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segunda-feira, 21 de março de 2022

Novos desafios em tempos de mudança

 Novos desafios em tempos de mudança

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

Esse texto foi feito como provocação para um grupo de reflexão, Emaús, que reúne pensadores cristãos e que se encontra duas vezes por ano em Petrópolis. Em razão da pandemia, os últimos encontros foram virtuais. Além de reflexões sobre a caminhada pessoal de cada um, o grupo abre espaços importantes para o debate da conjuntura mais ampla: política e eclesial. Não há, necessariamente, um tema a ser discutido a cada ano, como foi o caso do último encontro, ocorrido em 19 de março de 2022. Partilho então a reflexão pessoal que fiz.

 

Nesses últimos 5 anos mudanças fundamentais ocorreram na minha vida e pontuaram um ritmo novo de reflexões. Pude me dar conta como “eventos fortuitos” e inesperados podem mudar o rumo da nossa vida, entre eles a experiência vital ou uma empreitada inédita motivada pelo cinema, pela música ou pela literatura.

 

No meu caso, o passo essencial foi a busca de um diálogo com a literatura e o cinema, e venho atuando minha reflexão em dois espaços específicos: no Paz e Bem, com Mauro Lopes, e no Instituto Humanitas da Unisinos, com o apoio do amigo Inácio Neutzling. 

 

A marca da literatura se fez presente com dois autores essenciais: Guimarães Rosa, com Grande Sertão: Veredas e Clarice Lispector. Venho dando cursos no IHU sobre esses dois temas.

 

Com o GSV pude me dar conta, de forma viva sobre a questão da ambiguidade que habita a nossa vida: somos todos portadores de luz e sombras. Além da presença da graça, somos também tocados por sombras, que expressam um lado torvo na nossa personalidade. Com GSV pude constatar que além da “vozinha” de graça que habita o nosso íntimo, há igualmente a presença de “avessos”, que expressam a dinâmica do mal. O ódio, como diz Rosa, não tem lógica, e emerge, assim, sem que nos demos conta. Com GSV pude descobrir o dado fundamental da importância de escolher o cavalo que a gente monta: ou o que se encaminha para a alegria ou para a tristeza. 

 

Esse foi um primeiro passo de descoberta, que remexeu com minha visão teológica “purificada” pela visão tradicional do tratado da graça: de que somos todos “criados em Cristo”.

 

A segunda mudança, mais recente, envolve o que se convencionou chamar de virada animal e virada vegetal. A encíclica de Francisco, Laudato si, foi muito importante na percepção essencial de nossa inter-ligação com o todo. Somos todos parte do vivente, envolvidos no emaranhado da vida. Assistir às conferências da 19ª FLIP, em formato virtual, em novembro de 2021 e início de dezembro de 2022, foi outro passo essencial de mudanças em minha percepção do mundo. Ali estavam autores importantes, alguns que vim a conhecer nessa ocasião, como o botânico Stefano Mancuso e o filósofo Emanuelle Coccia, ambos italianos. Pude também me aprofundar no pensamento de um crítico literário fantástico que é Evando Nascimento; além de outros nomes que ali estiveram presentes, como Eliane Brum, Ailton Krenak e Leonardo Froes.

 

Na reflexão de Evando Nascimento, expressa no seu lindo livro “Pensamento vegetal” (Civilização Brasileira – 2021), há uma crítica substantiva ao pensamento antropocêntrico e pistas importantes que nos provocam a pensar para além da tradição humanista. Ali estava o convite de “redimensionar o lugar do humano em sua relação ao mesmo tempo amorosa e conflitual com as alteridades que o cercam”: a alteridade humana, animal, vegetal e diria também mineral. Entender que a vida é um “fluxo contínuo planetário”. Ou como diz Bernie Krause, no seu maravilhoso livro: A grande orquestra da natureza (Zahar, 2013), “o planeta todo transborda com o vigor de uma ressonância tão completa e expansiva quanto delicada e equilibrada”; ou ainda: “todos os organismos são envolvidos por ondas de energia sonora”.

 

Para a virada animal, foram essenciais as contribuições teóricas de Donna Haraway e Vinciane Despret, que me ajudaram a compreender que somos “espécies companheiras” e que o ser humano não é o umbigo do mundo, mas parte do vivente.

 

Para a virada vegetal, cito aqui a importância de uma antropólogo fantástica, Anna Tsing que me ajudou a perceber a presença sob os nossos pés de um “cosmopolitismo vivo”, que enredam uma “arquitetura de teias e filamentos” (teias micorrízicas) que conectam raízes, fungos, que interagem com as árvores e possibilitam um emaranhamentos exemplar e fantástico. As árvores conectam entre si através de tais filamentos.

 

Com Stefano Mancuso pude reforçar a ideia de que as plantas são essenciais para acionar e manter aceso o motor da vida. Como diz esse autor, “nós, animais, representamos apenas 03% da biomassa, enquanto as plantas representam 85%” (A planta do mundo – Ubu, 2021). As plantas são assim “protagonistas” na sinfonia da vida. As plantas, diz o autor, “constituem a nervura, o fundamento, o mapa com base nos quais se constrói o mundo em que vivemos”. Ignorar isso, achando que nos encontramos acima da natureza “é um dos perigos mais graves para a sobrevivência da nossa espécie” (p. 11)

 

Essa nova perspectiva veio para mim radicalizada com a leitura do livro de Emanuelle Coccia, Metamorfoses  (Dantes Editora, 2020). Ele sublinha em seu livro que “a vida de cada ser vivo não começa com seu próprio nascimento: ela é muito mais antiga”. Nossa humanidade, igualmente, é um “produto originário e autônomo”, mas constitui um “prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior” (p. 14). Como ele sublinha, “cada espécie é a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela”. As espécies não são “substâncias”, mas “configurações instáveis e necessariamente efêmeras de uma vida que gosta de transitar e circular de uma forma em outra”.

 

A vida, na verdade, “alimenta-se da vida”. Os vários alimentos “não são apenas formas de vida confinadas nos limites de seus corpos: são corpos capazes de transformar sua vida assim que entram no corpo de outrem” (p. 109). Para o autor, a morte é apenas “o limiar de uma metamorfose”. Cada ser vivo “é um casulo pelo qual a vida constrói alguma coisa diferente”. “O destino de todos os seres vivos é torna-se o corpo de uma outra espécie”. Na verdade, “nós nunca deixamos de trocar de casa, de ocupar a vida e o corpo de outros (...). Ninguém está “totalmente em casa”.

 

Tudo isso para entender que aquilo que Francisco disse no início da Laudato si tem uma dimensão impressionante: de que “nós mesmos somos terra” e que o “nosso corpo é constituído pelos elementos dos planeta”. Há que tirar consequências concretas dessa fala de Francisco.

 

Para concluir, dando uma aula sobre o livro de Clarice Lispector, “Perto do coração selvagem” (seu romance inaugural, de 1943, quando ela tinha apenas 23 anos), algumas reflexões surgiram, ligadas a essa ideia de Metamorfose. A personagem Joana, ao olhar para o quinta do vizinho, percebeu “o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer”. Via também a minhoca que se espreguiçava “antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer”. Clarice parou ali: não tinha ainda dado o salto fundamental: de que as pessoas que iam comer a galinha, por sua vez, seriam também comidas pelos vermes, iniciando um ciclo novo de vida e metamorfose. Tudo isso tem consequências bem vivas para a nossa noção de nascimento, morte e ressurreição. 

 

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