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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A literatura e os limites do humano

 A literatura e os limites do humano

 

Faustino Teixeira

PPCIR/IHU/Paz e Bem

 

Tenho acompanhado com muito carinho a produção e reflexão de Evando Nascimento, que foi professor aqui em Juiz de Fora no Departamento de Letras. O seu livro sobre Clarice Lispector (Clarice Lispector: uma literatura pensante) foi fascinante para mim. Uma leitura essencial para tratar desse candente tema da literatura e animalidade. 

Já ali pude perceber a visão cristalina de Evando que, a partir de Clarice, levanta sérios questionamentos aos limites do humano. Apresenta a questão da animalidade, do não humano, como passo essencial para a ultrapassagem das barreiras impostas pela civilização ocidental no seu afã de progresso e desenvolvimento. Para Evando, com razão, a literatura de Clarice volta-se para uma "zoografia ficcional" em que coloca em questão os limites da tradição humanista.

Em Água viva, por exemplo, Clarice fala em apelo ou chamado. Clarice sublinha que "não ter nascido bicho" é sua "secreta nostalgia". Na obra "Paixão segundo G.H." ela responde ao chamado, em passagem maravilhosa:

"Como se uma mulher tranquila tivesse simplesmente sido chamada e tranquilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra - abandonando su
avida, renegando bordado, amor e alma já feita - sem uma palavra essa mulher se pusesse calmamente de quatro, começasse a engatinhar e a se arrastar com olhos brilhantes e tranquilos: é que a vida anterior a reclamara, e ela fora".

Também Guimarães Rosa, em página sublime, fala do onceiro que se vê chamado à origem e vai se transformando em animal. Isto está no esplêndido conto Meu tio Iauaretê, de "Estas histórias". O onceiro foi sendo tomado pela "vontade doida de virar onça", e vai sentindo aquela câimbra estranha, que tomava o corpo todo. Aquela onça que urrava calada dentro dele. E de maneira extraordinária relata que a onça só pensa numa coisa: "Que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar". Ela pode até sair de sua tranquilidade, quando irritada, mas depois, quando tudo fica quieto novamente, ela "torna a pensar igual, feito em antes...". 

Em entrevista publicada no O Globo, de 26/11/21, Evando Nascimento,  sublinha que "a verdadeira inteligência hoje está no modo como nos relacionamos com as alteridades vizinhas, plantas e animais", todos colaborando para a nossa sobrevivência.

O autor reivindica o "lugar da fala" para os vegetais, rompendo com a imagem tradicional que os aprisiona na ideia de "cidadãos de terceira classe entre os viventes". O próprio verbo "vegetar" vem utilizado ironicamente para traduzir "uma vida em estado mórbido ou de coma".

Evando tece uma violenta crítica a Bolsonaro, que disse nesses tempos não se interessar por índio, nem pela "porra da árvore", mas, sim, ao garimpo. Para Evando, trata-se da mais violenta forma de "fitofobia", que cresce em determinados setores do agro-negócio.

O escritor fala da "virada animal" que ocorre em tempos recentes, e agora na "virada vegetal", que é inclusive o tema da FLIP 2021. Evando nos diz ser impossível retornar ao estado antropocêntrico anterior. Há algo de novo e urgente em curso. Sublinha que "o antropocentrismo que rege nossas vidas humanas foi posto em questão". Livros como os de Davi Kopenawa e Ailton Krenak são exemplos vivos dessa nova reflexão, reanimada pelo animismo.

Sublinha ainda, com razão, que "nas próximas décadas, todos esses saberes não ocidentais que foram sempre reprimidos, vão ter grande influência para as humanidades". 

Evando fala de autores importantes que tocam nessa essencial questão da "virada vegetal", como o botânico italiano, Stefano Mancuso. Assinala: "O rebaixamento ocidental em relação às plantas, o que chamo de fitofobia (horror ou desprezo pelas plantas) é estrutural e narcisista: elas não se parecem conosco, portanto achamos que não têm propriamente vida nem muito menos inteligência".

Muito rica a citação que o escritor faz de Anthony Trewavas, um cientista britânico, que identifica a inteligência como a "capacidade de adaptação e de sobrevivência". Enquanto os humanos foram "perdendo" sua inteligência a partir do advento da revolução industrial, assumindo a função de predadores do mundo animal, vegetal e mineral, as plantas revelam, ao contrário, uma impressionante capacidade de adaptação e reprodução.

 

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