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segunda-feira, 14 de março de 2022

Passos da incomunicabilidade: Paris Texas de Win Wenders

 Passos da incomunicabilidade: Paris Texas de Win Wenders

 

Faustino Teixeira

Paz e Bem/IHU

 

 

Das iniciativas bonitas realizadas pelo Instituto Humanitas da Unisinos (IHU) e do Paz e Bem podemos falar dos “Filmes em Perspectiva”. São encontros periódicos que abordam alguns filmes que fizeram e fazem história. O projeto vai ganhando corpo, e conta com a colaboração de amigos queridos como Mauro Lopes, Angelo Atalla e Rodrigo Petrônio. Eu também estou sempre presente, com minhas reflexões pessoais e reações existenciais, já que não sou um perito em análise cinematográfica. Tem sido, porém, uma experiência singular no meu atual momento de vida, depois da aposentadoria na UFJF, em 2017.

 

Dos recentes filmes comentados gostaria de apontar Paris Texas, um filme maravilhoso de Win Wenders, de 1984, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes no mesmo ano, tendo no júri as presenças preciosas de Dick Bogarde (presidência), Isabelle Huppert e Enni Morricone. Entre os atores do filme podemos assinalar as presenças de Natassja Kinsk (1961-)[1], no papel de Jane; Harry Dean Stanton (1926-2017), no papel de Travis; Dean Stockweel (1936-2021), no papel de Walt; Aurore Clément (1945-), no papel de Anne; Hunter Carson (1975), no papel do menino Hunter. 

 

Vale também destacar a magnífica trilha sonora de Ry Cooder, em particular sua interpretação da belíssima Canción Mixteca, de José Lopez Alavés (1889-1974). Outro destaque do filme é a fotografia de Robby Müller (1940-2018), tradicional parceiro de Win Wenders, desde o seu primeiro longa metragem, em 1970: Verão na cidade. O diretor de fotografia vinha da graduação na Escola de Cinema de Munique.

 

Na minha visão, este é um dos grande filmes do século XX. O diretor é um dos singulares nomes do Novo Cinema Alemão, que expressa a viva renovação que ocorreu nesse campo na Alemanha a partir da década de 1970. Junto com Wenders, encontraremos outros importantes diretores, entre os quais: Rainer Fassbinder (1945-1982)[2], Volker Schlöndorf (n. 1939)[3]e Werner Herzog (n. 1942)[4].

 

Win Wenders é um cineasta das paisagens, das ricas tramas existenciais e dos grandes deslocamentos. É também um diretor que aprecia a obra de cineastas americanos, e isto podemos perceber em vários de seus filmes. Não se sai impune dos filmes de Wenders, que sabe, como poucos, emocionar seus espectadores com sua singular sensibilidade estética. 

 

Paris Texas tinha sido a inaugural e bem sucedida experiência  com a cor, e o que ocorrera antes nesse campo era para o diretor algo estranho. Ele disse uma ocasião: “A cor, antes, era para mim uma abstração, o preto e branco me pareciam mais realista, a cor me parecia qualquer coisa de exagerado”[5]. O seu receio era sempre o de se “perder nas cores”. O preto e branco expressava mais vivamente o seu pertencimento cinematográfico.

 

O cenário favoreceu bastante a nova experiência do cineasta, que escolheu, depois de muita pesquisa, a cidade de Paris, no norte do Texas[6], para a realização de boa parte das filmagens. Para o diretor, a “colisão” entre Paris e Texas corporificava passos essenciais do roteiro idealizado por ele e o dramaturgo americano Sam Shepard, que tinha nascido no Texas. Shepard vinha de uma experiência bem positiva com Antonioni, no filme Zabriskie Point, de 1970. Para um dos personagens do filme, Travis, Paris no Texas simbolizava a cisão e desequilíbrio vividos por ele. Ele dizia que tinha conhecido sua mulher, Jane, em Paris, e com a sua evasão, a cidade passou a ser identificada como “o lugar da separação”. Era também considerada um “lugar mítico” onde poderia, quem sabe, reunir novamente a família dispersa[7]

 

Wenders é um cineasta que adora paisagens. E assim começa o seu filme, com um longo plano sequência mostrando a paisagem aérea sobre o deserto texano, que já revela um dos traços da cinematografia do diretor, que a dificuldade de aproximação do mundo e dos outros. É uma sequência que se inicia com o deserto, para depois se fixar no personagem Travis, que caminhava perdido e maltrapilho no deserto, revelando sua posição “estranha” e sofrida no mundo. Como indica India Martins em seu trabalho, “a câmera passeia sobre cânions, uma paisagem árida, sol inclemente, céu azul, pedras – e, finalmente, localiza uma figura pequena caminhando com determinação no centro da paisagem”. Surpeendente a cena em que ele olha para a cima, para para beber o resto de água que tinha, e avista um condor predador no alto da pedra. A imagem sugeria o risco que ele corria na empreitada solitária e desesperada.

 

Vamos aos poucos sendo introduzidos num roteiro maravilhoso, onde vibram as palavras, os sons, os silêncios e as cores, num caleidoscópio de emoções que prendem o espectador do início ao fim. Todo esse clima serve de porta de entrada para uma narrativa familiar pontuada por muito sofrimento, mas também por momentos únicos de sutileza e delicadeza que delineiam a arte do diretor.

 

 

 

 

Como indica o cronista Ricky Sanchis[8],

 

“o filme começa abordando a vida de Travis Henderson, que, após ficar mais de quatro anos desaparecido, é achado vagando sem rumo pelo deserto. Seu irmão, Walt Henderson, fica incumbido de ir ao encontro de Travis para trazê-lo de volta a sua casa. Aos poucos, assim como o protagonista, vamos assimilando tudo o que acontece naquele ambiente. Travis vai recuperando sua saúde mental e física e tem a difícil missão de reatar o laço com seu filho pequeno, Hunter, que tinha abandonado após desaparecer. Hunter não fora somente abandonado pelo pai, sua mãe também decidira por deixá-lo aos cuidados de Walt e sua esposa, a fim de não comprometer o desenvolvimento da criança. A trama ganhará sua essência quando Travis decide reencontrar Jane, sua esposa, junto com seu filho.”

 

Num ritmo que é lento, embalado por uma trilha especial, vamos nos introduzindo nas delicadas nuances que fazem emergir do meio do nada o personagem Travis. Estamos no coração da incomunicabilidade, diante de um personagem que perde por um tempo sua sociabilidade, mergulhando num silêncio que demorou a ser rompido. Vagando perdido por quatro anos, ele vinha de uma “tragédia”, marcada pelo rompimento abrupto com sua mulher (Jane), num conflito comunicacional que o fez seguir para o deserto, abandonando também o pequeno filho Hunter, de quatro anos. Eles moravam como nômades, num trailer, mudando de cidade em cidade por motivos do trabalho de Travis.

 

É toda uma “carga misteriosa” que habita Travis e contagia também o espectador, que vai se adentrando no seu estranho modo de agir e no tom silencioso de seu momento particular. Nos últimos tempos a relação entre Travis e Jane vinha sendo carcomida por um ciúme atormentador, que acabou destruindo a relação. Até que Travis escapa adolorado para o deserto.

 

Depois de muito caminhar, ele encontra uma parada na estrada, quando então ali desmaia, sedento e faminto. No posto médico em que vem atendido conseguem achar o endereço de seu irmão, Walt, que, comunicado por telefone, vai ao seu encalço para resgatá-lo. Vemos assim “emanar dos dois personagens toda essa preocupação que essa volta de Travis para o lugar que abandonara outrora iria implicar para a vida de todos”[9].

 

Seu retorno à casa do irmão vem favorecido com a receptividade atenciosa oferecida pela família, e em particular por Anne, irmão de Walt. Os dois passaram a cuidar do menino Hunter, filho de Travis e Jane, depois que a mãe decidira deixar o garoto com a família por incapacidade de dar a ele o afeto e a proteção necessários. Ela também “desaparece”, mas manterá contato secreto com Anne, pedindo no início fotos e notícias do filho. Com o tempo a comunicação foi se rarefazendo, e numa das últimas conversas entre as duas, Jane tinha passado o nome do banco na cidade em que se encontrava, Houston, a mais populosa do estado do Texas. Dali mandava mensalmente parcos recursos para ajudar na manutenção do filho e auxiliar na garantia de seu futuro.

 

Momentos delicados ocorrem quando Anne começa a sofrer com a possibilidade de perder o menino, que se adaptara tão bem à nova família. Algumas conversas do casal são permeadas por aflição e dor, mas Walt explica para a mulher a importância do resgate afetivo entre o pai sanguíneo e o filho. No começo, a relação não foi assim tão fácil, tendo que ocorrer toda uma dinâmica complexa de aproximação entre os dois. A sorte é que o garoto tinha sido abandonado muito novo e uma possível “raiva” do pai tinha sido atenuada pela falta de lembranças. Curioso perceber que a “inabilidade” dos dois em retomar a comunicação constituiu o fio propiciador para o novo liame. Travis vai, aos poucos com a ajuda do irmão e da cunhada, vivendo uma mutação que o fará recuperar a sociabilidade e a aproximação do filho. Há cenas bonitas a esse respeito, como a ida do pai à escola para buscar o filho, dos desajeitos iniciais à naturalização de uma relação de amor.

 

O contato acolhedor da família facilita que Travis 

 

“recupere, em seu próprio ritmo, algo que escolhera deixar para trás quatro anos antes. E essa recuperação de sua saúde mental é evidenciada em uma das cenas mais simbólicas do filme, quando Travis atravessa uma ponte e encontra a figura de um homem completamente atormentado gritando coisas sem nexo. Travis se dá conta neste momento do que fora meses antes, vendo no homem uma espécie de espelho e se compadecendo disto. Medo e aversão surgem no protagonista. Aversão pelo que havia sido durante um fragmento de sua vida e medo de que isto não tenha se acabado por completo. E esse medo será fundamental para os desnivelamentos finais da obra.[10]

 

Uma das mais belas cenas do filme ocorre quando o pai e o filho assistem episódios felizes da infância do menino com os pais na super 8. Ao fundo a linda canción Mysteca, na arte interpretativa de Ry Cooder. Vamos adentrando aos caminhos percorridos por Travis para recuperar a estima do filho. Vai ser através desse filme em super 8, sobre férias em família, que se dá a primeira aproximação entre pai e filho; o filho abandonado quando tinha 4 anos. Agora o menino estava com 7 anos. A filmagem exerce a função de chispa para o despertar da memória de Travis, reavivando as lembranças felizes de um bonito período da vida familiar, tecido por acolhida, carinho, ternura e amor. Tudo vai servir de base para a aproximação de pai e filho.

 

Após assistir a passagem festiva no super 8, já à noite, o garoto se despede de Travis chamando-o de pai, um momento rico de emoção. Na sequência, em conversa com a mãe no quarto, o garoto indaga:

 

Você acha que ele (Travis) ainda a ama (Jane)?

E a mãe: Como eu vou saber, Hunter?

Ele: Acho que ama.

Ela: Como você sabe?

Ele: O jeito que ele olha para ela.

Ela: Percebeu quando ele a viu no filme?

Ele: Sim. Mas não era ela...

Ela: Como assim?

Ele: Era só ela num filme. Há muito tempo... Numa galáxia muito... muito distante...

 

Em outro momento do filme, o menino indaga ao pai (Travis):

 

Menino: Você se lembra dele (de seu pai)? Quando ele andava e falava

Travis: Sim

Menino: Então, conseguiu sentir que ele foi embora?

Travis: Sim, de vez em quando. Sei que ele morreu.

Menino: Nunca senti que você tinha morrido. Podia sempre sentir você andando e falando em algum lugar. Também sinto a mamãe.

Travis: sente?

Menino: Voce não?

Travis: Com a cabeça faz o gesto de sim...

 

Como lembra Sanchez em sua análise, 

 

“A confusão intrínseca aos personagens, por diferentes motivos, acaba incitando os mesmos a encontrarem o elo perdido que talvez propicie o conforto necessário. Esse elo é a figura de Jane. Somente ela poderia providenciar essa recuperação do buraco na vida de Travis e Hunter. E a jornada dos dois pela busca da mulher é linda. Veremos surgir nessa jornada os sentimentos de aceitação e amor nos protagonistas.

 

Pai e filho decidem ir ao encalço de Jane num velho carro, sem sequer avisar a Walt e Anne, que ficaram desesperados com o sumiço dos dois. Ao longo da viagem, numa parada, o menino avisa a Anne que estavam viajando para Houstou, em busca de Jane. 

 

A longa viagem empreendida por pai e filho não está apenas definida pelos quilómetros percorridos, estendendo-se também a uma travessia emocional de tréguas com o passado, consolidação do presente e resignação com o futuro pela parte de Travis, que, essencialmente fruto do vínculo que criou com o filho, ganha pela primeira vez coragem e determinação para se encarar a si próprio.”[11]

 

O encontro de Travis e Jane é uma das cenas mais impactantes já feitas no cinema. Tudo que envolve a construção dessas passagens, separadas em dois momentos em um único ambiente, acaba arrepiando quem as assiste. A intensidade do filme, que até então era mais tranquila e suave, acaba se elevando consideravelmente. As conversas entre Jane e Travis, separadas por um vidro num peep show, onde apenas o homem via a mulher por trás do obstáculo. Tudo vem permeado por um tom nostálgico, acentuado pela trilha de Ry Cooder. A início, Jane não se dá conta de quem está falando com ela, até que, aos poucos ela vai perceber que a história contada é a dela com Travis. Então tudo muda.

 

Foram dois encontros, sendo o primeiro mais rápido. No segundo é que se dá a revelação de Travis. De forma dramática, ele revela a ela a impossibilidade de um encontro pessoal entre os dois, em razão da carga incompatível e autodestrutiva do passado relacional. Isto me fez lembrar uma passagem do romance de Nizami, Laila & Majnun (século XII), quando a amante diz ao amado que “a proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”[12]

 

É todo um processo catártico que ocorre na conversa entre os dois, tanto no momento em que ele fala para ela, como naquele em que ela fala para ele. Em passagem nevrálgica, quando ela descobre que a história revelada é a dos dois, ela se achega ao vidro e com as mãos trêmulas alisando o vidro diz o nome Travis. O que se assiste é a narrativa ou testemunho de um “amor tão profundo e destrutivo, capaz de vandalizar a sanidade daquele que o detém, emoldurado por uma fotografia inconfundível”[13].

 

Como indica Inês Bom, os dois

 

“voltam pela última vez a percorrer o passado intenso, febril e sombrio que viveram juntos. É o testemunho cândido de um amor tão profundo e destrutivo, capaz de vandalizar a sanidade daquele que o detém, emoldurado por uma fotografia inconfundível e por duas das melhores prestações do filme, que tornam esta cena simbólica num marco difícil de esquecer.[14]

As cenas que ocorrem são paralisantes, de emoção intensa. Ao final, vemos Travis, humilde e virtuoso, conseguir a façanha de unir mãe e filho num hotel, estando ele embaixo, assistindo ou imaginando o encontro derradeiro dos dois queridos. É linda a cena em que Jane abraça, sem palavras, o filho querido. É o momento crucial onde ele vence a culpa que o destroçou e pode então seguir caminho na sua velha  caminhonete Ford Ranchero 59, retornando à sua condição de peregrino. 

Como mostrou Ricky Sanchez, ao final de sua resenha, 

“Win Wenders entrega a obra mais relevante de seu cinema, mostrando aqui todos os elementos que acabam por compor seus filmes. Toda a nostalgia presente em cada fragmento de cena traz um misto de tristeza e felicidade no próprio espectador, nos fazendo olhar para nossos próprios passos, atrás da construção de nossas identidades no mundo.[15]

 



[1]Filha do ator Klaus Kinsk (de A cólera dos deuses eFitzcarraldo). Teve belas atuaições nos filmes Tess, de Roman Polanski e Tão longe, tão perto, de Win Wenders).

[2]Dentre seus filmes: O casamento de Maria Braun (1979).

[3]Um de seus clássicos filmes: O tambor (1979 – Oscar de melhor filme estrangeiro em 1980).

[4]Dentre seus filmes: Aguirre a cólera dos deuses (1972), O enigma de Kaspar Hauser (1974), Stroszek (1977) e Fitzcarraldo (1982).

[5]India Mara Martins. A paisagem no cinema de Wim Wenders. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 94.

[6]Trata-se de uma pequena cidade no condado de Lamar, que no início de 2017 contava com cerca 25 mil habitantes.

[7]India Mara Martins. A paisagem no cinema de Wim Wenders, p. 94.

[8]Ricky Sanchez. Paris, Texas (1984) de Win Wenders – 08/03/2017 (Cinefilia incandescente):

https://www.dn.pt/artes/paris-texas-o-sonho-americano-e-um-lugar-distante-5661000.html(acesso em 13/03/2022).

[9]Ibidem.

[10]Ibidem.

[11]Inês Bom. Paris Texas: o reencontro com o que há de melhor em nós. Comunidade, cultura e arte, 19/04/2017:

https://comunidadeculturaearte.com/paris-texas-o-reencontro-com-o-que-ha-de-melhor-em-nos/(acesso em 13/03/2022)

[12]Nizami. Layla & Majnum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 162.

[13]Inês Bom. Paris Texas: o reencontro com o que há de melhor em nós. 

[14]Ibidem.

[15]Ricky Sanchez. Paris, Texas.

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