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quinta-feira, 26 de março de 2020

Essas pessoas na sala de jantar

ESSAS PESSOAS NA SALA DE JANTAR

Faustino Teixeira

Fico extremamente feliz ao perceber que os articulistas brasileiros começam a explicitar que esse problema do coronavírus tem a ver com nossa ação predatória sobre a Terra. Não há há como dissociar o que vem ocorrendo com essa expansão do vírus com a dinâmica do Antropoceno.

Nesse sentido, o fabuloso livro de Isabelle Stengers, "No tempo das catástrofes" (2009) ganha uma atualidade impressionante. O seu grande valor foi apontar um outro lado de "Gaia" que nem sempre está presente na nossa visão romântica: da Gaia Mãe, da Gaia Protetora. O que Stengers nos apresenta é uma face bem mais complexa e "ameaçadora":

Gaia, diz Stengers, é uma mãe mais "irascível, que não se deve ofender. E ela é anterior à época em que os gregos conferem a seus deuses o sentido do justo e do injusto, anterior à época em que eles lhe atribuem um interesse particular por seus próprios destinos. Tratava-se, antes, de ter cuidado para não ofendê-los, para não abusar de sua tolerância".

Gaia, na verdade, vem hoje abordada por um grupo de filósofos, antropólogos e biólogos, como "um ser". E a autora continua: "Já não estamos lidando com uma natureza selvagem e ameaçadora, nem com uma natureza frágil que deve ser protegida, nem com uma natureza que pode ser explorada à vontade."

Como relata Stengers, "a hipótese é nova. Gaia, a que FAZ INTRUSÃO, NÃO NOS PEDE NADA, sequer uma resposta para a questão que se impõe. Ofendida, Gaia é INDIFERENTE à pergunta ´quem é responsável?`e não age como justiceira - parece que as primeiras regiões da Terra a serem atingidas serão as MAIS POBRES DO PLANETA, sem falar de todos esses viventes que não têm nada a ver com a questão".

Mais adiante, Stengers sublinha que "teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas (...). Não haverá resposta se não aprendermos a articular luta e engajamento nesse processo de criação, por mais hesitante e balbuciante que ele seja".

Em linha de fina sintonia com a reflexão de Stengers, Eliane Brum em artigo do El Pais (25/03/2020), toca na nervura da questão:

"A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O INIMIGO SOMOS NÓS. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra."

Vamos então, gente, tentar tratar essa complexa e dolorosa questão do coronavírus a partir desta nova perspectiva. Temos, sim, que mudar o nosso modo de habitar a Terra, pois senão outras epidemias, ainda mais violentas e necrófilas, estarão nos aguardando...

E outras quarentenas virão, ainda mais longas, para serem vividas em nossas salas de jantar:

"Essas pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer"

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