O risco das polarizações excludentes
Faustino Teixeira
IHU/Paz e Bem
Gostaria de pontuar uma questão que me irritou profundamente na página de um grupo que eu participo há cerca de 50 anos, e que acabei saindo para evitar maiores dissabores. Alguém postou ali um vídeo antigo de Luiz Felipe Pondé, fazendo críticas à esquerda na Universidade, num estilo que também a mim me irrita, em razão de generalizações que não condizem com a realidade. O que não significa que algumas coisas que ele disse ali podem servir para a nossa reflexão. Mas o que não gostei não foi isso, mas os posicionamentos que se seguiram à postagem, do tipo: que “nojo” esse Pondé; “Não tenho em meu horizonte nenhuma pessoa da direita”. E a mais grave, expressa por alguém que tem presença pública importante na sociedade, que disse: Na verdade, Pondé nunca foi uma pessoa erudita, mas não passa de alguém “raso”.
Digo a vocês que fiquei bastante preocupado com esse tipo de reflexão. Temos todo o direito de não gostar de alguém, mas temos que falar com um “mínimo” de informação sobre aquele que criticamos. Eu, pessoalmente, tenho um carinho pelo Pondé, numa amizade que se teceu ao longo de décadas, o que não significa que perca meu senso crítico com respeito a ele, quando leio artigos seus ou comentários que acho excessivos ou sem pertinência, segundo minha ocular. Artigos que são irradiados sobretudo na Folha de São Paulo, ou posições que ele levanta nas lives ou jornais televisivos.
Mas dizer peremptoriamente, de forma absoluta, que ele seja uma pessoa “rasa” ou “nojenta” é no mínimo carência de bom senso ou inteligência. Quem se deu ao trabalho de ler as obras filosóficas de Pondé, sobretudo as primeiras na sua produção acadêmica, não pode deixar de reconhecer a sua erudição e profundidade. Mesmo nos seus livros mais recentes, que gosto menos, há alguns que trazem reflexões maravilhosas, como nos livros: “Os dez mandamentos (+ 1)” ou “A filosofia e o mundo contemporâneo”. Clássicos e profundos são seus livros: “O homem insuficiente: comentários de antropologia pascalina”; “O pensamento do deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura”; “Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoiévscki”.
Gostaria de saber, realmente, em que medida esses críticos a-priorísticos de Pondé se deram o trabalho de ler uma ou outras dessas obras que citei. Garanto que não. Toda a visão que norteia o pensamento dessa gente é fundada nas posições do Pondé, seja na FSP, nas Lives ou na sua participação dos jornais da Cultura. Mas com ele não conviveram ou estiveram contato com o seu pensamento em outras situações, como no meu caso, que participei com ele, por 12 anos nos Seminários de Mística Comparada aqui em Juiz de Fora, que formaram uma geração. As conferências de Pondé, no campo da mística, literatura, filosofia e cinema sempre foram brilhantes. Não me esqueço de alguns comentários que ele fez sobre cinema que são simplesmente maravilhosos e de profundidade única. E as pessoas desconhecem isso.
Citaria ainda o seu trabalho de orientação acadêmica por largos anos nas Ciências da Religião da PUC-SP, com orientandos que hoje brilham no espaço acadêmico. Pude participar de teses que ele orientou, como acompanhar de perto o pensamento de seus orientandos, entre os quais cito nomes fantásticos como Maria Jose Caldeira do Amaral, Cecy Baptista, Rodrigo Petrônio e tantos outros que vêm atuando de forma maravilhosa no âmbito da teologia e das ciências da religião. Talvez Pondé tenha sido um dos mais brilhantes e generosos orientadores que atuaram na Academia, e que nunca menosprezaram ou humilharam seu orientandos como vemos com certa frequência no Brasil. E poucos sabemos que ele foi demitido da pós-graduação onde atuava (PUC-SP), por motivos que tem traços ideológicos envolvidos... Ao contrário do que se imagina, foi um incentivador singular dos alunos, com uma disposição maravilhosa para ajudar seus orientandos a crescer, não só intelectualmente mas em vida sadia e honesta. Isso nem todos sabem. Sobre o seu pensamento místico escrevi um artigo no livro: Mística e Literatura (2015): Luiz Felipe Pondé – Luzes do Sinai no subsolo. Ali pude expressar com sinceridade o meu carinho à sua reflexão maravilhosa sobre a mística. É talvez hoje no Brasil um dos maiores especialistas em mística medieval e mística judaica, em particular no Hassidismo (em particular A.Heschel). Também um profundo conhecedor de Pascal, Berdiaeff , Bernanos e Franz Rosenssweig. Tudo isso esquecemos...
É muito fácil despejar gratuitamente pedras nos outros, enquadrando-os apressadamente dentro de chavões preconceituosos, não se dando ao trabalho de buscar compreender o pensamento do autor na sua integralidade. O que não significa que devamos perder o nosso discernimento crítico com respeito a nossos interlocutores intelectuais. Lembro-me de quantas críticas sofreu Leandro Konder por dar um curso sobre o Marxismo Ocidental com base em José Guilherme Merquior. Como pensador honesto, ele sabia distinguir com clareza os valores que esse autor também possuía, sem perder os toques de sua reflexão crítica a respeito dele. Lembro-me também, com tristeza, como as amarras ideológicas impediram a muitos de nossos intelectuais brilhantes reconhecerem o devido valor a pensadores como Henrique Cláudio de Lima Vaz ou Marcelo Azevedo – e também Clodovis Boff - que em determinado período sofreram injustas críticas em razão das reflexões livres ou novidadeiras que estavam lançando no tempo.
Vendo uma conferência fabulosa de Antonio Riserio na ABL, pude me dar conta desse risco identitário ou das polarizações que ganham espaço em nossas redes de relações na internet. Risério fala da “pauta do binarismo maniqueísta”, que reifica posições de um grupo particular excluindo o desafio do nós. Diz Risério que se quisermos realmente levar a sério o Brasil, interpretando-o em profundidade teremos “que reaprender a dizer nós”. Há que distinguir, diz ele entre “polarizações conviviais” e “polarizações excludentes”. Esse é um desafio essencial.
Desculpem o desabafo, mas acho que manter aceso o discernimento e a abertura à diversidade é algo extremamente salutar. E estamos entrando aqui no Brasil num ano que será extremamente difícil, e poderemos cair, como em tempos recentes, a posicionamentos de hostilidades e ódios que são ferinos para uma reflexão mais sadia e honesta sobre a nossa realidade.
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