O humano em relação: novos desafios do pensamento vegetal e animal
Faustino Teixeira
PPCIR/IHU/Paz e Bem
Tantas reviravoltas vêm ocorrendo em minha reflexão nos últimos tempos, todas ligadas ao questionamento do antropocentrismo. A primeira intuição veio com a mística zen budista, sobretudo com Mestre Dôgen, no seu precioso Shôbôgenzô, que me ajudou a perceber com clareza que as montanhas e os rios têm vida e se movimentam: são como sutras da alegria, que nos revelam o caminho[1]. Ele diz que se demonstramos incapacidade de perceber isso, não damos o passo essencial para compreendermos nós mesmos. Com Dôgen nos inserimos numa espiritualidade da ressonância. A ressonância que vislumbramos no movimento e música dos bambus, que se inserem maravilhosamente na dinâmica do despertar. Cada flor que se abre, como diz Dôgen, é o mundo inteiro que se alça, numa expressão viva de ressonância[2].
O antropólogo, Tim Ingold, foi outro autor fundamental no meu novo itinerário, sobretudo para entender com mais clareza a "textura do mundo da vida". Reforcei com ele minha ideia de que tudo o que existe na natureza é dotado de vida e movimento. Onde há vida, diz ele, há movimento. Isso ocorre com o sol, com as árvores, com o vento[3]. Trata-se da beleza de descobrir o que pulsa vivo na ontologia anímica.
Depois veio Anna Tsing, com suas brilhantes reflexões e intuições sobre a rede misteriosa e complexa que brilha sob os nossos pés. Com ela me dei conta de forma vigorosa de uma antropologia da habitalidade e da inter-relação. Entender que nós, seres humanos, não podemos viver sem as outras espécies. Elas fazem parte de nosso tecido habitacional. O que somos são seres inseridos dentro de "teias ecológicas" e não delas destacados[4].
Tsing mostrou com muita lucidez a relevância e essencialidade das paisagens multiespécies, que favorecem a nossa condição de humanos relacionais[5]. São lindas suas reflexões sobre o cosmopolitismo que ocorre sob os nossos pés: a riqueza e pertinência das "teias micorrízicas" que conectam raízes e fungos, árvores com árvores, dando vida a um emaranhado lindo e complexo, no qual estamos sempre envolvidos.
Com Tsing aprendi o fundamental conceito de ressurgência, que é "o trabalho de muitos organismos que, negociando através de diferenças, forjam assembleias de habitabilidade multiespécies em meio às perturbações"[6]. Perturbações que foram provocadas pelos homem-humano do antropoceno. Através de suas indagações somos desafiados a ocupar as ruínas, a resistir, a "dançar sob os escombros", descobrindo fachos de luz. É o desafio de "lançar nossa fúria contra o senso comum; alcançar o que eles dizem que não podemos ter: o comum"[7].
Ainda com a antropologia fui me dando conta, com mais nitidez, sobre o pensamento dos vegetais, a sabedoria das árvores, contra a perversa dicotomia que criamos entre natureza e cultura. Pude descobrir o trabalho precioso de Eduardo Kohn, "Como pensam as florestas"[8], que me ajudou a entender a importância de maior flexibilidade na reflexão, rompendo as amarras estreitas do antropocentrismo. São reflexões que centram seus argumentos contra a ideia de excepcionalismo humano. São aprendizados para o melhor viver, num mundo que partilhamos, convivemos e aprendemos com outras "espécies companheiras"[9], para utilizar uma expressão preciosa de Donna Haraway, outra autora muito importante na minha reflexão atual.
E agora vou descobrindo outras facetas fundamentais para aprofundar essa reflexão, que vem de autores como Maturana, Evando Nascimento[10], Michael Marder[11], Emanuele Coccia[12]e Stefano Mancuso[13]. Por intermédio da FLIP 2021, fui me abrindo para essa nova vertente de reflexão, identificada como "virada vegetal". Fiquei fascinado com a matéria de Ruan de Souza Gabriel, publicada em duas páginas do O Globo de sábado, 27/11/21, com o singular título: Festa na Floresta[14].
Muito rica a entrevista concedida pelo botânico italiano Stefano Mancuso, inserida na matéria que mencionei. Ele foi um dos convidados da FLIP 2021. O botânico, como indica Ruan de Souza, "defende que as plantas são inteligentes, comunicam-se umas com as outras e cooperam entre si graças a uma complexa rede formada por raízes e fungos, uma espécie de internet vegetal".
Como um teórico do pensamento vegetal, Mancuso ajuda-nos a alargar a nossa concepção de humanos e igualmente o conceito de "nós", inserindo também em sua definição toda a realidade ambiente. Para Mancuso, "ver as coisas do ponto de vista das plantas é revolucionário. Somos quase o oposto delas. Nós consumimos energia e recursos. Elas produzem. Nosso organismo é concentrado e hierárquico. O delas é difuso em rede. Fizemos o mundo à nossa imagem: todas as nossas organizações são hierárquicas, há sempre uma ´cabeça` no topo que toma todas as decisões. Isso é muito ineficiente. As plantas não têm nada que se compare ao nosso cérebro. Funcionam em rede, como a internet. Todas as decisões são tomadas localmente".
Como diz Mancuso, "uma floresta é um superorganismo. Todas as plantas estão interligadas por meio de uma rede subterrânea de raízes e fungos. Há uma troca contínua de água, nutrientes e informação". As plantas sobrevivem com o apoio e sustentação (holding) de todos os vizinhos. A planta jovem, diz Mancuso, "sobrevive sustentada por todas as suas vizinhas. Entre os humanos, esse tipo de cooperação só existe no interior das famílias. Para as plantas, isso é natural".
Em capítulo que trata o amor, no livro de Humberto Maturana, Ontologia da realidade[15], ele sublinha:
“o amor é a condição dinâmica espontânea da aceitação, por um sistema vivo, de sua coexistência com outro (ou outros) sistema (s) vivo (s), e que tal amor é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um acontecimento que acontece ou não acontece”[16].
O amor não combina com a competição, tão presente no mundo do homem-humano. Para Maturana, “a competição nega o amor (...). A origem antropológica do Homo sapiensnão se deu através da competição, mas sim através da cooperação, e a cooperação só pode se dar como uma atividade espontânea através da aceitação mútua, isto é, através do amor”[17]. A aceitação do outro, seja esse outro humano, animal, vegetal ou mineral, “é o inimigo da dia tirania e do abuso, porque abre um espaço para a cooperação. O amor é inimigo da apropriação”[18].
Nesse nosso tempo sombrio, vislumbramos reflexões que são fantásticas, que nos ajudam a repensar radicalmente nossa inserção na Terra. Falamos antes da abertura ao pensamento vegetal, mas também há reflexões fantásticas sobre o desafio da abertura aos animais. Vemos isto na literatura de Clarice Lispector[19]e Guimarães Rosa, e também na antropologia de Donna Haraway e Vinciane Despret[20]. É um tempo propício para repensar as nossas relações e buscar sobreviver em tempos de crise e tentar “seguir com o problema”, como indica Haraway[21]. A perspectiva que se abre não é tanto pelo caminho do pós-humanismo, abortando a singularidade do humano, mas buscando novos itinerários de convivência, quem sabe assumindo o desafio de viver num mundo em ruínas, abraçando com mais carinho a nossa condição “compostista”, dialogal e relacional.
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[1]Mestre Dôgen. Sansauykyo (Montanhas e rio como sutras). Shôbôgenzô. Le vrai loi, trésor de l´oeil. Tome 1. Vannes Cedex: Syully, 2005, p. 103-104.
[2]Mestre Dôgen. Udonge (A flor de udumbara). Shôbôgenzô. Tome 1, p. 189.
[3]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 122-123.
[4]Anna Tsing. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019, p. 43-44.
[5]Veja também a respeito a carta encíclica de papa Francisco: Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 16, 42, 91-92 e117.
[6]Ibidem, p. 226.
[7]Ibidem, p. 88.
[8]Eduardo Kohn. Comment pensent les forêts. Le Kremlin-Bicêtre: Zones Sensibles, 2013. Sobre a crítica ao excepcionalismo humano cf. p. 47-48.
[9]Donna Haraway. O manifesto das espécies companheiras. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
[10]Evando Nascimento. O pensamento vegetal. A literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
[11]Michael Marder. Plant-Thinking: A Philosophy of Vegetal Life. Columbia University Press, 2013.
[12]Emanuele Coccia. Vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Cultura e Barbárie; Id. A vida sensível. Cultura e Barbárie.
[13]Stefano Mancuso. A planta do mundo. Ubu Editora, 2021; Id. Revolução das plantas. Um novo modelo para o futuro. Ubu Editora, 2019.
[14]Ruan de Souza Gabriel. Festa na Floresta. O Globo, 27/11/2021, Segundo Caderno.
[15]Humberto Maturana. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.
[16]Ibidem, p. 184.
[17]Ibidem, p, 185.
[18]Ibidem, p. 186.
[19]Evando Nascimento. Clarice Lispector: uma literatura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
[20]Vinciane Despret. Bête et hommes. Paris: Gallimard, 2007; Que diraient les animaus, si... on leur posait les bonnes questions? Paris: La Découverte, 2014; Vinciane Despret & Jocelyne Porcher. Être bete.Actes Sud, 2007.
[21]Donna Haraway. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Edición Consonni, 2020.
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