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domingo, 21 de novembro de 2021

Um outro olhar sobre os pentecostais: um desafio para o nosso tempo

 Um outro olhar sobre os pentecostais: 

um desafio para o nosso tempo

 

Faustino Teixeira

PPCIR/ IHU/ Paz e Bem

 

Tenho muita dificuldade de fazer reflexões generalizadas sobre os pentecostais. Talvez em razão de minha sensibilidade antropológica gosto sempre de relativizar opiniões que envolvam convicções cerradas. 

 

Na minha experiência junto ao ISER e com os amigos antropólogos, aprendi desde cedo a buscar entender as razões que estão presentes no mundo pentecostal, sobretudo na experiência espiritual dos fieis, mais do que dos pastores. 

 

Inaugural foi a dissertação de mestrado no Museu Nacional de minha amiga querida, Regina Novaes, ao fazer um lindo trabalho sobre uma Assembleia de Deus no Nordeste, sendo pioneira na relativização da ideia de "alienação decorrente do proselitismo religioso" nas igrejas pentecostais. Foi extremamente rica sua pesquisa, falando sobre a "contaminação da área dos direitos trabalhistas e dos direitos pela posse e uso da terra por categorias religiosas"[1]. Quebrava-se, assim, uma ideia recorrente no meios acadêmicos tradicionais.

 

A mesma Regina, em outro trabalho importante - publicado no livro "Religião e cultura popular" (2001), volta a relativizar esse paradigma que encerra o pentecostalismo no universo conservador. Vai sublinhar, com muito pertinência, o papel dos pentecostais numa fundamental rede de sociabilidade e de ajuda mútua. Mostra igualmente a presença dos pentecostais em rincões que não foram atingidos pela pastoral católica, ali onde estão os mais pobres dos pobres:

 

Várias pesquisas já demonstraram que são os evangélicos os que mais chegam nas margens da sociedade. Chegam a lugares de onde nenhuma outra instituição civil ou religiosa ousa se aproximar. Estudos demonstram também que são apenas eles que – ao fazer nascer novas e independentes denominações – provocam dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo[2].

 

O historiador Marcos Alvito comenta também essa capacidade dos pentecostais avançarem para “dentro da favela”, com dizem eles, ou alcançarem “as vielas mais recôndidas e as áreas mais pobres”[3]. Diz ainda que é nos cultos “que se reconstrói o significado de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal”[4]. Muito rica também a descrição feita pelo autor no livro sobre o carisma de uma liderança pentecostal, que em culto ecumênico realça o papel de um "exército de anjos" que protegem os quatro cantos de Acari[5]. Trata-se de uma descrição de beleza única.

 

Beleza que também percebi no filme "Santa Cruz", de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa, abordando o nascimento e desenvolvimento de uma pequena comunidade pentecostal na periferia do Rio de Janeiro. O retrato que ele passa dos pentecostais vem tecido por um enorme respeito, no sentido de uma ressignificação do sujeito empobrecido pela experiência espiritual. Em artigo que publiquei sobre os pentecostais na Revista Concilium em 2014, caminhei nessa direção alternativa e sublinhei a importância desse filme: 

 

O filme quebra, assim, a imagem de certas representações correntes sobre o pentecostalismo, apontando caminhos novos de interpretação, favorecendo um olhar internalista e compreensivo sobre esse complexo fenômeno. Possibilita, em verdade, um olhar sobre o potencial da igreja em “formar comunidade moral e rede de ajuda mútua”. Como se a experiência comunitária “preenchesse aos poucos um espaço vazio”, de baixo potencial de dignidade. O filme busca retratar os três primeiros meses da comunidade e as mudanças suscitadas pela nova igreja: “A integração promovida pela igreja criou amizade entre os vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e ´preenchendo` de relações positivas o bairro antes ruim, ´terra de ninguém` , vazio civilizatório.”[6]

 

O mesmo se dá no livro de Richard Shaull e Waldo Cesar sobre a Igreja Universal do Reino de Deus: "Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs" (1999). Em linha de descontinuidade com a bibliografia dominante sobre o tema, eles buscam mostrar com muita riqueza o significado da experiência espiritual no mundo pentecostal. O texto de Richard Shaull no livro tem o título bem singular: Reconstrução da vida no poder do Espírito. Sublinha que a experiência espiritual dos pentecostais com o poder do Espírito, faculta-lhe uma “confiança” essencial, que é libertadora. Tomados pelo Espírito “anunciam o amor de um Deus cheio de graça, que deseja que eles tenham, aqui e agora, uma vida plena, bem como a presença do Espírito Santo com poder, para dar vida àqueles a quem ela havia sido negada”[7].

 

Sinalizo a presença em curso de estudos de teólogos singulares no mundo evangélico que vêm apontando com pertinência a singularidade da pneumatologia pentecostal. Cito aqui os nomes de Bernardo Campos, Allan Anderson e o bispo metodista Paulo Ayres. Aconselho a leitura do precioso artigo de David Mesquiati de Oliveira, publicado na revista Perspectiva Teológica (2020) sobre a Pneumatologia[8].

 

Há também o premiado livro de Maria das Dores Campos Machado, "Carismáticos e pentecostais" (1994), onde aborda o processo de conversão e adesão ao pentecostalismo. Como novidade, a reflexão de como o ingresso no mundo pentecostal envolve um novo posicionamento do fiel na vida familiar, bem como na organização pessoal da vida, em termos de harmonia e integração. Um exemplo trabalhado pela autora no livro refere-se à interpretação conferida pelos pentecostais aos problemas domésticos. Os comportamentos desviantes, como a traição, a agressão física, o recurso às drogas e ao álcool são interpretados como uma “crise espiritual”, ou mesmo uma possessão demoníaca. Os desvios que ocorrem deixam de ser atribuídos às pessoas concretas e interpretados como uma possessão do demônio. Com isso tira-se o peso da moralidade pessoal nos problemas que causaram a tensão familiar. Em casos concretos, a conversão acaba exercendo um papel de asseguramento das relações.[9]

 

É o que indica igualmente Cecília Mariz, em vários trabalhos sobre o tema, tratando sobretudo a questão dos pentecostais e a reabilitação do mundo pessoal, na superação da dependência de drogas. Em entrevista concedida por essa pesquisadora ao IHU-Online, em 17 de maio de 2010 ela assinalou:  “Em pesquisa sobre o tema, notei, em um bairro de camada popular, que, em 1/4 das famílias se relatava problemas de alcoolismo, e em 1/3 se afirmava já ter tido esse problema no passado. Também notei que, nesse bairro, a população em geral das diversas religiões percebia que a conversão a uma igreja pentecostal seria talvez a forma mais eficaz para deixar a bebida”[10].

 

Em artigo conjunto de Cecília Mariz e Maria das Dores, em livro organizado por Pierre Sanchis ("Fieis e Cidadãos" - 2001), elas sublinham o importante papel das igrejas pentecostais no campo da assistência social, colocando em suspenso "uma série de estereótipos criados para os pentecostais (apolíticos, apartados do mundo, conformistas, fundamentalistas etc.)"[11]

 

O antropólogo Ronaldo de Almeida é outro autor que pondera suas reflexões sobre o tema de forma mais compreensiva, sublinhando o traço comunitário das comunidades pentecostais, no importantes estabelecimento de “vínculos sociais que atenuam a situação de vulnerabilidade sociais das camadas mais pobres”, a “fluidez nas relações comunitárias” com os singulares “circuitos de relações com um perfil mais comunitário construídos em torno dos templos e redes familiares e de vizinhança”, sem deixar de recorrer amplamente, cada vez mais, aos caminhos mediáticos[12].

 

Certa vez, fui convidado pela revista Concilium para escrever um texto crítico ao pentecostalismo, onde pudesse assinalar a temática do mercado[13]. Contrariando expectativas, construí um texto em direção diversa, mostrando os traços positivos presentes no mundo pentecostal, citando inclusive uma reflexão muito bonita de Jurandir Freire Costa a respeito do "dom" no mundo pentecostal. Para ele

 

Os pastores vendem a salvação no céu e o enriquecimento na Terra, mas os crentes não estão necessariamente “comprando” uma mercadoria, como a lógica do mercado leva a interpretar. Estão “dando” qualquer coisa; estão participando com dinheiro para uma “causa”.

 

No meu artigo publicado na revista internacional de teologia, Concilium, indiquei que 

 

a lógica que move o fiel é bem diversa da lógica engessada que domina o pastor, cujo carisma perde o seu brilho em função do exercício de sua função. O carisma vem agora vinculado a uma “empresa burocrática de salvação”. O fiel comunga de outra visada. Nos gestos e práticas de sua experiência espiritual vem animado por uma perspectiva dinamogênica, para utilizar uma expressão de Durkheim. Com o exercício de seu dom, vem enriquecido na sua qualidade de sujeito.

 

Agora temos o recente livro Juliano Spyer, Povo de Deus. Quem são os evangélicos e por que eles importa (2020), com apresentação de Caetano Veloso. Segundo Caetano em seu texto, "é impossível (e indesejável) que alguém faça qualquer projeto para o Brasil sem levar em conta esse tema. E ninguém conseguirá nada se não respeitá-lo". Caetano elogia o trabalho de Spyer e enfatiza que “o clima de honestidade dos fiéis” não pode ser confundido “com descaminhos éticos de certa lideranças”[14]

 

Na visão de Spyer, a visão de muitos brasileiros escolarizados sobre os pentecostais revela um "preconceito contra pobres que não se vitimam e buscam sua inclusão social via educação e consumo". Num dos capítulos do livro, o autor aborda as consequência positivas do cristianismo evangélico e em outro o dado singular de ser hoje o pentecostalismo a religião mais negra do Brasil. Trata ainda de forma importante a presença dos evangélicos na luta pelos direitos e dignidade. Para Spyer, a igreja evangélica firma-se como “um espaço que, na localidade em que se instala, cumpre a função de estado de bem-estar social informal”[15]. O autor levanta ainda uma outra hipótese para entender a ideia de prosperidade nas igrejas neopentecostais: não se trata apenas de buscar a prosperidade econômica, mas igualmente uma vida melhor “em termo de saúde, vida familiar, afeto e também dinheiro”[16].

 

As ponderações relativizadoras de Spyer são muito importantes, o que não significa, como ele mesmo indica, que um olhar de dentro livre os pesquisadores de exercício crítico do “projeto de poder dessas igrejas”. Sobre isso ele trabalhou  na última parte de seu livro, dedicada à instrumentalização da fé.

 

Em artigo recente, Frei Betto fez um elogio ao livro de Juliano Spyer, mostrando a sua importância atual. O livro também agradou muito a Lula, que aparece em fotos na rede mostrando o livro. Falando sobre o tema Betto sublinha:

 

Aliás, essas Igrejas têm muito a ensinar aos católicos em matéria de ´comunhão, participação e missão`. A madame vai à missa; a faxineira dela, ao culto. E os preconceitos católicos, outrora focados nos espíritas e ateus, agora se voltam aos evangélicos, como se todos fossem fundamentalistas. Recomendo, como excelente antídoto ao preconceito, o livro de Juliano Spyer, ´Povo de Deus – quem são os evangélicos e por que eles importam` (SP, Geração, 2020)[17].

 

No show “Ofertório”, de Caetano Veloso com os filhos, ele aborda em certo momento a questão da religiosidade de Tom, Zé e Moreno, os dois primeiros filhos desde cedo na Igreja Universal do Reino de Deus e Moreno no Candomblé, com abertura ecumênica significativa[18]. O compositor baiano retoma o tema em conversa com Nelson Mota[19], sinalizando uma posição de profundo respeito à diversidade religiosa e de convicções vivida em família. O mais impressionante é ver Caetano cantar a música “Ofertório”, que fez em homenagem à sua mãe, e sua capacidade de, mesmo agnóstico, conseguir compor uma canção de religiosidade esplendorosa:

 

Tudo que por ti vi florescer de mim

Senhor da vida

Toda essa alegria que espalhei e que senti

Trago hoje aqui

Todos estes frutos que aqui juntos vês

Senhor da vida

Eu em cada um deles e em mim

Todos teus fiéis, ponho a teus pés

 

Consentistes que minha pessoa

Fosse da esperança um teu sinal

Uma prova de que a vida é boa

E de que a beleza vence o mal

Tudo que se foi de mim, mas não perdi

Senhor da vida

Os que já chorei e os que ainda estão por vir, oferto a ti[20]

 

 O tema reaparece  em canção presente em seu último CD, Meu coco,  quando numa estrofe canta:

 

Católicos de axé e neopentecostais
Nação grande demais para que alguém engula[21].

 

            Os estudos sobre pentecostais e neo-pentecostais no Brasil não podem se furtar de lidar com toda a complexidade que envolve a questão, com os distintos filamentos que provocam um olhar mais aguçado e atento sobre um dos fenômenos mais significativos das últimas décadas no Brasil e América Latina. Tem razão Peter Berger em sublinhar que “não há razão alguma para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso que o mundo de hoje”. E exemplifica esse ressurgimento do religioso em duas grandiosas mobilizações que se irradiam em nosso tempo: a presença do islamismo, que institutos de pesquisa indicam que dobrará nas próximas décadas, alcançando a cifra de 2,76 bilhões de pessoas; e a pujança evangélica, também com irradiação ampla em termos mundiais[22].



[1]Regina Reyes Novaes. Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores & cidadania.Cadernos do ISER, 19. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

[2]Regina Reyes Novaes. Pentecostalismo, política, mídia e favela. In: Victor Vincent Valla (Org). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 69.

[3]Marcos Alvito. As cores de Acari. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2001, p. 166.

[4]Ibidem, p. 179.

[5]Ibidem, p. 193.

[6]Faustino Teixeira. O Deus da prosperidade: desconstruindo imagens. Concilium, n. 3, 2014 (Cristianism:o, consumismo e mercado). Ver também: Cláudio Mesquita. Santa Cruz, de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa. O mundo preenchido. Sexta Feira, n. 8, 2006, p. 178.

[7]Waldo Cesar & Richard Shaull.Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1999, p. 194.

[8]David Mesquiati de Oliveira. Pneumatologia como característica do ser cristão. Perspectiva Teológica, v. 52, n. 2, maio-agosto de 2020. Há no artigo uma boa bibliografia a respeito:

https://www.scielo.br/j/pteo/a/rwcGGmnjrCcQnfzZDXLv5Vv/?lang=pt(acesso em 21/11/2021)

[9]Maria das Dores Campos Machado. Carismáticos e pentecostais. Adesão religiosa na esfera familiar. Campinas: Editora Autores Associados, 1996, p. 108-112.

[11]Cecília Loreto Mariz & Maria das Dores Campos Machado. Encontros e desencontros entre católicos e evangélicos no Brasil. In: Pierre Sanchis (Org). Fiéis e Cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 99.

[12]Ronaldo de Almeida. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 121. 

[13]O artigo foi citado na nota 1.

[14]Juliano Spyer. Povo de Deus. Quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 12-13.

[15]Juliano Spyer. Povo de Deus, p. 114.

[16]Ibidem, p. 136.

[17]Frei Betto: Tem futuro a Igreja Católica? In: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/613748-tem-futuro-a-igreja-catolica(acesso em 21/11/2021). Também o artigo de Samuel Pessôa, na Folha de São Paulo, elogiando o mesmo livro: Povo de Deus. Folha de São Paulo, 20 de novembro de 2021: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2021/11/povo-de-deus.shtml(acesso em 21/11/2021).

[18]O show Ofertóriorodou o Brasil e o exterior e em maio de 2018 apareceu em CD e DVD.

 

[21]Canção Meu coco, presente no álbum de mesmo nome, produzido em 2021.

[22]Peter L. Berger. Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001, p. 21-24.

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