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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O humano na teia vital

 O humano na teia vital

 

Faustino Teixeira

 

 

 

Toda essa reflexão atual que vem motivando a minha reflexão teológica é realmente impressionante. É todo um quadro construído ao longo de milênios que se vê problematizado com as questões relacionadas ao Novo Regime Climático, para usar uma expressão de Bruno Latour[1].

 

No seu importante livro, "Júblio, ou os tormentos do discurso religioso" (2013)[2], Bruno Latour, que é católico, já havia chamado a atenção para o desencontro do discurso teológico e magisterial com respeito aos desafios do tempo atual.

 

No cerne da questão a dicotomia celebrada na teologia entre imanência e transcendência. Na visão de Latour, a fixação teológica no reino da transcendência, faz com que o discurso teológico se perca cada vez mais em "grandes distâncias"[3].

 

Sua proposta, radical, é de retomar o apelo à imanência, aquele que mais se aproxima da narrativa viva do evangelho. Como ele diz, "o termo ´imanência` deve ser levado mais a sério, como lugar da experiência do sagrado e da dinâmica da salvação. 

 

Há todo um trabalho necessário de desconstrução: "desextirpar, metáfora após metáfora, narrativa após narrativa, ritual após ritual, salmo após salmo, da oposição entre o baixo e o alto, a terra e o céu, a imanência e a transcendência, para recolher novas fórmulas somente a diferença do tempo que vem e do tempo que passa, do tempo que consuma e do tempo que acumula ou dissipa"[4].

 

O desafio, diz Latour, é o de "não mais falar de religião com os olhos voltados para o céu". Para Latour, o que vemos realmente é uma "Fé" que perdeu o mundo[5]. Mas é possível recuperar o caminho, mas num trabalho vivo de desconstrução do discurso habitual.

 

Agora em artigo fabuloso publicado num periódico italiano, "Vita e Pensiero" (13/01/2022)[6], Bruno Latour retoma a questão da nova oportunidade oferecida à teologia pelas mudanças climáticas. É um tema que provoca a atenção para o aquém, para o calor do nosso tempo, para a dinâmica do samsara. 

 

Para Latour, "toda mudança de cosmologia oferece à pregação cristã uma oportunidade de retomar de um modo novo tanto a forma como o conteúdo da sua mensagem". O momento de crise atual é um convite firma para a desaceleração no discurso habitual da teologia em função de uma "nova descontinuidade" a ser trabalhada no seu relato.

 

Latour toca num ponto essencial, onde se percebe a carência do discurso teológico, num tempo que exige uma palavra diversa. Na verdade, como ele diz, "a mensagem do Evangelho se torna literalmente inaudível". 

 

A crise na qual vivemos abre uma nova oportunidade para a teologia, talvez a oportunidade derradeira: de voltar o seu olhar de forma viva para o tempo. Para Latour,

 

"é em grande parte em reação à influência das ciências modernas que foi inventada a oposição entre transcendência e imanência; a ênfase colocada no destino das almas e não mais no mundo; obsessão por questões de moralidade como contrapartida a um desinteresse progressivo pelo destino do cosmos; o medo da ecologia; o horror do paganismo; o recuo da Igreja em relação à busca da identidade e, sobretudo, à estranha ideia de que era necessário opor ao Grande Relato da Natureza conhecido pela Ciência um Grande Relato Alternativo que dava outra versão da história do mundo, mas ´espiritual` e menos ´material`".

 

Numa reflexão que me faz lembrar alguns texto de Teilhard de Chardin, Latour sinaliza a necessidade de "aprender a rematerializar o pertencimento à terra de mil maneiras". E aproveita para dar uma dica preciosa para a escatologia: 

 

"Todo relato que minimiza a condição espacial da escatologia para preferir uma projeção no tempo, trai, de fato, a própria condição da salvação. De que adianta salvar a sua alma se você acaba perdendo o mundo terreno? O grito repetido todos os dias, de maneira cada vez mais estridente, pelos cientistas da terra - ´Devemos agira agora ou nunca` - não pode deixar de ressoar de modo infinitamente trágico para toda a alma cristã".

 

Essa indiferença de tantos católicos com respeito ao "desaparecimento do mundo", deve-se ao fato de que para eles a questão não tem relação com a problemática da salvação. Grande ingenuidade... Com lembra Latour, "a salvação dirige-se ao abaixamento, à kenosis". Uma ideia que nos faz lembrar Gianni Vattimo em seu livro Acreditar em acreditar[7]. Ele fala igualmente em reinterpretar continuamente a mensagem cristã, resgatando seu núcleo kenótico, para além do ensinamento oficial da Igreja.[8]Vattimo propõe, como Latour, a reencontrar o cristianismo, repensando os conteúdos da revelação numa perspectiva mais conforme ao século, ao tempo.[9]

 

E esse descompasso com a Terra inunda todo um imaginário cristão: suas pregações, seus hinos, suas orações. É todo um "aparato de metáforas" que são utilizados para sublinhar um "ascencionismo", em vez de tocar no nervo essencial do cuidado para com as coisas de baixo, o cuidado com a Terra.

 

Mesmo Francisco, na Laudato si (LS)[10], ainda é refém de uma visão dualista, ao opor transcendência e imanência. Cuidadoso na distinção entre antropocentrismo cristão - considerado justo - e um antropocentrismo "desordenado", presente nos caminhos do iluminismo, Francisco ainda fala de um imanentismo asfixiante. Como mostra Latour, "o que paralisa esse redirecionamento para baixo é evidentemente o estranho tema da imanência supostamente asfixiante (...) em relação à necessária ´elevação` para a transcendência".

 

Levar a sério a questão da interligação de fala Francisco na mesma Laudato si, em diversas ocasiões (LS 16, 42, 91, 92, 117), comporta um redirecionamento radical na perspectiva cristã, e em particular levar muito a sério os desafios de uma viva encarnação. Como indica Latour, "a encarnação nos mergulha em uma história de interconexão com os seres vivos, cuja salvação já depende em grande parte dos atos de caridade que nós seremos capazes de não adiar mais, com a justificativa de ´outro mundo`. ´É agora ou nunca mais. É aqui ou em nenhum outro lugar".

 

Há que romper com um visão vigente que separa os seres humanos dos outros seres vivos e "inanimados", ou seja, uma visão que reitera uma "fuga" de sua influência. E aqui entra em cena um livro essencial, escrito por um filósofo italiano, Emanuelle Coccia, com o título significativo: "Metamorfoses" (2019 - tradução brasileira de 2020)[11]. Para o autor, a nossa humanidade não é um "produto originário e autônomo", mas insere-se numa malha larga, de muitas metamorfoses[12]. O que sempre existe é "continuidade" e não rupturas: "Cada espécie é a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela". As espécies não podem ser fixadas como substâncias, mas são, na verdade, "configurações instáveis e necessariamente efêmeras de uma vida que gosta de transitar e circular de uma forma em outra"[13].

 

Daí a necessária crítica a qualquer visão teleológica ou exclusivista, que tende a considerar a presença de outras formas vivas, que antecederam ao humano como "preparação para essa silhueta à qual éramos destinados"[14]

 

O desafio colocado por Coccia relaciona-se com esse entendimento da vida como metamorfose. A vida vem entendida como "dom de uma comunidade de antepassados" e a morte como "reciclagem, um fluxo que continua em uma comunidade ecológica e ancestral de origens"[15]. Assim como o nascer envolve um esquecimento do que ocorreu antes, a morte traduz “o limiar de uma metamorfose”[16].

 

É de fato um mito pensarmos no ser humano como radicalmente diferente de tudo, e superior a tudo que o rodeia. É uma ilusão a idéia exclusivista de uma propriedade humana da "matéria mental", que faz do humano algo superior às outras criaturas. Os humanos não estão à parte, mas fazem parte desse todo.

 

Segundo Coccia, "reconhecer a metamorfose da Terra significa libertar os seres vivos desse estranho cativeiro: eles não se limitam a habitar Gaia, eles a carregam no ventre - eles a levam com eles, aonde quer que vão. Eles não habitam este ou aquele território, eles são um solo que está incessantemente mudando sua geografia e textura"[17].



[1]Bruno Latour. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 19.

[2]Bruno Latour. Júbilo, ou os tormentos do discurso religioso. São Paulo: Unesp, 2020.

[3]Ibidem, p. 137.

[4]Ibidem, p. 137-138.

[5]Ibidem, p. 15.

[6]O artigo foi republicado no IHU-Notícias de 22 de janeiro de 2022 com o título: Mudanças climáticas: uma oportunidade para a teologia se libertar do passado:

https://www.ihu.unisinos.br/616010-mudancas-climaticas-uma-oportunidade-para-a-teologia-se-libertar-do-passado-artigo-de-bruno-latour(acesso em 25/01/2022). As citações que seguem são tiradas desse artigo do IHU-Notícias.

 

[7]Gianni Vattimo. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D´água, 1998.

[8]Ibidem, p. 56.

[9]Ibidem, p. 72.

[10]Francisco. Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

[11]Emanuelle Coccia. Metamorfoses.Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.

[12]Ibidem, p. 15.

[13]Ibidem, p. 15.

[14]Ibidem, p. 18.

[15]Ibidem, p. 119.

[16]Ibidem, p. 24 e 111. 

[17]Ibidem, p. 176.

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