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sábado, 27 de março de 2021

Os leigos num tempo de igreja sobre o cerco tradicionalista

  

Os leigos num tempo de Igreja sobre o cerco tradicionalista

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF – Paz e Bem – IHU-Unisinos

 

“Há mais verdade (religiosa) em todas as religiõesno seu conjunto do que numa religião , o que também vale para o cristianismo”

Edward Schilebeeckx.

 

1.     Como você vê o papel dos leigos neste momento difícil da conjuntura eclesiástica?

 

O tema da entrevista nasceu de uma longa conversa, quando ainda estava no hospital, com o amigo jesuíta Inácio Neutzling. Estava também Teita. Foi uma conversa boa e provocadora. Eu estava particularmente preocupado com o silêncio dos leigos na igreja do Brasil, com exceções honradas como Cesar Kuzma, continuamente ameaçado por sua contundente defesa do papa Francisco. Está na direção da SOTER.

 

O que sinto com preocupação é uma visão do leigo como subserviente, como alguém que está na minoridade e não tem muita chance de se erguer nesse lodaçal identitário e clerical. Se isso ocorre entre os homem, as pressões voltam-se igualmente para as mulheres que atuam na formação, seja no ensino religioso ou na teologia.  

 

As recentes nomeações de Francisco, acolhendo mulheres, são pequenos “ciscos” de lucidez e busca de abertura num território de lobos armados até os dentes.[1]Apesar de suas boas intenções de abertura, Francisco depara-se com adversários, como o cardeal Giovanni Battista Re e outros, como o cardeal Andrea Riccardi, acham que Francisco age como um “paroco di campagna”, carente de “consistência teológica”.[2]

 

Os vaticanistas indicam que o mal esta com Francisco nos corredores da cúria e já emergiu na noite de sua eleição. A linguagem pastoral de Francisco “irrita e espanta” profundamente os tradicionalistas da cúria. No Brasil essa resistência é crescente entre os novos padres, quase todos alinhados com o papa Ratzinger. Não demora muito e veremos os medievais tatuados gritando “mito”! Exemplos bonitos de atuação profética, como Karl Barth, que reage ao nazismo, em 1934, no sínodo de Barmen, “com clara profissão de fé em Jesus Cristo como única palavra de Deus, ao lado da qual não podem ser admitida ´como revelação divina outros acontecimentos e poderes, figuras verdades”.

 

Barth defende Jesus como “única palavra de Deus que exige a nossa escuta, a nossa obediência e a nossa fidelidade”. Faz ainda uma menção expressa ao nazismo: “Recusamos a falsa doutrina segundo a qual a igreja poderia ou deveria reconhecer como fonte da própria pregação, algo além , desta única palavra de Deus; bem como outros acontecimentos ou potências, pessoas ou verdades como revelação de Deus”[3].

 

2.     Que tarefas proféticas os leigos devem assumir em defesa do Papa Francisco

 

O momento é de resistência ativa. É o momento de entrar com mais coragem na guerra das interpretações. Denunciar com vigor esses “palhaços” que estão atacando a CNBB e o curso de Verão do Ceseep, como sua teóloga luterana, Romi, tão querida. É hora de mostrar a verdade e sinalizar a atração de nossos profetas na CNBB. Mas claro que qostaríamos de ver a CNBB mais atuante e corajosa na luta em favor dos pequenos. Igualmente fazer ecoar por todos os cantos sua luta em favor dos mais pobres, de sua perspectiva dialogal, de seu projeto de purificação da igreja. Manter viva a iracúndia sagrada contra os casos de pedofilia acobertados nas igreja. A questão nos impõe tolerância zero.

 

Dicas importantes saem dos próprios discursos de Francisco. Cito aqui o conselho que ele deu em sua viagem ao Brasil: não perder a esperança, viver na alegria e deixar-se surpreender por Deus[4]. O cuidado com o mundo interior pode ser precioso para lidar com as surpresas de Deus. O mundo interior, tão celebrado por místicos como Thomas Merton, Etty Hylesum e Rainer Maria Rilke, é porta de entrada para a perseverança, paciência e mansidão[5].

 

Os leigos devem, sobretudo, nesses tempos de pluralismo religioso, lutar com todas as forças contra a arrogância identitária, e só mediante o cultivo da vida espiritual isso é possível. Em linha de fina sinfonia com Teilhard de Chardin, que identifica Deus como “eterno movimento e crescimento”, o papa Francisco retoma essa ideia de Deus como novidade imorredoura. É ele que nos “impele a partir sem cessar e a mover-nos para ir mais além do conhecido rumo às periferias e aos confins”[6].

 

3.     Como você ver o ritmo tradicionalista que nos cerca por todos os cantos?  

 

Era algo mais do que esperado no pontificado de Francisco. As redes sociais estão explodindo reações críticas. Grupos fundamentalistas, em sintonia com a TFP no passado, invadem conferências e entopem nossas redes sociais com mentira e arrogância. E espero que não atuem armados, nessa louca conjuntura que arma as pessoas. Em textos de Olavo de Carvalho, a crítica ao que ele chama de confusão entre eternidade e instante. Trata-se da velha dificuldade em entender que o reino de Deus está no meio de nós, e cresce na medida em que levamos nossas causas com nobreza de alma. Ou como também dizem os budistas: O nirvana desdobra-se no samsara. O instante ganha assim uma plenitude fundamental. Como diz Dogen, “cada instante é um instante de plenitude”. Basta saber ver. Não há mais duas histórias que se acoplam: uma história da salvação e uma história da perdição. Como diz Gustavo Gutiérrez, “não há duas histórias justapostas, uma profana e outra sagrada, mas sim um único dever humano, assumido irreversivelmente – por Cristo”[7].

 

4.     Qual o papel e o lugar que a SOTER pode ocupar?

 

Como tarefa fundamental, no campo ético, a defesa de teólogas e teólogos que estão sempre na mira do magistério. Vejo aqui as injustiças que ocorrem no campo da missio canônica: das ameaças de demissão, dos enquadramentos humilhantes. Diante de situações difíceis, assistimos surpresos o silêncio dos teólogos que lecionam nas Universidades Católicas, que evitam se expor, em razão da missio canonica. Isso é muito triste e anômalo. É de se revoltar agora a posição de três bispos, um de Juiz de Fora. Cito aqui uma postagem no Face de um amigo: Fernando Altmeyer:

“Três bispos católicos romperam nesta semana com a fraternidade colegial atacando a CNBB, as igrejas do CONIC, aos irmãos fraternos, às pastoras e aos teólogos das várias igrejas que fizeram texto exemplar e profético em favor dos subalternos e desprezados pelos opressores no Brasil. O atual bispo de Formosa, GO; o atual arcebispo de Juiz de Fora, MG e o arcebispo militar do Ordinariato militar em Brasília lançaram documentos eivados de falácias que demonstram total desconhecimento dos textos mais eminentes dos papas e dos Concílios. Surdos aos clamores do Espírito que nos quer unidos. Todos os três prelados rasgaram o Evangelho de Jesus Cristo em claro posicionamento ideológico contra a comunhão na diversidade.”

 

E onde estão os teólogos da SOTER? E a força profética desta instituição acadêmica?   Nos habituamos ao silêncio da comunhão e da obediência...

 

A Sociedade de Teologia e de Ciências da Religião passa a assumir um papel essencial nas mudanças que hoje se impõe num trabalho crítico e ampliado, capaz de abraçar o valor e a dignidade da diferença. E buscar quebrar o cerco do antropocentrismo e do antropoceno, mostrando que não somos seres excepcionais, mas “espécies companheiras” que lutam em favor dos “direitos característicos”. Abre-se também espaço para tratar de questões delicadas como o homossexualismo, o aborto,  eutanásia, entre outros. Já tinha assinalado o cardeal Ratzinger em seu livro-entrevista . No livro dizia claramente , num capítulo sombrio, intitulado o drama da moral, que hoje nesse âmbito é onde ocorre o principal “foco de tensões entre o Magistério e os teólogos”[8].   

                              

5.     Qual a sua concepção de evangelização?

 

A visão que acho a mais bonita vem de Paulo VI: “tornar nova a própria humanidade”[9]. Os bispos da Ásia são grandes especialistas em lidar com esse tema mantendo acesa a chama dialogal. Em documento claro e singular, sobre o dom dos Espírito ás igrejas, fala-se em diálogo para além das fronteiras da igreja. E gostam de utilizar a expressão “nossos amigos”, em vez de falar “não cristãos”:  

 

“É uma verdade incontornável que o Espírito de Deus em toda  está agindo em todas as religiões tradicionais. Dialogar é então uma viagem em companhia do Espírito para descobrir de onde vem e para onde vai a sua graça. O que explica por que se trata de um ato espiritual e que só se pode efetuar essa viagem estando aberto ao Espirito e sensível à sua voz”[10].

 

O papa Francisco rechaça radicalmente a prática do proselitismo. Trata-se de algo problemático no tempo do pluralismo religioso. Em linha de sintonia com documentos eclesiais mais aberto, Diálogo e Missão (1984) e Diálogo e Anúncio (2001), Francisco sublinha: “Isto é que é importante: nos conhecermos, nos escutarmos, ampliar o círculo do pensamento. O mundo vem percorrido por estradas que nos avizinham e distanciam, mas o importante é nos levem ao Bem”[11].

 

Francisco, como o teólogo Paul Tillich, fala numa “presença espiritual que se faz presente no tempo, mas na medida que toca a atmosfera vem marcada por uma ambiguidade, que impede qualquer sentimento de posse. Nesse sentido, diz Tillich, “onde o Espírito divino supera a religião, ele impede a reivindicação de absolutismo, tanto por parte da igreja quanto por parte de seus membros. O Espírito divino é efetivo, rejeita-se a reivindicação de uma igreja representar a Deus com exclusão das demais”[12].

 

Francisco vai desocultando um olhar de abertura, de forma a “encontrar Deus em todas as coisas”[13]. É a viva experiência da imanensidade, como gosta de retomar Panikkar. Sua visão de Deus é tomada pela reserva escatológica e pela alegria da epektasis. Deus é contínua revelação: cada conquista da alma transforma-se em novo ponto de partida, num desejo maior, num amor maior. Francisco é claro ao dizer que não acredita num Deus católico, pois não existe um Deus católico. O que existe é simplesmente Deus, para além de todas as religiões[14].

 

O essencial é “obedecer à própria consciência” e fazer valer a honradez e a nobreza da alma. O agape, diz Francisco é o que há de mais essencial: “O agape, que é o amor que cada um de nós nutre pelo outro, dos mais próximos aos mais distantes, é por certo o único modo que Jesus nos indicou para encontrar o caminho da salvação e da Bem-Aventuranças”[15].

 

Estamos, sim envolvido no hálito do Misericordioso, por todos os cantos. Um envolvimento que nos capta ver esse “mistério anônimo que circunda a ilha da nossa consciência cotidiana”, desconhecido também no cristianismo. Estamos imersos na eternidade, que em verdade é um “tempo ilimitado aberto”[16].

 

Lendo aqui o livro-entrevista do cardeal Ratzinger, Rapporto sulla fede, deparo-me com uma “pérola” que, na verdade é algo que vem partilhado por muita gente: “o diálogo pode aprofundar e purificar a fé católica, mas não pode mudá-la na sua verdadeira essência”[17]. Deixar-se surpreender pelo Mistério de Deus é um dos grande dons do diálogo. Ninguém sai o mesmo de sua interlocução . Em âmbito de profundidade, que é um nível mais profundo, os interlocutores podem receber apelos que são novidadeiros. Thomas Merton assinala, partindo se sua rica experiência, que na entrega dialogal pode ocorrer uma profundidade de “autentica consciência metafísica”. Trata-se de um “sentido de presença, de um fundamento básico de realidade e de significado, do qual a vida e o amor possam espontaneamente florir”[18].

 

 

 

 

6.     Há sinais de abertura do papa, mas o clima fechado da Dominus iesus permanece em curso, não é mesmo?

 

Aqui estamos numa encruzilhada, onde os caminhos encontram-se ainda bem barrados. Vemos tentativas de Francisco, mas a teologia foi adornada por um inclusivismo que não se adapta definitivamente ao pluralismo religioso. Durante o Vaticano II vimos que teólogos como Daniélou e Henri de Lubac barraram qualquer reflexão mais arejada sobre o tema[19]. Quase todos os temas vindo de oculares mais abertas recebiam a negativa, em nome da preservação da superioridade cristã. 

 

Paulo VI, tão reverenciado aqui na América Latina, é profundamente infeliz ao falar das outras religiões. Para ele, não passam de “braços estendidos aos céus”. São religiões “naturais” que necessitam seu aperfeiçoamento ou acabamento no cristianismo. Invertendo uma reflexão desenvolvida por Schlette, sobre as outras religiões, Paulo VI sublinha agora que elas constituem caminhos extraordinários de salvação, e só o cristianismo revela-se caminho ordinário de salvação[20].

 

Aí apareceram outros documentos infelizes do Vaticano como a Carta aos bispos sobre alguns aspectos de igreja entendida como comunhão[21], quando desconhece o valor de igreja às comunidades evangélicas. Fala-se em “elementos da Igreja de Cristo”, em razão de viver somente “uma certa comunhão, embora não perfeita”.[22]

 

Com a Carta apostólica de João Paulo II sobre a preparação para o ano 2000[23], a visão inclusivista firma-se sem acanhamento, colocando um basta na teologia pluralista da religião, Indica-se claramente que o Cristo “é o cumprimento do anseio de todas as religiões do mundo”. E com ingenuidade única: “O ano 2000 convida a encontrarmo-nos, com renovada fidelidade e mais profunda comunhão, sobre as margens deste grande rio: o rio da revelação do cristianismo e da igreja...”[24].

 

Da Comissão Teológica Internacional veio o titubeante documento, O cristianismo e as religiões, também fundado num tradicional inclusivismo. Dentre as “pérolas” apresentadas, uma visão que nos lembra Karl Barth: “As religiões falam “do” santo, “sobre ele”, “em seu lugar” ou “em seu nome”. Apenas na religião cristã é Deus mesmo quem fala ao homem”[25]. A visão inclusivista irradia-se em todo o documento. Fala-se ali que as outras religiões exercem “certa função salvífica”. É o mesmo Espírito que atua nas outras religiões, mas sua presença universal “não pode ser equiparada à sua presença peculiar na igreja de Cristo”[26].

 

A indiferença religiosa provoca grande temor no Vaticano, daí ter surgido a ideia de um Sínodo para a Ásia, visando ilustrar e aprofundar “a verdade sobre Cristo mediador e único Redentor do mundo”[27]

 

Pouco depois veio a famigerada Dominus Iesus (DI), coroando a visão  católica tradicional e barrando os caminhos de transformação da igreja católica sobre o tema. Imagino que o papa Francisco deveria pensar com seriedade num caminho alternativo  e propor um documento específico mais nobre e coerente sobre o tema. 

 

De fato, a declaração Dominus Iesuscontinua como um dos pesadelos para quem se dedica ao diálogo. Dentre as pérolas anti-dialogais, a distinção entre fé e crença. Enquanto a “fé teologal” traduz a aceitação da verdade revelada, a crença encontra-se ainda “à procura da verdade absoluta e ainda carecida do assentimento a Deus que se revela”[28].

 

O certo é que muitos teólogos cristãos que pensavam diferente foram objeto de muita perseguição. Foi o período sombrio das notificações. E fixo-me aqui apenas nos teólogos que trabalhavam o tema das religiões: Hans Kung (1979); Edward Schillebeeckx (1980,1981, 1985); Leonardo Boff (1985); Tissa Balasurya (1997); Antonii de Mello (1998); Jacques Dupuis (1997); Roger Haight (2004).  

 

Na  Praenotanda  do livro da Congregação para a Doutrina da Fé (Documenta. Inde a code Vaticano Secundo expleto Edita – 1966-205. Libreria Editrice Vaticana, 2006), escrita por Angelo Amato, ele retoma a ideia do cardeal Levada, na introdução da obra, em torno da busca de uma uma “sã teologia católica”. Levada questiona o que nomeia como “hermenêutica da descontinuidade e ruptura” e indica a Dominus iesus  como o documento que procede como o “quadro de referência essencial da teologia das religiões, do diálogo inter-religioso e ecumênico”[29]. A título de lembrança, Ratzinger chega a comparar as outras religiões a “regimes de terror e instrumentos de Satanás[30].

 

Como professor de teologia do pluralismo, pude acompanhar de perto, e com muito sofrimento, cada punição. Vivi de perto a “note escura”de Jacques Dupuis. Ele estava na minha casa, em Roma, quando saiu a primeira crítica ao seu livro, no jornal L´Avvenire.

 

              Partilho o que escrevi a respeito em outra ocasião[31]:

No colóquio pessoal com Ratzinger, em setembro de 2000, a impressão causada a Dupuis, era que o prefeito da CdF não tinha compreendido bem os detalhes de sua teologia, ou então estava mal informado a respeito. E o livro de Dupuis[32]já tinha sido publicado em três línguas (italiano, francês e inglês), em editoras de grande relevo. 

Nesta reunião, Ratzinger levanta uma questão a Dupuis: “O senhor estaria disposto a declarar que seu livro deve ser compreendido à luz de nossa Declaração Dominus Iesus?”. Ao que respondeu Dupuis: “Eminência, temo que o senhor esteja pedindo muito de mim”. A resposta revela a liberdade teológica de Dupuis no confronto das autoridades católicas. O que vale, em primeiro lugar, é a honradez de sua teologia, o direito de sua cidadania teológica. Para Dupuis, que nunca conseguiu ensinar o que não pensa, nada era mais legítimo do que exercer o direito de manter “uma distinta percepção da mesma fé num contexto diverso”. 

Por isso se bateu toda a vida. Ele dirá no post scriptumde sua obra sobre O cristianismo e as religiões: “Afirmações absolutas e exclusivas sobre Cristo e sobre o cristianismo, que reivindicassem a posse exclusiva da auto-manifestação de Deus ou dos meios de salvação, distorceriam e contradiriam a mensagem cristã e a imagem cristã”.

Os dois capítulos de Dupuis publicados postumamente na obra editada por William Burrows foram escritos com o propósito de publicação na obra O cristianismo e as religiões, como um posfácio. Isso não ocorreu em razão de proibição de seus superiores, diante do clima tenso que marcava o período. 

Segundo Burrows, não seria interessante para a ordem dos jesuítas um ataque mais direto à Dominus Iesus, num momento em que reações muito negativas ao documento da CdF se irradiavam e outros religiosos da ordem estavam sendo investigados: Jon Sobrino e Roger Haight. 

Os dois capítulos com a reflexão de Dupuis abordavam sua reação tanto com respeito à Dominus Iesus (DI) como ao seu processo e a Notificação que se seguiu. O que expressam, na verdade, é a reafirmação de seus principais argumentos teológicos, já defendidos na sua obra de referência, envolvendo sua defesa de um pluralismo inclusivo.

As reservas de Dupuis a respeito da DI são bem precisas. Com respeito à visão cristológica, Dupuis retoma os argumentos clássicos de sua reflexão. A seu ver, a reivindicação da unicidade e universalidade de Jesus Cristo não reduz o espaço para uma teologia “aberta” das religiões. Defende a plenitude da revelação de Deus em Jesus Cristo, entendida porém como uma “plenitude qualitativa” e não “quantitativa”, o que significa manter aberto o mistério de Deus que “permanece escondido para ser manifestado plenamente no escaton”. 

Dupuis, por diversas vezes, reage ao risco do cristomonismo presente na Dominus Iesus, que é recorrente na tradição latina, implicando numa excessiva concentração cristocêntrica do mistério da salvação e encobrindo sua fundamental dimensão trinitária. A perspectiva trinitária é um dos traços essenciais da reflexão de Dupuis: “Deus Pai é aquele que fundamentalmente salva; Jesus Cristo é, na humanidade e no percurso histórico de sua vida, morte e ressurreição humana, o sacramento primordial da ação salvífica de Deus; o Espírito Santo torna o valor salvífico do evento-Cristo presente e atual em todo tempo e lugar”[33].

Jacques Dupuis é bem claro em sua argumentação. Evita atribuir a Jesus Cristo o caráter de “salvador absoluto”. E isto por uma razão muito óbvia. Trata-se de um atributo que se reserva à Realidade última ou ao Ser Infinito, não podendo incidir sobre nenhuma realidade finita, aqui incluída a existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem. 

Para Dupuis é Deus mesmo e não Jesus Cristo em sua humanidade “a suma e original fonte da revelação e da salvação”. Somente a Deus pode ser atribuído o qualificativo de Revelador e Salvador absoluto. Tanto a Exortação apostólica Evangelii nuntiandi (EN 8) como a encíclica Fides et ratio(FR 80) acentuam essa ideia de Deus (ou de seu Reino) como único absoluto. 

Aplicar a Jesus o traço de “mediação fundamental” da salvação, como indicado na DI, é um limite. A fonte fundamental ou causa primeira “é Deus Pai; Jesus Cristo age enquanto mediador entre Deus e a humanidade no nome e sob a iniciativa do Pai. Em última análise, é de Deus que derivam os elementos de verdade e bondade presente nas tradições”.

Como a revelação de Deus em Jesus Cristo não exaure o inteiro mistério de Deus, isto tem repercussões vivas na relação do cristianismo com as outras religiões. O Concílio Vaticano II manteve muita prudência a esse respeito, buscando resguardar um lugar reservado ao mistério de Deus e reconhecendo a legitimidade de caminhos que só Deus conhece (GS 22 e AG 7). É importante sublinhar que história da revelação de Deus não se encerra com  o momento da presença pública de Jesus, mas permanece aberta às surpresas do Mistério sempre maior.

Dupuis busca seguir esta mesma trilha, salvaguardando o direito e a dignidade das diversas tradições religiosas, também portadoras de “verdade e graça” (AG 9). Daí sua reação crítica à Dominus Iesusquando estabelece uma distinção entre fé e crenças (DI 7). Para Dupuis, trata-se da expressão mais desdenhosa da Declaração da CdF. Equivale a estabelecer uma rígida separação entre a fé divina, específica do cristianismo, e as crenças religiosas, reduzidas a meras opiniões humanas. Uma posição que acaba sendo ofensiva com todas as outras tradições religiosas, incluindo o judaísmo e o islã. 

 

Em sua reação crítica a tal distinção, assinala Dupuis: “Em verdade, o texto indica que, enquanto a nossa fé cristã no Deus que se revelou a Abraão e declarou seu nome a Moisés é fé teologal, a mesma coisa quando é professada pelos judeus é somente uma crença humana ? E João Paulo II talvez tenha se equivocado quando, em agosto de 1985, disse a milhares de jovens muçulmanos em Casablanca: ´Nós acreditamos no mesmo Deus, o único Deus, o Deus vivente, o Deus que criou o mundo e leva as suas criaturas à perfeição` ? Ou então queria dizer que aquilo que é fé divina para nós cristãos é, para os muçulmanos, só uma opinião humana ? Não há nenhuma justificação bíblica para refutar a extensão da fé divina para os membros das outras religiões”. 

Com respeito ao papel exercido pela igreja no plano da salvação, Dupuis assinala que esta atuação não implica, necessariamente, “uma atividade de mediação universal da graça” com respeito aos membros das outras tradições religiosas. É o que revela, por exemplo, o documento Diálogo e Anúncio, da Pontifícia Comissão para o Diálogo Inter-Religioso, em seu número 29. Os participantes de outras tradições religiosas acolhem ao convite de Deus sem necessariamente recorrer à igreja, mas mediante o exercício da fé e do amor. É “através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência, que os membros das outras religiões respondem afirmativamente ao convite de Deus” (DA 29). Isso em verdade significa reconhecer que “os elementos de verdade e de graça presente nas tradições podem ser os canais mediante os quais Deus alcança seus membros com a sua salvação”.

Nada mais problemático do que restringir a dignidade das outras tradições religiosas, assinalando que elas “objetivamente se encontram numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22). Isso é o que mais irrita a Dupuis, e a todo e qualquer teólogo que busca levar a sério a dignidade das outras tradições religiosas. Trata-se de algo que objetivamente ofende aos outros, revelando uma perspectiva teológica curta e ensimesmada. Como assinala Dupuis, o conceito de salvação apresentado pela DI revela um encurtamento de horizontes, reiterando seu traço exclusivo de consciência da verdade. O que permanece ausente, e que é essencial, é o traço do amor, do agape. E esse é o traço fundamental apontado por Jesus para indicar o caminho da salvação (Mt 25,31-46 e 1 Jo 4,16). O que fundamentalmente conta para a salvação, sublinha Dupuis, não é o acesso à plenitude da verdade, nem o beneficiamento dos meios de salvação confiados por Jesus à igreja, mas o exercício do amor (115).

Com respeito ao papel exercido pela igreja no plano da salvação, Dupuis assinala que esta atuação não implica, necessariamente, “uma atividade de mediação universal da graça” com respeito aos membros das outras tradições religiosas. É o que revela, por exemplo, o documento Diálogo e Anúncio(DA), da Pontifícia Comissão para o Diálogo Inter-Religioso, em seu número 29. Os participantes de outras tradições religiosas acolhem ao convite de Deus sem necessariamente recorrer à igreja, mas mediante o exercício da fé e do amor. É “através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência, que os membros das outras religiões respondem afirmativamente ao convite de Deus” (DA 29). Isso em verdade significa reconhecer que “os elementos de verdade e de graça presente nas tradições podem ser os canais mediante os quais Deus alcança seus membros com a sua salvação” .

Nada mais problemático do que restringir a dignidade das outras tradições religiosas, assinalando que elas “objetivamente se encontram numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22). Isso é o que mais irrita a Dupuis, e a todo e qualquer teólogo que busca levar a sério a dignidade das outras tradições religiosas. Trata-se de algo que objetivamente ofende aos outros, revelando uma perspectiva teológica curta e ensimesmada. 

Como assinala Dupuis, o conceito de salvação apresentado pela DI revela um encurtamento de horizontes, reiterando seu traço exclusivo de consciência da verdade. O que permanece ausente, e que é essencial, é o traço do amor, do agape. E esse é o traço fundamental apontado por Jesus para indicar o caminho da salvação (Mt 25,31-46 e 1 Jo 4,16). O que fundamentalmente conta para a salvação, sublinha Dupuis, não é o acesso à plenitude da verdade, nem o beneficiamento dos meios de salvação confiados por Jesus à igreja, mas o exercício do amor.

Todo o trabalho exercido por Jaques Dupuis ao longo de sua vida foi em favor do diálogo entre as religiões, entendido como um caminhar em comum visando o horizonte maior do Mistério, que a todos escapa. Foi igualmente uma busca de aprofundamento da compreensão do mistério de Cristo. Esta foi sua “paixão constante”, como ele mesmo sublinhou. Mas nesse caminho encontrou muitas dificuldades e resistências, talvez em razão de dificuldades precisas de setores da igreja católica em acolher uma perspectiva mais arejada e ousado do cristianismo. 

 

Depois de iniciado o processo contra ele, viu crescer ao seu redor as resistências ao seu pensamento, mesmo entre alguns colegas da Gregoriana. Algumas exceções devem ser destacadas, como a do companheiro e amigo, Gerald O´Collins, que sempre o defendeu com ardor e empenho. É algo muito duro para um teólogo movido por grande amor à igreja, ver sua obra rechaçada e incriminada como desviante. Ao longo de sua reflexão, sublinha que se enrubesce só de imaginar que sua obra poderia causar dano aos seus leitores. Muito humilhante para ele ter que vivenciar no final de sua carreira acadêmica, aos 74 anos de idade, atitudes hostis que o impediam de continuar a exercer o seu trabalho na Gregoriana; bem como a irradiação nos meios de comunicação de artigos que incriminavam a sua reflexão teológica. Tudo isso somado acabou produzindo nele uma depressão que se aprofundou no final da vida, levando-o a morte antes do tempo, em 28 de dezembro de 2004.

Para quem, como eu, tive o privilégio de ser orientado por Jacques Dupuis e ser acolhido entre seus amigos, é muito triste ler o livro de Gerard O´Connel: “il mio caso non é chiuso. Conversazioni con Jacques Dupuis (Bologna: EMI, 2019). Aí sim, podemos ter ideia de quanto violência pode ocorrer mesmo no ambiente da comunidade. Dupuis ressalta que ele teve ao  longo da vida muitos amigos, que estiveram perto nos momentos mais difíceis. Relata também o amor profundo que durante toda a vida manteve com Jesus. Sublinha com sinceridade que Jesus foi “a única paixão” de sua vida.[34]

Depois do que ocorreu com a Notificação, as portas se fecharam, mesmo na comunidade jesuíta da Gregoriana. Nenhuma nova produção foi liberada, com uma exceção. Diziam que colocar em giro suas reflexões era colocar inutilmente ele em risco, bem como a Companhia de Jesus e a Gregoriana.[35]Dizia que em tal situação não lhe restava senão deixar de escrever livros ou artigos, aguardando que seus manuscritos pudessem ser publicados depois de sua morte.

A visão crítica de Dupuis não poupou colegas da comunidade, como Ladaria, para ele “um grande inquisidor espanhol”. O temor entre os teólogos da Gregoriana se irradiava com rapidez. A grande maioria não aprovava a publicação de seus manuscritos, inclusive o Pe. Geral, Kolvenbach, e o argumento central era: a manutenção da prudência e da reputação ortodoxa da Gregoriana: “o inteiro campo do diálogo inter-religioso vem minado pela publicidade que pode provocar”[36]. (sic!)

Um de seus poucos defensores na Gregoriana era o pe. O´Collins, professor de cristologia. E mostrava-se surpreso e escandalizado diante das pífias objeções à teologia de Dupuis, em profunda linha de sintonia com o pensamento de Francisco e o ensinamento dialogal de Jesus de Nazaré.[37]

Ao final, foi desaconselhado a viajar e ficou cada vez mais abandonado na comunidade da Gregoriana. Dizia que seu sofrimento foi ainda maior entre os seus colegas da Gregoriana. Um drama para ele maior do que o sofrido com os membros do Santo Ofício. Para ele o mais difícil foi o sentimento de ser “traído” por seus superiores[38]. Comparou seu caso ao vivido por Congar, que levou adiante na sua vida a manha da suspeição. Argumenta que não teve um Papa João XXIII que pudesse amenizar ou equacionar as suspeições contra ele, que continuarão acesas no pós-morte.

Assinala em carta de 12 de junho ao pe. Egaña que perdeu a vontade de viver desde 02 de outubro de 1998. E lembra que nunca mais superou essa dor, sendo que agora vai também perdendo a vontade de sobreviver. Aos poucos foi se isolando, alimentando-se sozinho, sem receber jamais qualquer mensagem de solidariedade. Chegou ouvir do pe. Superior da comunidade, com convicção, de que ele, Dupuis, já deveria ter sido afastado da comunidade há mais tempo... Sua morte ocorreu em 28  de dezembro de 2004, depois de um desmaio no refeitório da Gregoriana.

 

7.     Percebe-se hoje claramente uma transformação em seu olhar teológico depois que começou a mergulhar no tema do pluralismo religioso. Fale-me sobre isto.

 

Para responder a esta complexa questão, faço recurso a dois textos que estão relacionados: um de Carlos Rodrigues Brandão e a outro meu, que está num livro que organizei junto com Brandão: Em que creio eu. São Paulo: Fonte Editorial, 2017. São na verdade dois depoimentos que indicam o nosso atual momento de transformação nesse campo da fé:

(a) “Quem sou eu? Em que creio? E nome do que e de quem vivo o que me parece bom, belo e verdadeiro viver? A quem me sinto eu ´ligado`? E será que palavras como: ´engajado em`, ´comprometido com` e ´militante de` ainda me soam não apenas familiares, mas indicadoras de minha mais assumida vocação e de minha própria identidade? Creio que estas perguntas, formuladas no singular e que são, mais existencial do que teoricamente minhas, valem de maneira igual para a comunidade de ´nós` próximos de que me imagino parte. 

 

Na Agenda Latino-americana assim como nas agendas pessoais e interiores de vários dentre nós, os fatos e feitos do que canonicamente poderia ser considerado como a Igreja Católica Apostólica Romana, estão ausentes ou são raros e discretos. Não há documentos pontifícios de orientação pastoral , mas alguns militantes não cristaos, como penso que seja o caso de Eduardo Galeano, possuem páginas reservadas para as suas ideias. Ela fala a uma comunidade em diaspora, congregada em uma identidade ma identidade ao mesmo tempo religiosa, pastoral ideológica e política que não cabe por certo no ideário de qualquer igreja confessional de tradição crista (…).

 

Trouxe o seu exemplo porque acredito que a Agenda Latinoamericana contém, talvez mais do que Nicéia, a sintese daquilo em que muitos nós acreditamos, ou imaginamos que, pelo em parte… cremos. O que me faz recordar a resposta de um sacerdote de Diocese de Goiás[39], quando há mais de vinte anos, preocupado eu mesmo com pequenas questões de fé, perguntei a ele qual a qualidade da crença a respeito da virgindade e da Assunção de Nossa Senhora, da ressurreição da carne, da existência tenebrosa do purgatório e, pior ainda dos infernos. A resposta dele foi simples e curta: ´Faz muito tempo que eu não penso em nada disso!`”. Dizia que tudo não passa de “penduricalhos” que estão em segundo plano. Igual falar hoje em Teotokos em tempos de pluralism…Fica mais complexo defender e rezar acreditando que Maria é Mãe de Deus… 

 

Voltando ao argumento de Brandão: ´Continuamos a cnversar e ele, com calma e sabedoria, me foi ensinando a separar o ´entulho` da ´crença` e a ´crença` da fé. Então eu perguntei a ele algo como: ´Afinal, no que você crê?` E ele, entre o evangelho e a fiel heresia respondeu: ´eu creio numa comunidade que crê, e que vive do que crê”[40].

 

Antes de entrar no meu depoimento, gostaria apenas de recordar que, muitas vezes, por traz de posicionamentos duros e autoritários de ministros  nos diversos âmbitos da moral sexual ou outras questões, como aborto, homossexualismo, pedofilia etc, há algo que se esconde e se revela com o tempo. O teólogo dominicano Yves Congar chegou a identificar o Santo Ofício à Gestapo. Assim ocorria – e diria eu, continua a ocorrer hoje em dia , algo semelhante do ambiente da corte romana[41].

 

Permanece cada vez mais atual o precioso livro de Eugen Drewerman, Funcionários de Deus (1989), onde desvenda como poucos as raízes psicológicas do centralismo autoritário ecclesiastico, a solidão dos celibatários (e sua produção de angústia), os interditos diminuidores, a escapatória homossesual etc. Lança uma séria de pistas importantes para o caminho terapêutico[42].

 

(b) Como me vejo hoje nesse âmbito da crença. Uma questão que é complexa e difícil de expresar. Digo com certa tranqulidade que nunca passei um periodo marcado por crise mais substantive. Foram sempre coisas miúdas. O que sempre ficou, como tatuagem no coração, foi o Jesus narrado nos evangelhos. Esse Jesus magnífico que habita em minha aldeia. Esse Jesus, que como diz Pagola,  e retomo “é o potencial mais admirávelde lua e esperaça” que tocou os humanos. Jesus é o “imão maior” , um “Deus salvador e amigo”.

 

Ajudou-e muito manter a fé o seu entemento como fé em movimento, sempre disponibilizada a aprender com os outros um mistério que nos ultrapassa. Como diz Panikkar, o Cristo escondido no hinduísm é o mesmo Cristo escondido no cristiasmo[43]. O diálogo nos ajuda a captar, mutuaente, esse Mistério que é neblinal. Como diz Rosa, “natureza da gente não cabe em nhuma certeza”. 

 

8.     Você declarou publicamente nestes tempos que se aproximou da UDV. Isto seria sincretismo religioso?

 

Nunca tive problemas com o sincretismo religioso. Minha tradição católica foi tecida desde o início pelo sincretismo e isso é enriquecedor. Como disse Pierre Sachis, as malhas do catolicismo aqui no Brasil são plurais. Com sua fina ironia sublinhava: “Há religiões demais nesta religião”[44]. Não há razão para temer o sincretismo. É um fenômeno universal, que se dá no encontro com os outros. Trata-se da “tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”[45].

 

Minha experiência com o diálogo foi mais acadêmica, e tive a alegria de me adentrar na experiência cristã, bem como no horizonte da mística islâmica e budista, que resultaram numa trilogia que está no prelo da editora Appris, de Curitiba. 

 

Esta minha experiência de encontro com outro ganha agora uma perspectiva nova, na experiência com a União do Vegetal. Isso não significa ruptura com o cristianismo, ao contrário, é um mergulho mais fundo no Mistério do cristianismo. O que vem à lembrança é o diálogo de Marco Lucchesi com Paolo Dall`Oglio, o jesuíta e padre do deserto. Paolo escolheu viver num mosteiro misto, num deserto da Síria, abraçando com radicalidade a tradição islâmica. Os monges e monjas que ali vivem são “árabes por causa de seu amor aos árabes, e não por sua origem”. Sobre essa abertura ao islã, diz Paolo: “Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude da tranquilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito”[46].

 

Após a experiência do transplante de medula, em 2021, muitos campos se abriram na minha vida, inclusive o de escolher a religião com que poderei estabelecer o meu foco dialogal. E cheguei tarde. Alguns escolhem os pentecostais, outros as religiões. Eu optei por uma das religiões dos povos originários. E estou muito feliz. O meu mestre nesta empreitada tem sido o Sergio Brissac, com mais de 30 anos de experiência. Tinha sido meu aluno no colégio Santo Inácio, tendo sido ordenado por Dom Luciano Mendes de Almeida, e tido formação sólida na FAJE. 

 

Estou ainda em fase bem inicial, com muitas leituras e conversas, e estou fascinado com a riqueza da experiência do Mestre Gabriel, que trouxe a experiência da Amazônia, em 1961, fixando-se depois em Porto Velho. Trouxe para a experiência traços bonitos do catolicismo popular, além da capoeira, que é também uma de minhas  paixões. Outro ponto que serviu de atração foi a postura dialogal de Mestre Gabriel. A busca incessante pelo divino marca a experiência desde o início[47].

 

Com o Mestre Gabriel a gente se inicia numa experiência que privilegia o sentir, mas também a consciência, a memória, a ordem. Há um lugar singular dedicado às chamadas (como uma “mensagem da existência de um cosmos ordenado”),  bem como a relação mestre discípulo. A peia também ocupa um lugar central, como a nos recordar os nossos limites e, em última instância de que somos passageiros, impermantes e temo como horizonte a morte. Trata-se de um aprendizado místico fundamental: Aprender a morrer antes de morrer. Há também a bela experiência das mirações e da evolução espiritual.

 

Não vejo esse diálogo, absolutamente, como sincretismo. Como diz Panikkar, a verdadeira  contemplação é um “appuntamento” com a vida. Um encontro com o Mistério da Vida, da vida em sua “tempiternidade”[48].  O contemplativo autêntico vive imerso ao tempo, atento de desperto às suas nervuras: “Estar aqui é esplendor” (Rilke). O que importa, diz Panikkar, é viver esta vida em plenitude e partilhar minha vida com a vida – com a vida do inteiro universo”. E “fazer bem todas as coisas, com beleza, bondade e , amor, não esperando nada”[49].

 

9.     Você está organizando um livro com as histórias da Irmã Maria Amada. Fale-me sobre o livro.

 

Sim, vai ser uma beleza. Estamos recuperando a primeira edição, com as lindas histórias místicas da irmã carmelita descalça, Maria Amada, ilustradas magnificamente a bico de pena por meu irmão Pulika. Resolvi também acrescentar uma longa sessão de depoimento, que entram como anexo no livro.

 

10.Gostaria de acrescentar alguma coisa?

Uma breve palavra sobre a CNBB. Estamos enfrentando uma situação difícil onde núcleos de direita atacam diretamente a CNBB e três bispos, entre os quis o de Juiz de Fora saem do circuito de defesa do documento oficial, isso em nome de uma obtusa defesa da tradição. Estamos aí de novo no campo do apego aos penduricalhos, da fixação na espuma do mar e não na realidade de suas aguas mais profundas. O que me vem em mente, com emoção foi a fala de Dom Celso Queiroz, falando do sofrimento da CNBB na defesa das causas libertadora, em particular  está disposto as CEBs naqueles tempos duros da repressão. E dizia: “A Igreja nas bases encontrou exigências maiores de participação e com maior intensidade, e não é tão claro se a igreja institucional ou o episcopado está disposto, como corpo, a compreende isso e acompanhar,”[50]



[1]Marco POLITI. Francesco tra i lupi. Il segredo de una rivoluzione. Bari: Laterza, 2014.

[2]Marco POLITI. Francesco tra i lupi, p. p. 194-195.

[3]Karl BARTH. Dogmatica eccclesial. Bologna: EDB, 1990, p. 50-51.

[4]PALAVRAS do papa no Brasil. São Paulo: Paulinas,2013, p.23-25. 

[5]Papa FRANCISCO. Exortação apostólica Gaudete et exsultate. Sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulina, n. 112. 

[6]Papa FRANCISCO. Exortação apostólica Gaudete et exsultat, n. 135.

[7]Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 129.

[8]Vittorio MESSORI & Joseph Razinger.  Raporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline,1985.

[9]Paulo  VI. Exortação apostólica Evanelii nuntiandi.  A evangelizaçãoo no mundo contemporâneo. 2 ed. Petrópolis: Voze,1976, n. 18.

[10]FABC. O que o Espírito diz às igrejas. Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000, p. 46.

[11]Papa FRANCESCO & Eugennio SCALFARI. Dialogo tra credenti e non credenti.

[12]Paul TILLICH. Teologia sistemática.5 ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005, p. 687.

[13]Papa FRANCISCO & Antonio SPADARO (Entrevisa exclusiva). São Paulo: Loyola, 2013m 26-27. Tema também presente em Eckhart: Alois M. Haas. Introduzione a Meister Eckhart. Fiesole, Nardini, 1997, p. 22-23. Na visão de Eckhart, é necessário “passar por todas as coisas colhendo Deus em todas elas, e deixar  que isso se irradie em nosso mundo interior”; op.cit., ip. 23.

[14]Papa FRANCISCO & Antonio SPADARO (Entrevisa exclusiva), p. 68

[15]Ibidem, p. 56. Ver também: Karl Rahner. Amar a Jesus, amar al hermano. Santander: Sal Terrae, 12983, p, 94-95.

[16]Karl RAHNER. Sollecitudine per la Chiesa. Nuovi Saggi VI. Roma: Paoline, 1982, p. 510 e 518.

[17]Vittorio MESSORI & Joseph Razinger.  Raporto sulla fede, p. 163. Curioso, Merton vai noutra direção, e aventa a hipótese de que o dialogador é alguém que “deve estar completamente aberto à vida e à nova experiência por ter utilizado integralmente sua própria tradição e a ter ULTRAPASSADO”: Thomas MERTON. O Diário da Ásia, p. 248.

[18]Thomas MERTON. O Diário da Ásia. Belo Horizonte: Vega, 1978, p. 274.

[19]Em seu diário, com data de 28-30 de abril , trata o tema das religiões não-cristãs. O teólogo garantia – para a alegria de Daniélou – que demandaria todos os esforços para barrar a visão mais aberta de certos teólogos (veja Rahner) e demarcar com segurança a ideia do cristianismo como caminho extraordinário de salvação: Henri de LUBAC. Carnets du Concile II. Paris: Cerf, 2007, p. 394-395. Ver ainda: Ilaria MORALIA. La salvezza dei non cristiani. L´influsso di Henri de Lubac sulla dottrina del Varicano II. Bologna: EMI, 1999, p. 98-99.

[20]PAULO VI. Exortação apostólica evangelii nuntindi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo. 2 ed. Petropolis, 1976, n. 53.

[21]Congregação para a Doutrina da Fé. Carta aos bispos sobre alguns aspectos da igreja entendida como comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992.

[22]Ibidem, p. 23 (n. 17).

[23]João Paulo II. Carta apostólica de João Paulo II sobre a preparação para o ano 2000 (Tertio millenio adveniente), n. 39.

[24]JOÃO PAULO II. Terrtio millenio adveniente. Carta apostólica de João Paulo II sobre a preparação para o ano 2000.

[25]Comissão Teológica Internacional. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 1997, n. 103. Na comissão redacional desse documento estava o prof. Mário de França Miranda, professor de teologia da PUC-RJ.

[26]Ibidem, n. 84-85.

[27]Ibidem, n. 56.

[28]CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000, n. 7.

[29]CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Documenta. Inde a code Vaticano Secundo expleto Edita – 1966-205. Libreria Editrice Vaticana, 2006

[30]Giancarlo ZIZOLA. Benedetto VI. Un sucessore al crocevia. Milano: Sperling & Kupfer Editore, 2005,p. 409-

[31]Faustino TEIXEIRA. Dimensão espiritual do diálogo inter-religioso. Tempo Brasileiro, n. 183 – out/dez 2010 (Dossiê Diálogo Interr-religioso).

[32]Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso.  São Paulo: Paulinas, 1999. Foi eu que consegui convencer as irmãs Paulinas a providenciar a tradução e encontrei uma professora aqui de Juiz de Fora, Marcia de Almeida, do Departamento de Italiano, que procedeu metade da tradução, seguida de Euclides Balacin. Atuei igualmente como Assessor da tradução.

[33]Dupuis sempre seguiu a preciosa pista de Karl Rahner em distinguir a trindade econômico- salvífica da trindade imamente, essa sim abstrata e produtora de uma metafísica quase ininteligível. Karl RAHNER. Teologia dall´experience dello Spirito. Nuovi Saggi VI. Roma: Paoline, 1978, p. 369-374.

[34]Gerard O´CONNEL. “Il mio caso non è chiuso”, p. 335. 

[35]Ibidem, p. 345.

[36]Ibidem, p. 352-253.

[37]Ibidem, p. 356.

[38]Ibidem, p. 363.

[39]Trata-se de Frei Eliseu Lopes (OP), que depois seguiu seu trabalho como leigo, junto de sua companheira Vera.

[40]Carlos Rodrifues BRANDÃO. Quem fomos nós? Quem somos agora. Sobre alguns silêncios e alguns assombros a respeito de territórios e caminhos interiores de fé e de destino. Numen,v. 17, n. 1, p. 297-348, 2014 (a citação está na p. 325).

[41]Yves CONGAR. Jounal d´un théologien 1946-1956. Paris: CERF, 2000, p. 267. 280, 242

[42]Eugen DREWERMANN. Funcionários de Deus.Mem Martins: Inquerito, 1989.

[43]Raimon PANIKKAR. Il Cristo sconosciuto dell ´induismo. Milano: Jaca Book, 2008, p. 21

[44]Pierre SANCHIS. Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992, p.33.

[45]Pierre Sanchis. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Pierre Sanchis et al. A dança dos sincretismos. Comunicações do ISER, n. 45, Ano 13, 1994, p. 7.

[46]Marco LUCCHESI. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro/São Paulo. Record, 2000, p. 57.

[47]Sérgio BRISSAC. A estrela do norte iluminando até o sul. Dissertação de Mestrado – UFRJ – Museu Nacional. Rio de Janeiro, 1999, p. 73-74.

[48]Raimon Panikker. L´agua della goccia. Framenti dai Diari. Milano: Jaka Book, 2018, p. 75.

[49]Ibidem, p. 155.

[50]INSTITUTO Nacional de Pastoral (Org). Pastoral da Igreja no Brasil nos anos 70. Caminhos, experiências e dimensões.Petrºopolis: Vozes, 1994, p. 40-45 ( Dom Celso Queiroz).

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