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sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

O amor entre a maravilha e a dor: Era uma vez na América, de Sérgio Leone

 O amor entre a maravilha e a dor: Era uma vez na Ámerica, de Sérgio Leone.

 

Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

 

 

Em mais um encontro do Paz e Bem, “Filmes em Perspectiva”, em parceria com o IHU, estive junto com Angelo Atalla para falar de um grande filme: “Era uma vez na América”, de Sergio Leone. Trata-se de um filme franco-italo-americano, de 1984, com roteiro baseado no romance de Harry Grey, Tho Hoods: um ex-gangster que se torna informante da polícia.

 

No filme são dissecadas cinco décadas da vida dos EUA, entre fins do século XIX e os primeiros trinta anos do século XX.

 

Para o filme trabalharam seis roteiristas, incluindo Sergio Leone para a adaptação cinematográfica do livro de Harry Gray. O roteiro desenvolvido tinha 400 páginas ao final.

 

Foram 11 anos para começar a concretizar o projeto pessoal de Leone.

 

Como indica Ana Sena, em resenha no Classic Movies[1], “é uma obra que fala sobre amizade, lealdade, violência, traição e de como nossas escolhas tem resultados cruéis e reais”.

 

Tudo ocorre num bairro judeu de Nova York, sendo as cenas internas gravadas em Cinecittà.

 

Dos traços que mais me marcaram no filme: as sequências lentas (que falam por si e arrebatam com imagens lindas), os closes maravilhosos e os diálogos fascinantes.

 

O filme é um “deleite audiovisual definitivo” para todo cinéfilo que se preza. Uma “aula narrativa, com um desenvolvimento meticuloso magistral”.

 

O filme estreou no Festival de Cannes em 23 de maio de 1984[2]e lançado antes nos EUA em janeiro de 1984[3]. A versão original tinha 269 minutos (4 horas e 29 minutos). Depois foi reduzida para 229 minutos (3 horas e 49 minutos). Foi lançado nos EUA, contra a visão do diretor, com uma versão ainda menor, com 2 horas e 19 minutos, sendo um fracasso crítico e comercial.

 

O filme vem estrelado maravilhosamente por Roberto de Niro e James Woods, nos papeis dos amigos David Noodles e Maxilian (Max). São dois amigos que lideram um grupo de jovens judeus do gueto no crime organizado de Nova Iorque.

 

Destaque para a direção de fotografia, de Tonino Delli Coli e a magnífica trilha sonora de Ennio Morricone.

 

O filme é considerado hoje uma obra prima.

 

Concentro-me aqui em dois aspectos que me marcaram no filme: a trilha sonora e a história de amor e dor entre Noodle e Deborah, dois personagens centrais do filme.

 

Sobre a Trilha Sonora:

 

Estamos diante de uma das trilhas mais lindas do cinematografia mundial. Morricone é um dos grandes especialistas nessa área. Também compôs a trilha sonora de outro filme de Sergio Leone, de sua trilogia dos dólares: Era uma vez no Oeste[4].

 

Registro aqui também a belíssima trilha feita por ele dos filmes: A missão (Roland Joffé), Daysi Heaven (Dias do Paraíso - Terrence Malikc) e Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore).

 

Da trilha de Era uma vez na América (1984): Once upon a Time in America, Deborah´s Theme, Poverty, Childhood memories, Amapola e Friends. Fato notável dessa trilha é a incorporação, por Morricone, da música de Gheorghe Zamfir, que toca uma flauta de pan.

 

Como grande mestre de trilhas sonoras, Morricone arrasa nesse filme, compondo uma das melhores trilhas das centenas por ele criadas.

 

Há também outras canções incidentais na trilha: God Bless America (Irving Berlim); Summertime (Porg and Bess); Night and Day (Cole Porter); Yesterday (Lennon e Mc Cartney); Amapola (Joseph La Calle); La gazza ladra (Francesco Molinari)

 

Uma história de amor e dor

 

Logo ao início do filme, em flashback, o personagem Noodle – já bem mais velho, visita aquele lugar fantástico, onde do banheiro, ele conseguiu – quando jovem ( interpretado por Scott Tiler) – observar Deborah dançando ao som da canção Amapola  (interpretada magnificamente por Jennifer Connely, quando tinha 13 anos).

 

Quando mais velha, Deborah vem interpretada por Elizabeth Mc Govern e Noodle por Robert de Niro.

 

Como assinala Cicero Tavares, outro resenhista do filme[5], a jovem atriz teve uma excelente presença de cena, com grande maestria na exibição de sua expressão corporal.

 

O romance se desenrola na narrativa por décadas, desde a infância. Como indica Ana Sena em sua resenha, “em momentos de pura genialidade, Leone brinca com nossos sentimentos ao usar uma cena tocante e emocional, antes de um acontecimento brutal, como o fatídico estupro ou mortes a acontecer”. Aqui está um dado que também observei e que me causou grande impressão. Você vai se embalando com uma história de amor, e logo vem acordado por um toque de violência. 

 

Em dado momento, já no início da primeira hora do filme, os dois jovens se reencontram, por ocasião da Páscoa Judaica, quando todos estão na sinagoga. Eles se encontram sozinhos no negócio da família dela.

 

Ela o observa de longe, entra no negócio deixando a porta aberta. Ele entra em seguida. Vai ao banheiro para ver na brecha aberta por um taco, e ela o surpreende.

 

Ele pede algo para beber, e ela diz que o negócio está fechado e todos estão na sinagoga. Diz a ele: você também pode rezar aqui. Aqui ou na Sinagoga. Prá Deus tanto faz. E o convida para sentar a seu lado, num balcão com legumes e frutas:

 

E recita um trecho do Cântico dos Cânticos, intermeando com observações sobre ele:

 

“Meu amado é branco e rosado. A pele dele é como o mais puro ouro. As maçãs do rosto são como especiarias. Apesar de não lavá-las desde dezembro. Seus olhos são como os dos pombos. Seu corpo um marfim reluzente. Suas pernas são pilares de mármore. Em calças tão sujas, que param em pé sozinhas. Ele é absolutamente adorável, mas sempre será um imprestável... portanto, nunca será meu amado. Que pena.”

 

E os dois se beijam rapidamente, sendo interrompidos por um chamado, que depois vem identificado com o de Max. Aquele seu assovio característico. 

 

E Deborah, diz, enfastiada: “Então era ele! Vamos corra. Sua mãe está chamando”. É uma expressão que ela usará outras vezes quando os dois vêm interrompidos durante seus encontros, em outros momentos da vida.

 

Logo em seguida há uma cena forte de conflito, quando uma gangue rival cerca os dois amigos na rua, Noodle e Max, e eles levam uma surra feia. Na sequência, a cena dele  com a cara ensanguentada diante do portão do negócio dos pais de Deborah. Ela está lá, escondida, com o olhar voltado para a porta, e não a abre...

 

Ocorre que Noodle será preso, e quando retorna da prisão vai encontra-la de novo, agora num bar dirigido por amigos e o irmão dela – uma presença bonita no filme - pede a orquestra para tocar a música dos dois. 

 

Deborah tinha contado nos dedos os dias da ausência do amado... Mas novamente ele vem chamado por Max e ela repete o refrão: “Vamos corra. Sua mãe está chamando.”

 

Nessa ocasião ela era bailarina no Pálace. Diz a ele que a pode expiá-la lá quando quiser, se tiver tempo.

 

Mais adiante, num suntuoso restaurante (filmado em Veneza), os dois se reencontram numa cena que é linda: todo o restaurante fechado para os dois, com as mesas postas, os garçons preparados, e a orquestra tocando a música dos dois. 

 

Escolhem uma mesa com visão para o mar, conversam e depois dançam maravilhosamente ao som da orquestra.

 

Mais ao anoitecer, os dois estão deitados no jardim, e conversam. Noodle pergunta se ele ainda está nos planos dela. Ela diz: “Você foi a única pessoa... que gostei”. E complementa: “Mas você me trancaria e jogaria fora a chave”. No que ele concorda. E ela: “E eu, provavelmente, não iria ligar”.

 

Ele diz a ela que ela e Max são parecidos, com essa ânsia pelo topo: são semelhantes, diz ele, e por isso se odeiam...

 

Diz ainda: “Para não enlouquecer, você tem que se desligar do mundo exterior. Não pensar nele”.

 

E continua: “No entanto, anos se passaram, mas parece... que o tempo não passou porque eu não estava fazendo nada”.

 

Diz a ela que duas coisas não saíram da cabeça dele no tempo de ausência: Uma era o garoto Dominique, morto em perseguição no início do filme (e ele vai dizer... que escorregou, morrendo em seguida em seus braços); E a outra coisa era ela...

 

Recorda daquele encontro memorável quando ela leu para ele lindas passagens do Cântico dos Cânticos, da bíblia judaica.

 

E ele retoma algumas passagens do livro:

 

“Que lindo são seus pés, em sandálias, filha do príncipe. Seu umbigo é uma tijela arredondada, cheia de vinho; Seu ventre, um monte de trigo cercado por lilases. Seus seios, cachos de uva! Seu respiro doce, recendia a maçãs”.

 

Diz a ela, emocionado, que lia a Bíblia na prisão todas as noites, sempre pensando nela. 

  

E naquele encontro singelo diz uma das frases tocantes: “Ninguém vai te amar como eu”. Isto remeteu-me a um dos poemas de amor mais lindos do nicaraguense Ernesto Cardenal, feito para uma de suas “muchachas”:

 

            Ao perder-te eu a ti, tu e eu perdemos:

Eu, porque tu era o que eu mais amava

E tu porque era o que te amava mais.

Mas de nós dois tu perdes mais que eu:

Porque eu poderei amar a outras como te amava ti,

Mas a ti não te amarão como te amava eu.[6]

 

Retomando a cena do filme, Noodle dizia que às vezes não suportava e pensava nela. Dizia: “Deborah vive. Ela está por aí. Ela existe...  Isso me dava ânimo para continuar”. E arremata: “Sabe como isso foi importante para mim?”

  

Ela então diz a ele que está partindo no dia seguinte para Hollywood, para realizar seu sonho de ser atriz.

 

Ele se desconcerta... No carro, de volta, está passado, contrariado com a novidade. Ela tenta se aproximar para beijá-lo. Ela beija-a, mas depois violentamente ocorre o imprevisto: o estupro violento, com ela aos gritos. O motorista do carro impassível... 

 

Quando o carro para ele sai, depois retorna e ela o recusa. Ele tenta dar uma gorjeta ao motorista, que também não aceita, saindo chateado para cumprir o que Noodle recomendara: levá-la para casa.

 

No dia seguinte ele ainda vai à estação. Ela o vê, já dentro do trem, entristecida, e os dois não se falam.

 

Depois de longos 30 anos, os dois se veem novamente. Agora ela era atriz famosa e está no camarim com a face toda maquiada. Vai aos poucos limpando o rosto, em cenas longas e duras... E os dois conversam:

 

Eles se olham, ele a saúda. Ela fica em silêncio. Ele diz: “Não me diz nada?”

 

E ela: “O que uma pessoa deve dizer depois... de mais de trinta anos ?”

 

E ele: Dizer “Que tal?”; “Como vai?”; “Esperava nunca mais ver você...”

 

Diz que pelo menos ela o reconheceu. E ela responde que as atrizes têm boa memória.

 

Ela oferece um drink a ele, que recusa, e então ela pergunta por que ele a procurou ali. 

 

Ele estranha que a auxiliar dela a chama de senhorita. Então não estava casada...

 

Pergunta se ela nunca se casou e ouve como resposta: não.

 

Ele diz a ela que estava ali por dois motivos: o primeiro, para ver se ela tinha se acertado na vida de atriz, tendo trocado ele pela carreira, e pôde constatar que isto ocorrera. Fica impressionado com a sua beleza: “A idade não a atinge”.

 

O outro motivo: se iria ou não a uma festa que um tal de secretario Bayle o convidara: um grande empresário que estava passando por graves necessidades.

 

Ela se espanta com a notícia da festa e de Bayle. E diz: “Nós envelhecemos. Tudo que nos resta são as lembranças”. Diz ainda que se ele fosse a festa, isto tudo poderia ficar prejudicado. Pede a ele para rasgar o convite.

 

Ele diz se ela teme vê-lo transformado numa estátua de sal. E ela: “Se você passar por aquela porta, sim...”

 

Ele sai por uma porta alternativa e se depara com um rapaz, filho de Deborah... Os dois se olham com estupor. Algo naquele rapaz o faz lembrar de seu amigo Max...

 

Entretanto ele vai à festa... e lá descobre o que nunca poderia imaginar... A desilusão é muito grande. Ao final, nos deparamos com cenas que impressionam, que descortinam o enigma que envolve toda a trama. Só mesmo vendo.



[2]O filme foi aplaudido de pé por 15 minutos em Cannes.

[3]Foi gravado entre 14 de junho de 1882 e 22 de abril de 1983.

[4]Os outros dois filmes dessa trilogia: Por um punhado de dólares e Três homens em conflito.

[5]https://luizberto.com/era-uma-vez-na-america/

 [6]Ernesto Cardenal. Epigramas. Madrid: Trotta, 2001.

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