Páginas

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um encontro que desvenda vidas: Una giornata particolare, de Ettore Scola

  

Um encontro que desvenda vidas: Una giornata particolare, de Ettore Scola

 

Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

Estamos diante de um dos mais belos e significativos filmes do diretor italiano, Ettore Scola, que morreu em 2016, aos 84 anos. Foi um diretor da segunda geração do neorrealismo italiano, movimento inaugurado em 1945 com o antológico filme de Roberto Rosselini: Roma cidade aberta. Na sua vida, a importante presença de Fellini, onze anos mais velho, de quem foi colega de jornal e parceiro de cinema.

 

Como mostra Luiz Zanin Oricchio, em artigo no Estadão[1], “o neorrealismo nasce diretamente da tragédia da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sob a inspiração da resistência dos ´partiggiani` em sua luta antifascista e com a ideia de que aquilo não poderia se repetir jamais”. Com a geração desses cineastas maravilhosos, o cinema italiano conseguir expressar de forma viva “o sonho de reerguimento humano e moral e que afligiu o povo italiano após a derrocada da guerra”[2].

 

Trata-se de uma obra prima de Ettore Scola e talvez o melhor trabalho da dupla Marcelo Mastroiani e Sophia Loren, a “celebração definitiva” desta amada parceria cinematográfica[3].

 

Ettore Scola faz parte da grande tradição do neorrealismo italiano, com o sonho “de reerguimento humano e moral e que afligiu o povo italiano após a derrocada na guerra”[4]. O grande tema do cinema de Scola é o testemunho, como já foi dito por Jean Tulard. Como um singular humanista, o diretor italiano marca sua trajetória artística num testemunho bonito, corajoso e fiel contra o nazifascismo. O que ocorre em outros filmes, como o aclamado Nós que nos amávamos tanto (C´eravamo tanto amati), de 1974.

 

Podemos destacar o belo roteiro elaborado por Ettore Scola, Maurizio Costanzo e Ruggeri Maccari. E também a incrível fotografia de Pasqualino de Santis e a trilha sonora de Armando Travajoli. Na produção, a presença de Carlo Ponti (marido de Sophia Loren).

 

Em 19 de maio de 1977 o filme veio apresentado no Festival de Cannes, chegando nas salas de cinema, na Itália, em setembro do mesmo ano. Mesmo sem ganhar a palma de ouro[5], o filme ganhou o apreço geral do público e da crítica de todo o mundo.

 

Foi vencedor do Globo de Ouro, bem como indicado para o Oscar: Ator e filme estrangeiro. O filme é uma “fusão perfeita de drama, crítica social e reconstrução histórica (...). Um amargo e apaixonado grito de raiva e de protesto contra uma sociedade que, não obstante o desmoronamento dos regimes ditatoriais, continua a querer dividir bons e maus na base de critérios absurdos e anacrônicos”[6].

 

O filma trata do emocionante “encontro de duas solidões”, de dois tipos excluídos (a dona de casa e o homossexual) e irmanados por um triste destino que os relega à margem por uma sociedade autoritária, incapaz de ver para além de seu próprio fascínio (sociedade fascista)

 

O que se retrata é um dia histórico na cidade de Roma, ocorrido 06 de maio de 1938, quando Hitler foi recebido por Mussolini para selar uma união política que no ano seguinte levaria o mundo à II Guerra Mundial. Trata-se do “pacto de aço”.

 

Foi um encontro alegre e fascinante para o povo daquele tempo, mas grotesco, ridículo e inquietante para os nossos dias, para os espectadores de hoje.

 

O filme se abre com um dos maiores planos-sequência da história do cinema italiano, com a câmara que filme um complexo residencial popular[7], que de alto a baixo vai captando pequenas cenas do cotidiano daquele lugar, quando os inquilinos estão ainda acordando. E aí a câmara se concentra no apartamento de Antonella (Sophia Loren), uma mulher de cerca 45 anos.

 

O prédio ficará vazio, com todos os moradores deslocando-se para o grande evento na cidade de Roma, exceção feita para a zeladora, Antonella e Gabriele. A maioria de preto, a cor dileta do fascismo: o aparato do regime era um aparato em preto e branco, fúnebre, lúgubre, sinistro, com caveiras nos estandartes.

 

Interessante verificar o que o filme mostra com clareza: a influência exercida pelo fascismo em todas as esferas da vida pública e privada. O poder de sedução exercido pela propaganda no rádio. Aliás é o tema do filme: a relação entre o público e o privado.

 

Durante todo o filme, a “trilha” será tomada pela cobertura feita pela rádio do memorável encontro entre Mussolini e Hitler

 

A câmara se detém no apartamento de Antonietta, na família de Antonietta, símbolo de uma “família fascista modelo, fiel ao regime. O marido é quase uma paródia do bom fascista, que para ser homem deve ser necessariamente, Marido, Pai e Soldado (como dirá mais tarde Gabriele (Marcello Mastroiane) para Antonietta (Sophia Loren, já mais ao final do filme, depois de ler isso escrito no álbum da família).

 

Aqui nos vemos nesse detalhe singular do filme: a capacidade impressionante do diretor em mostrar o cotidiano de dois excluídos: “Duas infelicidades se encontram nos confins de um dia particular; duas solidões exiladas aos olhos dos outros”.

 

Scola consegue a proeza de um tratamento singular desses dois personagens solitários, e o faz “com uma delicadeza e simplicidade” que encantam.

 

Por um lado, Antonietta, uma mãe-mulher (mamma-moglie) fascista modelo, mas que não é feliz. Com o marido não tem diálogo, amor ou ternura. Com ela o sacrifício de uma mulher voltada para os seis filhos e para a pátria. Fora desse “papel” de mãe, ela “praticamente não existe para ninguém”.

 

O que vemos no filme é uma intérprete despojada, que abre mão de seu glamour, como já havia feito antes sob a direção de De Sica, com Mulheres do povo[8]. Dirá Loren em sua biografia que “era uma aposta silenciar dois atores como nós, símbolos de beleza e juventude, em personagens marginalizados e submetidos”[9].

 

Por outro, Gabriele, que aparece como “um personagem opaco e misterioso”. Alguém que como Antonietta, é marginalizado, mas por sua condição de homossexual. Tinha sido, por isto, despedido de seu jornal: EIAR[10](que depois se tornará a RAI). Ele tinha inicialmente dito a Antonietta que teria sido demitido por ter uma voz problemática. Só depois revela para ela o real motivo da demissão[11].

 

A presença do pássaro, o encontro dos dois, tudo acabou demovendo-o de uma decisão de suicídio que estava para tomar: o revolver já estava em sua mesa de trabalho. 

 

Ele dirá mais tarde ao telefone, a um amigo: “Estava para cometer uma tolice. Salvou-me uma que habita próxima daqui (...). É certo que a vida vale a pena ser vivida, seja qual for. Sempre há de chegar um papagaio para nos recordar isso. Hoje é porém um dia especial para mim, sabe? É como num sonho, quando queres gritar e não consegue pois falta o ar”.

 

Em certo momento, ele vai dizer aos brados, no vão das escadas do prédio, que é frouxo, homossexual... e isto para a zeladora do prédio ouvir, uma fascista convicta. Era o “grito de dor” do personagem, que chega aos ouvidos de Antonietta, mas também de todo o público. O insulto de “frocio” reverbera como um “ato de acusa” contra uma sociedade incapaz de acolher a diversidade[12].

 

Mas em realidade, Gabriele é uma pessoa digna, de ânimo positivo, prá cima, culto e gentil.

 

Será a primeira vez que o cinema italiano afrontará o tema da homossexualidade de uma outra perspectiva, mais humana e profunda com respeito aos clichês estabelecidos.

 

Os dois se encontram por casualidade: o pássaro de Antonietta tinha fugido de casa e pousado na janela de Gabriele:

 

Gabriele dirá em certo momento, numa frase que ficou célebre: “A vida é feita de tantos momentos diversos, e em algumas vezes, chega o momento de rir, assim improvisamente, como um espirro...”.

 

Diz Sophia Loren em sua biografia: Ontem, hoje e amanhã[13]: “Resta pouco para nos encontrarmos, basta seguir o merlo indiano que escapou... basta ousar mais alto no terraço, entre os lençóis que estão secando ao sol, para iluminar um céu desbotado de novas cores”. Ali naquele terraço ocorre uma das cenas mais lindas, quando “uma ação da vida cotidiana se transforma no gesto mais romântico e mais erótico – no senso de eros –de todos os tempos”[14].

 

Trata-se, porém, de um amor impossível, como o de Riobaldo com Diadorim ou Majnum com Laila (do clássico persa).

 

Depois de um encontro dos dois, quando Antonietta se lança sobre ele e os dois vivem uma relação de intimidade, que a marcou profundamente, ela diz:

 

“É estranho... Não sinto nenhum remorso... Aliás, com ele nunca foi assim. Não pensava que fosse assim E você?”

 

Antonietta via em Gabriele alguém, finalmente, atencioso, bem diferente da frieza de seu marido fascista, frio, infiel e agressivo...

 

Durante o processo dos encontros entre os dois, ela foi, aos poucos, se dando conta de sua situação de opressão. Naquele dia, naquele momento de mal-estar, os dois conseguem a devida coragem para “erguer a cabeça e encontrar a própria dignidade, ainda que por poucas horas”[15].

 

Com o humor aceso, Gabriele dirá em certo momento: “Chorar pode se fazer também sozinho, mas sorrir, só mesmo em dois”.

 

Retornando ao diálogo entre os dois. Ele responde à pergunta de Antonella:

 

“Ser como sou... não significa não poder fazer amor com uma mulher. É diferente. Foi bom, mas não muda nada” (a câmara filma os dois de costas, fixando-se na nuca de cada um, com um detalhe dos cabelos negros)[16]. E continua: “Encontrá-la, conhece-la, falar-lhe, passar todo o dia com você... justo hoje... foi muito importante para mim”.

 

Por fim, uma palavra sobre a trilha sonora. O diretor musical do filme, Armando Trovajoli, pianista, comenta sobre a trilha[17].

 

Como ele diz: o músico é aquele que chega por último, como a última roda do carro. 

 

Reconhece que a trilha já estava pronta, com o fundo sonoro da intermitente narração do evento no rádio, com os hinos fascistas ou germânicos, como o hino da juventude hitlerista.

 

O diretor musical falou das dificuldades em musicar algo que já estava pronto, perfeito, sem música. O próprio diretor, Scola, era alguém desafinado, e que não gostava de ver a música em primeiro plano. Preferia o silêncio a uma música fictícia. Mas encontrou uma sequência final que dava espaço para uma trilha e mostrou para Armando:

 

Veio então a brilhante ideia de uma pequena sequência musical ao fim do filme, onde o pianista encaixa a fusão de duas músicas presentes no filme: o hino da juventude hitleriana com a rumba das laranjas, a música que serviu de base para a dança que ocorre no filme, com as presenças de Marcello e Sophia Loren (ele tentando ensiná-la a dançar rumba).

 

Naquela composição onde o diretor musical não precisou criar nota alguma, ocorreu apenas uma belíssima interpretação.

 

Finalizando, recorro a duas observações. Uma feita pelo historiador italiano, Vittorio Vidotti, numa das entrevistas contidas no DVD do filme. Ele sublinha que há duas sequências no filme que apontam para alguma coisa falha na máquina fascista. E isso vem expresso sutilmente pelo diretor. Na primeira, o último rapaz que deixa aquele conjunto de apartamentos para ir ao histórico desfile, tropeça numa faixa que deveria estar enrolada nos sapatos, mas está solta. Ele quase cai, mas sai apressadamente. Curiosamente, o mesmo rapaz, ao final do espetáculo, quando retorna ao apartamento, está ainda com a faixa solta, e o fato vem notado pela zeladora fascista. Isto significa que alguma coisa estava “imperfeita” no mecanismo fascista, que algo não funcionava. Uma tirada de mestre.

 

A segunda observação relaciona-se com uma entrevista concedida pelo diretor italiano a um repórter do Jornal Estado de São Paulo, que perguntava a ele sobre sua visão de mundo, e o outro rumo tomado pelo mundo depois da crise da esquerda. Scola responde: “Nesse século XXI, a humanidade atingiu um desenvolvimento tecnológico extraordinário, mas o desenvolvimento humano ficou para trás”[18].



[1]Luiz Zanin Oricchio. 

[2]Luiz Carlos Merten. Italiano Ettore fala do seu eterno ´Dia muito especial`. O Estado de São Paulo, 24/11/2021.

[3]Luiz Carlos Merten. A dupla que faltou. O Estado de São Paulo, 28/11/2021.

[4]Luiz Carlos Merten. Italiano Ettore fala do seu eterno “Dia muito especial”. O Estado de São Paulo, 24/11/2014.

[5]O filme vencedor foi Pai Patrão, dos Irmãos Taviani. No júri, a presença de Roberto Rossellini.

[6]Marco Paiano. Una giornata particolare: recensione del film di Ettore Scola. Cinematographe.it, 19 maggio 2017.

[7]São os conhecidos edifícios Palácios Federici, na Viale XXI Aprile: o maior edifício de casas populares construído na Itália dos anos trinta, e apreciado até hoje pelos arquitetos. 

[8]Luiz Carlos Merten. Italiano Ettore fala do seu eterno “Dia muito especial”. O Estado de São Paulo, 24/11/2014.

[9]Sophia Loren, Ieri, oggi, domani. La mia vita. Rizzoli, 2014.

[10]A sigla inglesa para o Ente Italiano per le Audizioni Radiofoniche.

[11]Dirá a ela: “Tem uma frase no seu álbum... O homem deve ser marido, pai e soldado”. Eu não sou... um marido, nem pai, e nem soldado”. Quando então dirá para ela o real motivo de sua demissão da rádio. E ela dirá: “Não entendo”. E ele: “Entendeu perfeitamente”.

[12]Chiara Ugolini. 40 anni di “Una giornata particolare”, una donna e un uomo sullo sfondo del fascismo. La Repubblica, 15 maggio, 2017.

[13]Sophia Loren, Ieri, oggi, domani. La mia vita. Rizzoli, 2014.

[14]Mario de Renzi. 1977. Una giornata particolare nelle case in vialle XXI Aprile. Archivio progetti Mario de Renzi.

[15]Marco Paiano. Una giornata particolare...

[16]O diretor Scola em comentário sobre o filme, sublinha que o produtor Carlo Conti, então marido de Sophia Loren, confidenciou a ele ser muito difícil um gay permanecer gay depois de transar com Sophia Loren...

[17]O depoimento encontra-se no DVD sobre o filme, como anexo ao filme.

[18]Luiz Carlos Merten. Italiano Ettore fala do seu eterno “Dia muito especial”. O Estado de São Paulo, 24/11/2014.

Nenhum comentário:

Postar um comentário