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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Francisco e o desafio dos povos da Amazônia

Francisco e o desafio dos povos da Amazônia

Faustino Teixeira

Questões relacionadas à teologia do pluralismo religioso reaparecem quando analisamos determinados discursos ou documentos do magistério eclesial católico. Verificamos como a teologia do acabamento permanece vigente, ainda hoje, embora já visualizamos horizontes importantes de mudança nesse campo. Impressiona-me, por exemplo, o discurso do papa Bento XVI, na sessão de abertura dos trabalhos da V Conferência de Aparecida, em São Paulo (13/05/2007). Ali ele dizia:

“O que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção”.

Essa visão teológica de Bento XVI estava também arraigada no pensamento de João Paulo II. Veja o exemplo contundente na Carta Encíclica Redemptoris Missio, sobre a validade permanente do mandato missionário (1990). A mesma ideia de acabamento e remate, favorecido pela novidade do evangelho:

“Ao anunciar Cristo aos não-cristãos, o missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela ação do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à libertação do pecado e da morte” (RM 45)

Na linha desta percepção, o batismo seria o sacramento que operaria “um novo nascimento do Espírito”, instaurando “vínculos reais e inseparáveis com a Trindade” (RM 47)

Por diversas vezes em meus textos contestei este tipo de posicionamento, buscando caminhos novidadeiros para esta reflexão.

Ao ler esses dias o belo discurso do papa Francisco no encontro com os povos da Amazônia, durante sua viagem ao Peru, em 19 de janeiro de 2018, verifiquei o influxo do Documento de Aparecida em trechos de sua reflexão. Veja em especial os números 529 e 531 do documento mencionado.

O discurso é marcado por um espírito de grande abertura. Há passagens magníficas que sinalizam um novo passo. Fala do “rosto plural”, de “variedade infinita” marcando a caminhada destes povos da Amazônia: “Nós, que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar – sem o destruir – no tesouro que encerra esta região”.

O papa fala com contundência das ameaças que cercam estes povos: um território em disputa, com a violenta ideologia extrativa e a enorme pressão de grandes interesses econômicos. Fala da “perversão” presente nas políticas que pretendem promover a “conservação” da natureza; fala ainda do grave problema do “tráfico de pessoas”.

Após relatar as ameaças sofridas, Francisco reitera a importância dos esforços para “gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos, assumindo e resgatando a cultura, a linguagem, as tradições, os direitos e a espiritualidade que lhes são próprios”. Sublinha que iniciativas alvissareiras encontram-se já em campo, com os povos originários assumindo o protagonismo da luta em favor do “bom agir” e do “bom viver”. Povos que assumem a responsabilidade essencial de serem os guardiães da Casa Comum.

Para Francisco, estes povos não podem ser considerados “uma minoria, mas autênticos interlocutores”. Rompe-se, assim, aquela ideia perversa de que os brancos ocidentais são os “donos absolutos da criação”. O papa já havia falado sobre isto na Laudato si, quando questionou o “antropocentrismo despótico que se desinteressa das outras criaturas” (LS 68); e agora retoma o argumento:

“É urgente acolher o contributo essencial que oferecem à sociedade inteira, não fazer das suas culturas uma idealização dum estado natural nem uma espécie de museu dum estilo de vida de outrora. A sua visão de mundo, a sua sabedoria têm muito para nos ensinar a nós que não pertencemos à sua cultura. Todos os esforços que fizemos para melhorar a vida dos povos amazônicos serão sempre poucos”.

Essa cultura dos povos originários, como assinala Francisco, é “sinal de vida”.

Temos aqui uma reflexão extraordinária, que se associa a importantes reflexões no campo da antropologia. Vale lembrar a reflexão feita por Eduardo Viveiros de Castro no prefácio do precioso livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2015): “Como observou Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um ´retorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietações, as quais percebemos subitamente, não serem assim tão infundadas`”.

Na parte final do discurso de Francisco aos povos da Amazônia aparece então o tema da missão. E aí o “espírito” de Aparecida vem retomado, com traços que são, alguns positivos, mas outros problemáticos, ao menos na minha mirada. Vejo como pertinente a ideia de que certos missionários e missionárias comprometeram-se vivamente com os povos indígenas, na defesa de sua cultura, e o fizeram “inspirados no Evangelho”. Quanto a isto, não tenho dúvida. Mas nem sempre assim ocorreu, como sabemos bem. As descrições tecidas por Davi Kopenawa em seu livro sobre a ação dos missionários protestantes são impactantes, sobretudo na parte que aborda “a fumaça do metal”. Isto ocorreu igualmente na ação de missionários católicos.

O influxo de Aparecida, em linha de sintonia com a perspectiva do acabamento, aparece em trecho ao final do discurso de Francisco: “Não sucumbais às tentativas em ato para desarraigar a fé católica dos vossos povos”. Neste ponto, tenho minhas particulares dificuldades. O desafio não está em manter a fé católica viva, mas em buscar ouvir, captar e defender a dignidade da diferença. A inculturação se processa não apenas traduzindo o evangelho numa nova  perspectiva, mas em sondar os traços originais e novidadeiros presentes na cosmovisão do outro, o que ajuda a delinear novos contornos para a fé cristã, sem que isto signifique em momento algum apagar a singularidade do outro. É assim, a meu ver, que se busca construir uma igreja diferente, com rosto amazônico e indígena.



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