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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Saber lidar com o desamparo do tempo

 Saber lidar com o desamparo do tempo

 

Faustino Teixeira

PPCIR/Paz e Bem/IHU

 

Tenho percebido a grande dificuldade das pessoas em enfrentar com coragem a grave questão do novo regime climático e com o horizonte sombrio que se anuncia para as novas gerações. Verifico que muitos tendem a relativizar a questão buscando viver o presente. São aqueles que estão mais ancorados no momento presente e que preferem não antecipar problemas que irão ocorrer nas próximas décadas. É uma forma psíquica de defesa diante de uma situação que pode acirrar ainda mais as fragilidades psíquicas e acabar provocando a obstrução de projetos de futuro.

 

Constato ainda que aqueles que se debruçam atentamente sobre a questão acabam acalentando uma melancolia que é problemática. Isso me faz lembrar as advertências tecidas em tempos atrás por Christopher Lasch (1932-1994) no seu clássico livro, A cultura do narcisismo  (1979). Diante dos riscos, as pessoas tendem a se fechar no “mínimo eu” para resguardar aquele circuito pessoal que mantém acesas as convicções essenciais para manter o mundo de pé.

 

Independente disso, sabemos que estamos diante de um horizonte ameaçador. Os sinais estão por todo canto, anunciando um futuro bem difícil para os que estão por vir. Em sua encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum, papa Francisco faz uma virulenta crítica ao “crescimento infinito ou ilimitado” que marca nosso tempo do Antropoceno. Com ele, a afirmação de um grave “paradigma tecnocrático” que não revela nada de agradável para os tempos vindouros. Como diz Francisco, “as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia”[1].

 

A mesma impressão fica gravada naqueles que leram o livro de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, Há mundo por vir?[2]Aquela sensação de desamparo diante de um tempo ameaçador. Como dizem os autores, já rompemos a zona de segurança em três processos: a taxa da perda da diversidade, a interferência humana no ciclo de nitrogênio (a taxa com o N2 é removido da atmosfera e convertido em nitrogênio reativo para uso humano, principalmente como fertilizante) e as mudanças climáticas”. E agora avançamos para novos limites, relacionados com o uso da água doce, de mudança no uso da terra e da acidificação dos oceanos[3].

 

Diante de um futuro incerto recolhemos as previsões lúcidas e não infundadas de cosmologias antigas, sobretudo dos povos originários, a respeito de inquietudes impressionantes. No prefácio do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu[4], Eduardo Viveiros de Castro adverte-nos sobre a importância de levar realmente a sério o que expressam os indígenas na sua cosmovisão[5]. O xamã Davi Kopenawa fala do clima de amizade que sempre acompanhou a relação dos índios com a floresta e do risco que hoje se apresenta, com a consciência de que “a floresta não é infinita”. Ele sublinha: “Agora sei que se os brancos  continuarem avançando, vão fazê-la desaparecer bem depressa. Já estão dizendo que ela é grande demais para nós”[6].

 

Na mesma direção, o pessimismo de Ailton Krenak, outra grande liderança indígena brasileira. Seu pensamento vem expresso em dois livros recentemente publicados:Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil[7]. O que se anuncia é preocupante: um “nós sem mundo” ou ainda uma tremenda dificuldade de “aterrar” no mundo que está aí. Adverte Krenak: “Quantas Terras essa gente precisa consumir até entender que está no caminho errado”[8]. Os humanos encontram-se diante de uma séria questão: decidir a favor ou contra a autoextinção da espécie[9]. O seu olhar sobre o tempo atual é bem realista. Reconhece que nos últimos tempos o que se observa é uma crise contínua. Estamos diante de um despencar ininterrupto, de uma carência absurda de reverência para com a casa comum[10].

 

Em suas recentes reflexões, Bruno Latour fala dos “climato-quietistas”, ou seja, daqueles que tendem a negar a situação difícil em que nos encontramos, de um negacionismo que torna as pessoas impassíveis diante do que vem, como pudemos igualmente observar no filme de Adam McKay, Don´t look up(Não olhe para cima), que é na verdade um mantra do negacionismo.

 

Num ciclo de seis conferências dadas por Bruno Latour em 2013, a convite do comitê das Gifford Lectures, ele desenvolve com pertinência sua reflexão sobre o Novo regime climático e todas as suas consequências. As conferências foram depois remanejas, amplificadas e reescritas, tendo como resultado a preciosa obra Diante de Gaia[11].

 

Nessa obra, Latour nos coloca diante da inevitável questão: como sobreviver no tempo atual? Como aterrar em nosso tempo sombrio, aprendendo “a sobreviver sem se deixar levar pela denegação, pela hybris, pela depressão, pela esperança de uma solução razoável ou pela fuga para o deserto”[12]. Para o autor, não há como fugir da realidade, “não existe cura para o pertencimento ao mundo. Mas, pelo cuidado, é possível se curar da crença de que não se pertence ao mundo”[13]. Não existe possibilidade de “sair disso”, como diz Latour. Nesse caso, o próprio significado da palavra “esperança” vem redimensionado com o anteparo de um horizonte nublado. Há que saber “lidar com isso”, encontrando novos percursos de cuidados, “mas sem pretender uma cura muito rápida”. Um caminho possível é buscar com todos os recursos disponíveis “repensar a ideia de progresso” e retrogredir. O autor fala em “apostar no menor dos males” ou ainda, “viver bem com seus males”. Em outra obra, Latour fala em criar “gestos barreira” capazes de interromper o ritmo alucinante da globalização[14]. Outros falam em afirmar uma “ecologia política do ralentamento (ralentissement)[15].

 

Recordo-me da entrevista concedida por Donna Haraway no Colóquio Internacional – Os mil nomes de Gaia (2014) – e a reação de Eduardo Viveiros de Castro diante do posicionamento da antropóloga em favor de uma saída inusitada: “habitar a barriga do monstro”[16]. Trata-se de algo semelhante ao que falou Latour, ou seja, saber lidar com isso. Não há como escapar da realidade em que estamos inseridos, no mundo em que vivemos. Em obra de 2016, Donna Haraway indica que devemos aprender a “seguir com o problema”, ou seja, “de viver e morrer com responsabilidade (respons-habilidade) numa terra danada”[17].

 

Em livro surpreendente, o filósofo Luiz Felipe Pondé fala dos dez mandamentos e acrescenta um último, justamente em torno da esperança. Ele confirma a possibilidade de uma esperança no mundo, desde que o ser humano tenha a capacidade e a coragem de atravessar com lucidez o nihilismo. O novo mandamento diz que é possível ter esperança no mundo, apesar de todas as mazelas nele presentes. Reconhece, porém, que a razão mais forte da esperança está na acolhida do Eterno, o único “capaz de aliviar as agonias da criatura”. Sua pista está no desafio de viver o cotidiano acompanhado por Deus e não apenas pelos desígnios da natureza[18]. Para ele, “só existem duas formas de ter uma verdadeira esperança no mundo: ou pela graça de Deus, que faz alguns de nós termos fé no mundo, ou com a ajuda da coragem, irmã gêmea da esperança”[19].



[1]Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 161.

[2]Déborah Danowski & Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental, 2014.

[3]Ibidem, p. 20-21.

[4]Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[5]Ibidem, p. 15 e 35.

[6]Ibidem, p. 330.

[7]Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,  2019; Id. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[8]Ailton Krenak. A vida não é útil, p. 26.

[9]Ibidem, p. 58.

[10]Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo, p. 30-31.

[11]Bruno Latour. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: UBU, 2020.

[12]Ibidem, p. 31.

[13]Ibidem, p 31. Ver também: Rubem Akira Kuana. Tristes psicotrópicos: colapso climático, colapso mental. Cadernos PET Filosofia, v. 19, n. 1, 2021:

https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgzGmtrHrTszhsBtKrfPvbKbvwrxC?projector=1&messagePartId=0.1(acesso em 08/02/2022).

[14]Bruno Latour. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 131.

[15]Déborah Danowski & Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? p. 148.

[17]Donna Haraway. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Consonni, 2019, p. 20.

[18]É o tema do filme de Terrence Malick: A árvore da vida (2011).

[19]Luiz Felipe Pondé. Os dez mandamentos (+ um).São Paulo: Três estrelas, 2015, p. 120.

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