens muçulmanos. O espírito que movia o pontífice era de abertura. Sublinhou para eles que é o mesmo Deus que une na crença muçulmanos e cristãos. Falou também do respeito requerido pelo diálogo inter-religioso, envolvendo uma bonita dinâmica de reciprocidade. Sobre os caminhos de Deus, indicou que eles nem sempre coincidem com os caminhos particulares trilhados pelas religiões, envolvendo um marco referencial de transcendência. Reiterou o respeito da Igreja Católica pelos muçulmanos e em particular o reconhecimento da “qualidade” do caminho religioso por eles seguido. Em fevereiro do ano seguinte, 1986, visita a Índia, e outras reflexões novidadeiras acontecem, indicando o apreço e o respeito da comunidade católica por aquilo que une as duas tradições religiosas. Bonita a imagem cunhada pelo papa em sua visita, dizendo que o ser humano é um “peregrino do absoluto”, na busca do rosto de Deus. Em passagem muito citada de seu discurso aos representantes das várias religiões da Índia, João Paulo II sublinha que mediante o diálogo é Deus mesmo que se faz presente entre os interlocutores, pois através da abertura mútua ocorre também a abertura a Deus.

A ideia inicial de um evento inter-religioso em Assis nasceu também do encorajamento recebido pelo papa em sua viagem a Índia. E a ocasião era propícia, pois 1986 tinha sido escolhido pela ONU como o Ano Internacional da Paz. Havia também a intenção de explicitar o “empenho ecumênico” da Igreja em favor do diálogo, na trilha do Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi como uma “ilustração visível” daquela perspectiva de aggiornamento eclesial. Tratava-se de uma experiência inaugural, congregando distintas tradições religiosas num empenho comum em favor da paz, mas buscando apontar uma “outra dimensão”, escondida, de promoção da paz através da oração partilhada; um momento nobre para reforçar a “qualidade transcendente da paz”.

            O evento contou com a participação de lideranças de diversas Igrejas cristãs, bem como de outras tradições religiosas: budistas, judeus, muçulmanos, hindus, xintoístas, Sikhs, jainistas, bahaístas, zoroastristas e religiões tradicionais da África e da América. Foram 124 lideranças que responderam positivamente ao convite de Roma, dentre elas Dalai Lama (Budismo Tibetano), Robert Runcie (Arcebispo de Cantuária) e Elia Toaf (Grande Rabino de Roma).

            O encontro de Assis, realizado em 27 de outubro de 1986, foi de fato uma experiência de oração, penitência e jejum, como uma “viagem” silenciosa tocada pelo Mistério Maior, uma “viagem fraterna” de irmandade e partilha, antecipando de certa forma o sonho maior querido por Deus em favor de uma humanidade renovada. Ali ocorria de fato, para além das intenções dos idealizadores, o reconhecimento da dignidade sagrada das religiões e a abertura de um campo inusitado para o diálogo efetivo entre as religiões. O evento teve três momentos. Inicialmente a acolhida do papa aos participantes na Basílica de Santa Maria dos Anjos, com um discurso de boas vindas. Num segundo momento, as diversas delegações seguiram em silêncio para os distintos locais da cidade medieval destacados para as orações particulares. Ao momento da oração particular seguiu-se um cortejo, um tempo de peregrinação, quando então os participantes seguiram em direção à praça central da cidade, situada em frente à Basílica de São Francisco, para o ato conclusivo da Jornada. Depois de uma breve introdução feita pelo cardeal Etchegaray, as diversas tradições religiosas presentes se sucederam, uma após outra, apresentando sua própria oração. O ato veio concluído com um discurso do papa.

Como esse encontro foi sendo retomado ao longo desses 30 anos e de que modo tem abordado e proposto a discussão do diálogo inter-religioso?

           A Jornada de Assis foi um ponto de partida, acentuando que a Paz é uma “responsabilidade universal”, e que as religiões têm um papel decisivo em sua defesa. E nessa luta, o que vale é a busca de unidade, que é “radical, basilar e determinante”, superando largamente as diferenças. Esse foi o ponto alto desse primeiro evento em Assis. Esse “espírito de Assis” ganhou continuidade em três outros eventos importantes, também realizados na mesma cidade. O primeiro, nos dias 09 e 10 de janeiro de 1993, com o convite inter-religioso à oração e ao jejum pela paz na Europa, especialmente nos Balcãs. O segundo, em janeiro de 2002, com outra jornada de oração visando uma tomada de atenção diante do agravamento das tensões existentes no cenário internacional. O terceiro, durante o pontificado de Bento XVI, em outubro de 2011. Esse “espírito de Assis” vai receber decidida acolhida no pontificado do papa Francisco.

Como a Jornada Mundial de Oração pela Paz recebeu e dialogou com o Concílio Vaticano II?

            Como se podia esperar, o evento de Assis causou muito constrangimento em setores mais conservadores da Igreja Católica, sobretudo na cúria romana. Para o bispo conservador, Marcel Lefebvre, o encontro inter-religioso de Assis significou “o cúmulo da impostura e do insulto a Nosso Senhor”. A seu ver, uma “blasfêmia pública” e uma degeneração herética. Outras críticas mais sutis vieram de setores da cúria romana, também insatisfeitos com o significado e as repercussões do evento. O temor maior era o de “sincretismo religioso”.  Também o cardeal Ratzinger não mostrou maior entusiasmo pela experiência, preferindo manter uma “reserva mais que morna”. No livro publicado no ano anterior, Rapporto sulla fede (1985), tinha já sublinhado o risco da tendência de uma ênfase excessiva nos valores da religiões não cristãs. O caminho seguido por João Paulo II, diante das resistências encontradas, foi explicar mais claramente o significado do evento em discurso proferido na cúria romana em 22 de dezembro de 1986. Ali então explicitou a afinidade da Jornada com o Concílio Vaticano II. O evento de Assis para ele não era senão uma “ilustração visível, uma lição dos fatos, uma catequese compreensível a todos, daquilo que pressupõe e significa o esforço ecumênico e o esforço pelo diálogo inter-religioso recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II”.

Quais são os resultados práticos oriundos da Jornada Mundial de Oração pela Paz?

           Em primeiro lugar, uma chamada radical de atenção em favor da Paz. Esse foi o toque essencial do evento. Não há saída favorável para a humanidade senão através da luta em favor da paz. Um desafio que deve tomar o coração das religiões, com a consciência viva de que estamos diante de duas únicas possibilidades: ou a verdadeira paz ou a guerra catastrófica. E as religiões são portadoras de um importante patrimônio nessa urgente tarefa, favorecendo um consenso de fundo na afirmação de valores essenciais e vinculantes como a solidariedade, a hospitalidade e o cuidado. E igualmente um papel decisivo no reforço da renovação espiritual da humanidade. Um outro resultado prático do evento de Assis foi apontar a dignidade das religiões e um estímulo singular em favor do diálogo. O belo cenário propiciado pelo evento de Assis, com a união das diversas representações religiosas, indicava um novo sinal dos tempos. A nova imagem rompia com o peso histórico de séculos de intolerância, de lutas religiosas e antagonismos étnicos. A unidade estava sendo agora construída em torno da oração. Como sublinhou Dalai Lama, a diversidade das religiões deixa se ser um “problema incômodo, mas um adorno do espírito humano e de sua longa história”.

Qual deve ser a peculiaridade da Jornada Mundial de Oração pela Paz a ser realizada entre os dias 18 e 20 de setembro, em Assis, em relação às demais? A quais instituições pertencem as 400 lideranças religiosas que irão participar do encontro? 

            O papa João Paulo II enfatizou por ocasião do primeiro evento em Assis que o empenho pela Paz não é algo esporádico, mas um compromisso a ser realizado “todos os dias da nossa vida”. Daí a preocupação em favor de uma continuidade dos eventos com o comprometimento das diversas tradições religiosas. Festejando agora em setembro os trinta anos do histórico acontecimento de Assis, mais um Encontro Mundial de Oração pela Paz, desta vez promovido pela Comunidade de Santo Egídio, em colaboração com as Famílias Franciscanas e a Diocese de Assis. A previsão é de dois dias de painéis de discussão concluídos com uma jornada de oração. O papa Francisco confirmou sua presença, assim como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, e 400 delegações envolvendo outras lideranças religiosas, mas também representações políticas e do mundo da cultura.

O encontro a ser realizado em Assis tem como título, “Sede de paz. Religiões e culturas em diálogo”. Qual é o significado desse tema neste momento histórico, em que a guerras em curso no Oriente Médio e na África e a Europa vive o drama das imigrações, por exemplo?

           Nesses tempos marcados pelo agravamento do “desgaste da compaixão” a urgência do apelo em favor da paz brada aos céus e convoca todas as religiões. Essa “sede de Paz” deve se irradiar por todo canto, esse é o lema que acompanha o evento. Na visão do líder da comunidade franciscana de Assis, frei Mauro Gambetti, “diante da violência furiosa, as religiões devem dar ao mundo uma mensagem convergente”.   

Qual é a relevância dos documentos A igreja e as outras religiões – Diálogo e Missão (1984 – Secretariado para os não-cristãos) e Diálogo e Anúncio(1991 – Pontifícia Comissão para o Diálogo Interreligioso) e qual é a contribuição dos teólogos Pietro Rossano e Jacques Dupuis para as discussões sobre o diálogo inter-religioso e a temática da paz?

          A meu ver, esses são os dois documentos mais abertos produzidos pela comunidade católica sobre o tema do diálogo entre as religiões. O primeiro, Diálogo e Missão, foi publicado  em junho de 1984 pelo então Secretariado para os Não-Cristãos. Na ocasião, o cardeal Francis Arinze estava na direção do dicastério romano, sendo o secretário Marcello Zago, conhecido por seu empenho em favor do diálogo. O documento é belíssimo, dedicando uma de suas partes ao tema das formas de diálogo. Reconhece que em âmbito mais profundo do diálogo, que toca a partilha das experiências de oração e contemplação, ocorre um “enriquecimento recíproco e cooperação fecunda, na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do homem”. Trata-se do momento singular em que a fé “não se detém diante das diferenças” abrindo-se ao Mistério maior de Deus, de todas as riquezas de sua “sabedoria infinita e multiforme”, do Deus “que é maior do que o nosso coração” (1 Jo 3,20). Quanto ao outro documento, Diálogo e Anúncio, do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso em parceria com a Congregação para a Evangelização dos Povos (1991), também situado no periodo da presidência do cardeal Francis Arinze, a linha reflexiva é bem consoante com o documento anterior. O texto contou com a preciosa assessoria do teólogo Jacques Dupuis. Vale registrar um de seus pontos nodais, quando reconhece a presença do mistério de salvação nas outras religiões, que respondem afirmativamente ao convite de Deus “através da prática daquilo que é bom” em suas próprias tradições. Em nenhum outro documento do magistério eclesial a reflexão sobre o tema havia alcançado tal patamar. O documento passou por cinco redações, sofrendo algumas mudanças importantes, sugeridas sobretudo pelo influxo mais moderado dos participantes da Congregação para a Evangelização dos Povos, cujo prefeito era na ocasião o cardeal Tomko. Os caminhos de abertura presentes nos dois documentos citados foram preparados por presenças singulares como a de Pietro Rossano. Ele foi professor de teologia das religiões na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, bem como nas universidades Urbaniana e Lateranense. Teve também singular atuação no Secretariado para os Não-Cristãos, a partir de 1973, quando foi designado como secretário desse dicastério romano. Foi talvez um dos nomes marcantes na defesa de um novo “estilo dialogal” para a igreja católica, pontuado pela abertura fraterna, de respeito e atenção cuidadosa ao outro, sobretudo aos caminhos inusitados do Espírito.

Como o papa Francisco está retomando o “Espírito de Assis” neste momento? 

            De fato, o papa Fracisco vem retomando com ênfase esse “Espírto de Assis”, com gestos de compromisso e abertura que encantam a todos, ou quase todos (sic!). O seu magistério vem marcado pela ênfase na Misericórdia e na Solidariedade. Como mote contínuo a convocação feita a toda a Igreja no sentido de “alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos” (EG 190). Sua atenção ao tema dos refugiados e de busca da Paz é recorrente. O seu verbo preferido é Dialogar, envolvendo a todos nessa urgente sinfonia que busca transformar o mundo em espaço de fraternidade. Fala com ênfase na construção da Paz, que é tarefa “artesanal”, tecida a cada dia com o impulso dado por Jesus: “Felizes os pacificadores” (Mt 5,9). O caminho de Assis vem enriquecido com o toque da ampliação do Cuidado, que agora cobre também a Terra sofrida. É o mesmo amor doado por Deus que convoca a todos a uma luta que não se restringe ao âmbito da humanidade, envolvendo igualmente o planeta que habitamos, com seus dramas e cansaços, com seus anseios e esperanças.

Deseja acrescentar algo? 

             Sim, gostaria de falar sobre um dos temas mais polêmicos que envolveu a primeira Jornada de Assis, em 1986. Trata-se da questão da distinção entre o “estar juntos para rezar” e o “rezar juntos”. É uma distinção sutil, mas que causou muita polêmica, antes, durante e depois do evento. O temor constante, lembrado por vários segmentos, estava relacionado com a possibilidade de sincretismo. Era a palavra recorrente. Diante dos riscos de interpretação, o papa João Paulo II, já na audiência geral em Roma, em 22 de outubro de 1986, um pouco antes do evento acontecer, sinalizou o traço “exclusivamente religioso” da Jornada, indicando a fórmula escolhida: “estar junto para rezar”. Rebate a ideia de “rezar junto”, ou seja, de uma oração comum, e isto para resguardar o mistério de cada tradição e o devido respeito pela oração dos outros. Busca assim descartar qualquer risco de sincretismo no evento. Sobre o tema debruçou-se o teólogo Jacques Dupuis, em capítulo do livro O cristianismo e as religiões (2001), abordando a delicada questão da oração inter-religiosa. Mesmo reconhecendo que a fórmula “juntos para rezar” foi a que ficou consagrada no evento, lança algumas interrogações a respeito. O que adverte, com razão, é que seria um erro julgar que a fórmula usada em Assis seria a única possível, levando assim a “regras rígidas e estreitas”. Argumenta que sem dúvida as circunstâncias específicas do evento de Assis excluíam a possibilidade de uma oração comum partilhada, mas isso não significa que em outros casos e circunstâncias essa possibilidade teria que ser também abolida. O caminho indicado por ele passa pelo exame das situações concretas e de um juízo pastoral cincunstanciado. Indica, sim, claramente, a possibilidade de uma oração comum quando as religiões envolvidas inserem-se nos três ramos da tradição monoteísta: judaísmo, cristianismo e islã. E isto pelo fato das três beberem na mesma origem histórica da fé de Abraão. São três tradições que partilham a mesma ideia de Deus numa distinta compreensão de seu Mistério. Na oração comum entre cristãos e os “outros” a questão se complica um pouco mais, como indica Dupuis, o que porém não exclui experiências de oração que podem ser partilhadas, na medida em que os cristãos e os “outros” se colocam humildemente diante de um Mistério Maior, que escapa a qualquer representação mental adequada. E conclui com acerto: “Rezar juntos não será senão fazer com que possam, em certo sentido, se encontrar uns e ´outros` no Espírito de Deus, presente e operante em uns e outros”.

Publicado no IHU-Notícias de 18/09/2016:


terça-feira, 28 de junho de 2016

Fora da Misericórdia não há salvação

Fora da Misericórdia não há salvação
(Entrevista no IHU)

Há um murmúrio ensurdecedor que clama por socorro e que não é capaz de ser percebido pelos ouvidos, senão pela misericórdia. “Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro”, aponta Faustino Teixeira em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio”, complementa.

No que diz respeito à Igreja Católica, o entrevistado aponta que a principal inovação no pontificado de Francisco foi buscar um olhar a partir do evangelho. “Ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema e fazer dele a chave essencial de seu pontificado”, esclarece. “A igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído”, avalia.

1. Qual é a diferença entre o perdão e a misericórdia?
A chave de compreensão mais profunda para acessar o significado do perdão é a da Misericórdia. Em seu significado literal latino, a misericórdia envolve o movimento do coração (cor) em direção aos pobres (miseri). Estamos diante de um tema bíblico de grande profundidade, que veio sublinhado de forma tão rica pelo grande estudioso Jacques Dupont. Em sua obra sobre as bem-aventuranças acentuava essa predileção de Deus pelos pobres e miseráveis, independentemente de sua piedade. A misericórdia é um dom de Deus e centro nevrálgico do evangelho. Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro. Aquele que vem tocado pela nota da Misericórdia de Deus é capaz de perdoar. Num livro extremamente instigante sobre o tema do perdão (Pecar e perdoar, 2014), o historiador Leandro Karnal fala sobre a dificuldade humana de acolher esse valor. Saber perdoar é um dos desafios mais delicados que o ser humano encontra em seu caminho. As relações humanas são frágeis, e diante das crises ou ofensas, é como se um “fino vaso” se quebrasse, e por mais que as tentativas de unir as partes pudessem acontecer, tornando a ruptura quase imperceptível, um “simples toque”, de descuido ou desatenção, pode novamente revelar a fratura. Na bela passagem do evangelho de Lucas, no relato do filho pródigo (Lc 15,11-32), encontramos um pai verdadeiramente misericordioso, capaz de perdoar. O perdão vem precedido pelo arrependimento sincero. Esta parábola ilustra o que significa a “vitória do amor”, mas igualmente a delicada situação de todo ser humano, que é falho e esbanjador. Tem razão Karnal ao sublinhar que o perdão “é um gesto que reconhece a fraqueza, a falibilidade e o embaraço humano estrutural diante do Bem”. Ele sublinha que “perdoar não é esquecer nem dar livre passe para mais erros. É só o reconhecimento de que houve um erro e há a disposição para que não ocorra de novo. Perdoar é só reconhecer a humanidade do pecador, nunca é uma defesa do pecado”.

2.    Qual é a importância de ambos em nossos dias?
Falando a partir de minha perspectiva cristã, acredito que deixar-se animar pelo dom da Misericórdia é um dos imperativos mais essenciais do seguimento de Jesus. Vivemos num tempo marcado pelo “desgaste da compaixão”, um tempo de aquecimento egocêntrico e excludente. Assistimos quase indiferentes ao triste espetáculo da rejeição absurda do mundo da alteridade, como vem ocorrendo hoje na Europa com o rechaço dos imigrantes. O outro entra em cena fazendo “barulho” e atemorizando aqueles que se instalam rigidamente do âmbito das identidades cerradas. O apelo da Misericórdia e da Compaixão passam ao largo. Mas para os que buscam acionar a espiritualidade profunda, esse apelo remove novamente as entranhas, apontando para um horizonte distinto. No caso dos cristãos, como mostrou com acerto José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, deixar-se tocar pelo seu projeto, é deixar-se habitar por uma dimensão mais profunda e uma verdade mais essencial. É estar diante de uma convocação irrevogável: um “chamado a viver a existência a partir de sua raiz última, que é um Deus que só quer para seus filhos e filhas uma vida mais digna e feliz”. O mesmo apelo evangélico que suscita a misericórdia e compaixão, é o apelo que nos disponibiliza a perdoar. A parábola evangélica do filho pródigo nos aponta o caminho mais nobre: da metáfora de um Deus acolhedor que abre seus braços, sem levantar questionamentos, para acolher aquele que se distanciou, mas que soube reconhecer sua falha.

3.    Em que aspectos a misericórdia não é exclusivamente cristã?
Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio. Segundo Dalai Lama, a sensibilidade para com o sofrimento alheio é um traço peculiar do budismo, de uma compaixão que se amplia universalmente: “Ela atinge um ponto em que somos tão tocados pelo sofrimento alheio, mesmo em sua forma mais sutil, que se desenvolve em nós uma irresistível noção de responsabilidade por todos os semelhantes”. No budismo tibetano encontramos o ideal do bodhisattva, do buscador que tendo diante de si o nirvana, o repouso absoluto na luz, prefere permanecer atento no mundo, em contato com o sofrimento, entendendo que o repouso derradeiro só pode ser alcançado quando superado todo e qualquer resquício de dor. Na tradição judaica temos a bela ideia do Deus que se faz presença no meio do mundo: a singular imagem da shekinah, que indica a Presença de Deus no mundo, de um Deus que acolhe com carinho a ideia de partilhar as dores do mundo. Nesta tradição se fala em rahamîm, do Deus com entranhas de Misericórdia; e também de hesedh, entendida como graça misericordiosa de Deus. De forma similar, no islã, encontramos a ideia do Deus omni-misericordioso (rahman) e misericordioso (rahim), um tema recorrente em todas as suras do Corão, com exceção de uma. E justo para mostrar a proximidade de Deus do humano, do Deus que não é somente distância e mistério tremendo – tanzih -, mas também mais próximo do humano do que sua veia jugular: tashbih. Essa generosidade divina vem cantada por todos os místicos sufis, como no caso do místico afegão Rûmî:

“De toda parte chega o segredo de Deus
 eis que todos correm, desconcertados.
Dele, por quem todas as almas estão sedentas,
chega o grito do aguadeiro.

Todos bebem o leite da generosidade divina
e querem agora conhecer o seio de sua nutriz.
Apartados, anseiam por ver
O momento do encontro e da união (...)”.

4.    Como os luteranos veem a questão da misericórdia?
O tema da Misericórdia de Deus é nodal na tradição luterana. Foi mérito de Lutero ter reconhecido que a justiça de Deus não é uma justiça de punição, que castiga o pecador, mas um dom que justifica. Foi o caminho que encontrou para se libertar de uma dolorosa questão que o atormentava por longo tempo: “Como posso encontrar um Deus benigno?” Com base na reflexão bíblica e no caminho da tradição, em particular Agostinho, deu-se conta de que a justiça de Deus é uma justiça justificante, onde a pérola essencial é a Misericórdia. Ao comentar o Salmo 98, Lutero reconhece que o ser humano permanece com a marca do pecado, sendo incapaz de merecer a felicidade eterna, mas o Deus Misericordioso “se recusa a atentar nas faltas do pecador”, e oferece a justificação pela fé. Ou seja, Deus acolhe com alegria aqueles que o invocam com lágrimas sua justificação. O ser humano vem assim justificado pela bondade de Deus que perdoa gratuitamente. Como assinalou o cardeal Walter Kasper em sua obra sobre a Misericórdia (2012), “a relação entre justiça e misericórdia torna-se, assim, a questão central da teologia ocidental” a partir de então. O entendimento entre católicos e luteranos sobre esse tema só veio acontecer no século XX, e agora os dois segmentos podem juntos celebrar esse novo testemunho, de que a justiça de Deus é a sua Misericórdia.

5.    Qual é o lugar da misericórdia enquanto núcleo fundamental da essência divina e da revelação cristã?

Em sua rica obra sobre a Misericórdia, Walter Kasper assinalou que este tema veio “imperdoavelmente transcurado” na reflexão teológica cristã ao longo dos anos. Ele observa que “nos manuais dogmáticos tradicionais e mais recentes a misericórdia de Deus vem tratada só como uma das propriedades de Deus entre outras e, muitas vezes, de forma breve, após a reflexão sobre as outras propriedades de Deus, que derivam de sua essência metafísica”. Hoje se recupera a centralidade da Misericórdia no testemunho bíblico, sem a qual não se pode entender de forma alguma o significado mais profundo do Mistério de Deus. A Misericórdia “é o coração da mensagem bíblica, como superação, e não atenuação, da justiça”. Lemos no Salmo 86,15 que Deus se apresenta como “piedade e compaixão”. O mesmo ocorre no Segundo Testamento, onde vem chamado de “Pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (2 Cor 1,3) e Deus “rico em misericórdia” ( Ef 2,4). Merecem destaque muito especial as duas parábolas que apresentam a figura do Pai Misericordioso: a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do filho pródigo (Lc 15,11-32). Nesta última parábola, o tema vem descrito de forma exemplar. Como assinala José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, trata-se da parábola que melhor reflete a metáfora de Deus, enquanto Pai acolhedor. Ela traduz uma “verdadeira revolução”. É quando Jesus apresenta este “banquete esplêndido para todos, fala de música e danças, de homens perdidos que provocam a ternura de seu pai, de irmãos chamados a perdoar-se”. Essa sim é a verdadeira boa notícia de Deus.

6.    Qual é a novidade da abordagem da misericórdia no pontificado de Francisco?

Não se pode falar propriamente em surpresa no pontificado de Francisco. O que ele fez, desde o início, foi algo extremamente simples: retomar o ritmo do evangelho na vida da igreja. Esse foi o seu gesto novidadeiro, trazer para o centro a “eterna novidade do evangelho”, como bem expressou Walter Kasper. E ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema, e fazer dele a chave essencial de seu pontificado. Como indica Francisco na sua encíclica Evangelii gaudium, “Deus nunca se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir” (EG 3). O evangelho, como aponta Francisco, é esse convite permanente à alegria, ao acolhimento dessa dinâmica terna de nos reconhecermos “infinitamente amados”. Francisco segue aquela linda trilha de João XXIII, indicada no famoso discurso de abertura do Concílio Vaticano II, de que a igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído. No belo diálogo com Antonio Spadoro, o papa Francisco assinala que o anúncio evangelizador deve firmar-se no que é mais essencial, na retomada evangélica, ou seja, naquilo “que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús”.

7.    Em que medida as ações de Francisco como “pastor” expressam a sua visão de misericórdia?

Para responder com pertinência a tal questão, devo antes assinalar um ponto essencial no pontificado de papa Francisco: a centralidade concedida ao ágape. Como apontou Francisco na entrevista com Eugenio Scalfari, o ágape “é o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças”. É com essa chave do ágape, do amor, que devemos situar a visão de misericórdia vivenciada por Francisco. E busca realizar isso com muita radicalidade. Assinala que a missão dos missionários é “viver na fronteira e ser audazes”. Sua visão de misericórdia vem ocorrendo em vários campos de tensão, onde as feridas encontram-se ainda abertas, como na avaliação dos divorciados recasados, dos casais homossexuais e outras tantas situações complexas. A resposta do pontífice tem sido sempre no campo da acolhida, buscando “considerar a pessoa” e situar com honestidade e ternura diante do mistério que envolve o ser humano. E sempre levando em conta o contexto específico. Em síntese, a sua visão pastoral é diversa da tradicional. Para Francisco, a pastoral misericordiosa é aquela que “não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas” e imposições, mas concentrada naquilo que há de mais essencial no evangelho que é o amor.

8. O que a parábola do bom samaritano tem a dizer às pessoas em nosso tempo?

Sempre que me deparo com esta parábola, o que me vem à mente é a reflexão de Gustavo Gutiérrez no seu clássico livro sobre a teologia da libertação (1972). No capítulo que aborda o tema do encontro com Deus na história, ele fala do amor humano de Cristo, mediante o qual ele revela o amor do Pai. Como mostra Gutiérrez, “a caridade, amor de Deus aos homens, existe encarnada no amor humano”. E como exemplo, fala da parábola do bom samaritano. Indica que aquele que se acerca do ferido que está à beira do caminho não é o religioso, que age por obrigação de fé, mas aquele que vê suas entranhas revolvidas diante da dor do outro, aquele que “moveu-se de compaixão” (Lc 10,33). Também José Antonio Pagola, ao comentar essa parábola, assinala que para Jesus “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”. É uma parábola desconcertante, onde tudo vem invertido: o religioso passa ao largo, e quem se debruça sobre o outro é o odiado inimigo samaritano. Em verdade, como diz Pagola, “o reino de Deus se torna presente onde as pessoas atuam com misericórdia”. A grande mensagem deixada por essa parábola para nós hoje é o desafio essencial da compaixão para com os excluídos, marginalizados e sofridos. Ao iniciar realmente o seu pontificado entre os excluídos de Lampeduza, o papa Francisco deixou uma mensagem evidente para todos: não há como viver a vida evangélica fora do exercício da compaixão e da misericórdia.

9. Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Gostaria apenas de deixar duas belas indicações de leitura, que nos ajudam a situar de forma adequada diante deste tema tão urgente mas olvidado: José Antonio Pagola. Jesus. Aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010 (já na sétima edição); Walter Kasper. Misericordia. Concetto fondamentale del vangelo – chiave della vita Cristiana. 6 ed. Brescia: Queriniana, 2015. Este último livro deveria ganhar logo uma tradução brasileira.


(Publicado no IHU-Notícias de 26 de junho de 2016)