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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Frestas para pensar num para além do excepcionalismo humano

Frestas para pensar num para além do excepcionalismo humano

Faustino Teixeira

           Se estamos desejando pensar para além do antropocentrismo, o estudo que envolve a percepção do valor característico dos animais se faz mais do que necessário. Lembro aqui os trabalhos essenciais de Donna Haraway e Vinciane Despret. Essa última autora tem se dedicado a refletir sobre o traço da inteligência e sensibilidade dos animais. Ela sublinha que temos hoje uma etologia dos golfinhos, ursos, lobos, elefantes e pássaros. Mas falta ainda, diz ela, estudos mais aprofundados sobre as vacas e os porcos. Indica a existência de uma “impressionante reserva de saber” a ser desenvolvida sobre os animais. Cito aqui o seu belo livro: “Être Bête”  (Actes Sud, 2007), publicado em colaboração com Jocelyne Porcher.

            No Brasil, acompanho de perto o excelente trabalho realizado por Maria Esther Maciel, que organizou o livro, “O animal – Ensaios de zoopoética e biopolítica”(Editora UFSC, 2011). Ao final do livro ela recolhe uma longa entrevista realizada por Sandra Azerêdo com Donna Haraway. Na entrevista aparece o belo conceito introduzido pela antropóloga americana: “espécies companheiras” (companion species). Ao longo da conversa, Vinciane Despret vem citada, em razão de assinalar o traço de subjetividade dos animais. Ela diz: “a capacidade para a subjetividade não é algo a ser procurado na natureza de um ser (...), mas algo tornado possível, talvez inventado, nos processos através dos quais os seres ´tornam uns aos outro capazes` de alguma coisa que é talvez nova no planeta Terra”. É o caminho que se abre, fabuloso, para romper com a ideia da excepcionalidade humana. Haraway sublinha, admirada, o fato de estarmos implicados e emaranhados na teia da vida: nós com todas as criaturas da Terra. E acrescenta: “Ainda me faz vibrar o fato de que a folha da ameixeira e minha carne compartilham uma grande parte de nossos genomas e também seguem nossos próprios caminhos inimitáveis geneticamente e em outros aspectos”.

            Em outro livro de Maria Ester Maciel, Literatura e animalidade (Civilização Brasileira, 2016), ela aborda de forma esplêndida a presença dos animais na literatura brasileira. Ela chama de zooliteratura. Recorrendo à ficção minimalista de Rosa, Maciel chama a atenção para o lugar dos bois em sua literatura. Cita, por exemplo, o conto “Entremeio com o vaqueiro”, que está inserido no livro póstumo, “Estas histórias” (1969). São magníficas as conversas relatadas entre Rosa e José Mariano da Silva, por ocasião de uma viagem de Rosa ao Pantanal do Mato Grosso em 1952. Mariano era alguém que conhecia os nomes de cada boi ou vaca, e fala deles como se falasse de grande amigos. Chega a dizer em certo momento: “Aqui o gado é que cria a gente”. 

            Maciel louva Rosa pelo carinho com que aborda os animais em seus contos e romances, inclusive considerando-os como “sujeitos dotados de sensibilidade, inteligência e conhecimentos sobre o mundo”. Não é sem razão que vem reconhecido como “o maior animalista da literatura brasileira do século 20”. Dizia Rosa que “amar os animais é aprendizado de humanidade”. Exemplar também é o conto “Meu tio Iauaretê”, que trata da estória de um onceiro que, “de tanto conviver com as onças, acaba por interagir com elas, assumindo suas características (unhas, cheiro, braveza etc.)”. Relato aqui uma das passagens mais interessantes do conto:

“Onça pensa só uma coisa – é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá comendo, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... Quando algûa coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar. Daí, só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual, feito em antes...”

            Se Rosa foi grande animalista, Machado de Assis foi seu precursor, como lembra Maciel. Foi ele um dos primeiros no Brasil a elogiar o vegetarianismo e nos advertir sobre nossa tremenda dificuldade em falar sobre os animais. Maciel cita uma passagem do romance Quincas Borba, onde o narrador tenta captar o fundo do olhar de um cão.  É um olhar que “parece traduzir alguma coisa, que brilha lá dentro, lá muito no fundo de outra coisa que não sei como diga, para exprimir”. Isto me fez lembrar um poema de Rilke, belíssimo, que fala do olhar da pantera no Jardin des Plantes de Paris. Rilke sublinha: “De tanto olhar as grades seu olhar / esmoreceu e nada mais aferra. / Como se houvesse só grades na terra: / grades, apenas grades para olhar”. Em outro conto, lembrado por Maciel, “Idéias de Canário” (1963), Machado descreve a conversa de um ornitólogo com um canário preso na gaiola. A conversa gira em torno de uma pergunta feita pelo narrador, indagando se o canário tinha saudade do espaço azul e infinito. O canário não conseguia decifrar para o especialista o que era o “espaço azul e infinito”. O ornitólogo então compra uma nova gaiola, ampla e arejada, e mais tarde repete-lhe a pergunta. O canário responde dizendo que para ele o espaço era “um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima”. A visão tinha se ampliado... Ocorre que depois o pássaro foge, e mais tarde o ornitólogo encontra-o e repete a pergunta. Como resposta, ouviu: “O mundo, conclui solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”.

            Outros grandes nomes da literatura brasileira, como Clarice Lispector, debruçam-se sobre a riqueza da animalidade e apontam caminhos importantes e novidadeiros para a reflexão sobre o tema. Vemos assim toda uma linhagem de escritores, de toda parte, que estão “atentos à complexidade das relações entre homens e animais”, direcionando nosso olhar e reflexão para aquilo que Deleuze e Guattari tão admiravelmente definiram como “devir animal”.

            

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