Os anjos nas Asas do Desejo
Faustino Teixeira
Asas do desejoé um dos mais esplêndidos filmes que assisti na vida. No original, chama-se Himmel über Berlin (O céu sobre Berlim), e foi dirigido brilhantemente pelo diretor Win Wenders, que também filmou o precioso Paris Texas (1984). Foi realizado em 1987, dois anos antes da queda do Muro de Berlim, sendo filmado na Alemanha Ocidental. O filme foi premiado pela direção no Festival de Cannes de 1987, e igualmente na Academia de Cinema da Alemanha, pela direção e fotografia. Na fotografia temos a presença de Henri Alekan (1909-2001), que colecionou também muitas premiações ao longo de sua carreira. O roteiro é do escritor austríaco Peter Handke (1942) e a trilha sonora de Jürgen Knieper (1941), que mesclou com maestria o clássico e o popular.
O filme aborda o tema dos anjos, e há um nítido influxo na dinâmica reflexiva do filme de autores como Walter Benjamin e Rainer Maria Rilke. A opção pelos anjos nasceu com Wenders em razão de sua reflexão sobre a presença deles na cidade de Berlim, por toda parte, em monumentos, fontes e estátuas. Há também o influxo do clássico anjo de Paul Klee, que foi adquirido por Walter Benjamin, que recorreu à imagem para suas teses sobre a filosofia da história.
Os anjos do filme, Dammiel e Cassiel, são interpretados respectivamente pelos atores Bruno Ganz (1941-2019) e Otto Sander (1941-2013). Eles são dois anjos que sobrevoam o Berlim do pós-guerra, ou ainda melhor, da Guerra Fria, acompanhando de perto o sentimento de tristeza, solidão e desamparo das pessoas naquele momento sombrio da história. Os anjos escutam os pensamentos, sentimentos e reflexões dos habitantes da cidade, sobretudo aqueles que expressam as “situações-limite”, buscando marcar presença e dar um pouco de consolo a eles. Muitas são as cenas onde isso ocorre, como no metrô ou nas ruas da cidade.
Infelizmente, não conseguem o intento desejado, pois são imateriais. Não estão instrumentados para a acolhida necessária. São impotentes, como “anjos caídos”, e em casos específico não conseguem acolher a dor, como no caso do suicídio de um jovem. Como mostrou Marcelo Vinícius em reflexão a respeito, os anjos “possuem uma permanência tediosa sobre a face da Terra, um mundo em preto e branco, um eterno flutuar por sobre coisas e homens, uma desencarnação assexuada, uma ahistoricidade”, condenados a testemunhar fragilizados à encarnação alheia[1].
É sobretudo um filme que poderíamos chamar de “contemplativo”, pois aborda a passagem do tempo, a fragilidade do humano, o processo de desvelamento da consciência e a descoberta da identidade. Há nos anjos o claro desejo de auxiliar as pessoas, como na cena da presença deles na Biblioteca Pública de Berlim. Os anjos são invisíveis, sendo vistos apenas por outros anjos e pelas crianças, que ocupam também um lugar importante no filme. Elas, com sua inocência, são capazes de observar os anjos nos seus movimentos, pois transitam nos dois mundos.
Os dois anjos do filme, Dammiel e Kassiel, estão
“suspensos pela falta de experiência sensível, histórica, que os detém. Vagam, conversam entre si, lembram-se de tempos imemoriais, são contemplativos. Os anjos se recordam de tudo e isso só é possível porque não têm corpo, portanto não há dores, não há traumas que pudessem disparar o trabalho do esquecimento. Suas memórias (ou o que seriam memórias se fossem eles corpos) não são fragmentadas ou incertas. Não se fatigam, não sabem como é a cor ou o perfume das coisas. Não sofrem, tampouco são infelizes (...). Os anjos não desejam, propriamente, embora pelo menos um deles, quisesse desejar. Estão, no entanto, limitados pela própria interdição”[2].
Um momento singular do filme se passa num carro novo conversível, onde Dammiel e Cassiel conversam sobre a vida. Em certo momento, Dammiel afirma ao anjo-amigo que está cansada da sua vida eternamente espiritual. Ele diz:
"É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, me canso dessa existência espiritual. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso... que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer ´agora` a cada passo, cada rajada de vento. ´Agora`e ´agora` e não mais ´para sempre` e ´eternamente`.
Sentar-me numa mesa de jogos sem dinheiro, ser cumprimentado... Toda vez que participamos foi apenas fingimento. Lutamos com alguém e fingimos deslocar o quadril. Fingimos pegar um peixe. Fingimos sentar nas mesas , beber e comer. Fingimos ter cordeiros assados e vinhos… servidos nas tendas do deserto
"Não, não preciso ter um filho ou plantar uma árvore... mas seria bom voltar para casa após um longo dia... Ter febre, dedos pretos por causa do jornal. Não vibrar apenas pelo espírito, mas por uma refeição... pelos contornos de uma nuca, de uma orelha. Mentir... deslavadamente. Sentir os ossos movendo enquanto se caminha. Supor em vez de saber sempre. Poder dizer ´ah`, ´oh`, ´ei`, em vez de ´sim` e ´amém`.[3]”
Dammiel é um anjo curioso, que se entretém de forma singela com todas as coisas ao redor, e de uma forma singular com as crianças em seus jogos de inocência, flanando sobre as ruas de Berlim. Numa de suas andanças, depara-se com um circo decadente, que iria fazer sua última apresentação numa noite de lua nova. Ali ele encontra uma trapezista, Marion, interpretada pela atriz Solveig Dommartin (1961-2007), e com ela se encanta. Ele observa maravilhado os gestos da trapezista no alto do picadeiro, com suas asas de anjo. Ele segue seus gestos extasiado. Na sua bela crônica sobre o filme, Atilio Avancini relata que ao final, a Marion
“desce do trapézio e ´cai na real` da crise como desafio pessoal. Senta-se sob o capô de um automóvel preto dos anos de 1930 e não se reconhece mais como artista. Está só e triste. Espera ouvir palavras estimuladoras para o ´voo seguro` da derradeira noite (a mão do anjo Dammiel toca seus ombros, ao som de acordes musicais. Ela então coloca as suas asas de anjo nas costas de um acordeonista do circo (…). Marion continua reflexive e adentra seu trailer só (…). A trapezista enquanto se veste, sente uma crescente onda de amor. Dammiel responde (invisivelmente para Marion) por gestos faciais e expressões corporais (…). O anjo sofre de amor no céu sobre Berlim, fascinado pelo desejo, mas sem poder tocar o corpo da trapezista”[4].
Algo novo ocorre quando então Dammiel resolve “despencar” do céu e cair na terra agora como humano. É quando então o filme, em preto e branco, ganha cor e uma dinâmica nova. Dammiel começa a experimentar a aventura humana, com suas mazelas e alegrias. Alegra-se com a visão do sangue em sua cabeça, após a queda de uma armadura de ferro. O sangue provoca nele experiência viva de estar no mundo de cores. Sente a presença do frio, e troca numa casa de antiguidades a armadura de ferro por um casaco multicolorido. Prova a alegria de um café quente, apertando o copo entre as mãos para experimentar o calor novidadeiro. Fricciona as mãos com vontade e decide mergulhar de cabeça no mundo dos humanos.
Vai ao encontro da trapezista e os dois vivem momentos mágicos de maravilhamento, numa noite reveladora. Ela diz a ele depois, entre outras coisas:
“A coisa precisa ficar séria. Estive muito sozinha, mas nunca vivi sozinha. Quando eu estava com alguém, me sentia feliz… mas, ao mesmo tempo, tudo parecia coincidência (…). Estive apaixonada por um homem. Eu poderia igualmente tê-lo abandonado e partido com um estranho que cruzou conosco na rua. Olhe para mim ou não. Me dê sua mão ou não. Não, não me dê sua mão, desvie o olhar. Hoje é noite de lua nova… noite muito tranquila… sem derramamento de sangue pela cidade. Nunca brinquei com ninguém, apesar disso, nunca abri os olhos e disse ´Agora é sério`. Finalmente é serio. Assim, fiquei mais velha. Era eu a única que não era séria? Nunca fui solitária, nem quando estive sozinha nem acompanhada. Mas eu tinha gostado de ser solitária, solidão significa o seguinte: finalmente estou inteira. Agora posso afirmar isso, pois hoje me sinto solitária. As coincidências precisam ter um fim. Lua nova das decisões. Não sei se existe destino, mas existe decisão! Decida! Nós agora somos o tempo. Não apenas a cidade, mas o mundo todo… tem parte na nossa decisão. Agora nós dois somos mais do que dois (…). Agora é a sua vez. O jogo está em suas mãos. Agora ou nunca. Você precisa de mim. Não existe história maior que a nossa… a de um homem e uma mulher. Será uma história de gigantes, invisível, contagiosa… uma história de novos ancestrais. Veja os meus olhos… eles são o retrato da necessidade… do futuro de todos que estão na praça. Ontem à noite, sonhei com um estranho… com o meu homem. Apenas com ele eu poderia ser solitária… me abrir para ele, totalmente. Recebê-lo em mim como um ser inteiro. Envolvê-lo num labirinto de felicidade partilhada. Eu sei que ele é você”[5].
Deslumbrado, Dammiel responde:
“Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, envolta em mim. Quem nesse mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida… mas sim um quadro immortal compartilhado. Aprende sobre estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior somente a estupefação com nós dois… a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. Eu… agora… sei… o que… nenhum anjo sabe”[6].
Dammiel vive com Marion uma experiência amorosa de integração, como num “labirinto de felicidade partilhada”. Agora o anjo sabe das alegrias que o tempo faculta, da dimensão humana que anjo algum pode saber e experimentar.
Uma curiosidade sobre o filme, relatada por Win Wenders em entrevista sobre o filme. Em edição especial de blu-ray definitiva sobre o filme, com um DVD extra, com quase três horas de vídeos. Ele sinaliza que a atriz atriz Solveig Dommartin, que faz a trapezista, era na ocasião das filmagens namorada sua. De forma impressionante, ela aprendeu a dominar a arte do trapézio em apenas oito semanas, e trabalhou sem nenhuma proteção abaixo, e o seu trabalho foi exemplar. Uma pena ter morrido tão cedo, em 2007, com 46 anos.
Estamos diante de um grandioso filme e de um espetacular director, que como poucos é capaz de mergulhar com profundidade e sensibilidade na “paisagem interior das pessoas”. É um “cinema da imagem – e da palavra –que faz refletir e regenerar o humano”.
[1]Marcelo Vinícius. O filme “Asas do Desejo” e a contradiçãode ser anjo:
http://lounge.obviousmag.org/marcelo_vinicius/2013/03/o-filme-asas-do-desejo-e-a-contradicao-de-ser-anjo.html(acesso em 23/06/2021).
[2]Alexandre Fernandez Vaz. Elogio do anacronismo: afetos, memórias, experiências, em Asas do Desejo, de Win Wenders:
https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/62755(acesso em 23/06/2021).
[3]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.
[4]Atilio Avancini. Asas da história, anjos do desejo:
https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/71147(acesso em 23/06/2021).
[5]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.
[6]Passagem retirada do filme Asas do Desejo.
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