Livro da semana   Rûmî:   Faustino e Lucchesi   Entrevista   com Faustino Teixeira e Marco Lucchesi:Rûmi: um dos místicos mais abertos à   cortesia e hospitalidade inter-religiosos   Faustino Teixeira, professor e   pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da   Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF), e o poeta Marco Lucchesi concederam a entrevista que segue, por e-mail, sobre o livro que   acabam de lançar pela Editora Fissus, intitulado O canto da unidade. Em torno da poética do Rûmî. Faustino Teixeira é doutor e   pós-doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Ele   é autor de vários livros sobre a teologia do diálogo inter-religioso. É um   dos grandes parceiros do IHU. Entre suas obras citamos os livros, por ele   organizados, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006) e As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com   Renata Menezes. Pierre Sanchis fez uma resenha deste livro que foi publicada na revista   IHU On-Line, número 195, de 11-09-2006. Confira, também, uma entrevista com   Faustino na edição 209 da IHU On-Line, com o tema “Por que ainda ser cristão?”; uma resenha feita por ele sobre o filme O grande silêncio, publicada na   edição de número 212 da revista IHU On-Line, de 19-03-2007; e   uma entrevista sobre a Teologia da   Libertação, publicada edição número 214 da IHU On-Line de 2-04-2007. Marco Lucchesi é graduado em   História pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor em Letras   (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e   pós-doutor pela Universidade de Colônia. Atualmente, é professor adjunto da   Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras,   com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente com temas que envolvem   filosofia, literatura italiana, neoplatonismo e teoria literária. Lucchesi é   autor de vários livros, entre os quais citamos A sombra do amado (Rio de Janeiro:   Fisus, 2000); Caminhos do Islã (Rio de Janeiro: Record, 2002); e Esphera (Rio de Janeiro: Record, 2003). Sobre o poeta e místico Rûmi, confira a edição especial da IHU On-Line número 222, de 04-06-2007, cujo tema de capa é intitulado Rûmî. O poeta e místico da dança do Amor e da   Unidade. Nessa edição, leia as entrevistas   concedidas por Faustino Teixeira, “Rûmî é o   poeta da dança da Unidade”, e por Marco   Lucchesi, “Rûmî se utiliza do poder soberbo   das metáforas”.   “Hei de lançar-me bêbado sem medo
a contemplar a   alma do universo:
ou meus passos se apressam ao destino,
ou perco a vida,   além do coração” (Rûmî) IHU On-Line - Qual é a atualidade da poética de Rumi?
Faustino   Teixeira - A poesia tem a força fabulosa   de transformar a função natural das palavras. Na transmutação poética, a   palavra destaca-se de sua função natural de reproduzir as coisas e deixa-se   guiar pelas asas da imaginação criadora. Michel de Certeau  fala em   “manipulação técnica”, mediante a qual as palavras se vêem atormentadas para poder   dizer aquilo que literalmente não podem expressar. A poesia tem esse poder   encantador de dar asas à imaginação para poder expressar o “rumor das   coisas”, e se aproximar da “matéria volátil e incandescente da vida”. A   poesia mística de Rûmî tem esse maravilhoso dom de nos despertar para o Real   ensolarado que se camufla no coração de toda realidade. Ele diz num de seus   mais lindos poemas, que “dentro deste mundo há outro mundo impermeável às   palavras”. Para acessar esse mundo, é necessário ter um coração polido e   transformar a paisagem interior. Há que lavar as mãos e o rosto “nas águas   deste lugar” para poder sorver a riqueza de cenários que são   inusitados.  É importante essa educação da sensibilidade para poder   lutar contra um mundo marcado pelo “desgaste da compaixão”. O que é sempre   atual na poética de Rûmî é a convocação ao amor. A seu ver, é a chama do amor   que mantém a perseverança dos buscadores e faz despertar em seu coração o   “perfume do Sedutor”. É a flama do amor que possibilita aos “amigos de Deus”   captar o “perfume difuso” do Mistério maior que se espraia pela criação e   história, convocando-os ao dinamismo de hospitalidade e solidariedade. IHU On-Line - O que essa poética pode ensinar ao homem   contemporâneo em termos de cultivo do espírito? 
Faustino Teixeira - O grande líder religioso mundial Dalai Lama    tem mostrado de forma muito clara a importância da distinção entre   espiritualidade e religião. A espiritualidade relaciona-se com qualidades   específicas do espírito humano, que podem ser desenvolvidas em alto grau   também em pessoas não religiosas. São qualidades como a cortesia, o amor, a   compaixão, a delicadeza, o cuidado, a hospitalidade, a solidariedade etc. Na   poética de Rûmî, todas essas qualidades estão presentes de forma muito rica e   trazem um ensinamento muito preciso aos nossos contemporâneos. Para ele, e   tantos outros místicos de tradições diversificadas, o coração é a porta de   entrada para a percepção do Real, é o órgão sutil, por excelência, da   percepção mística. Não há como cultivar o espírito sem o trabalho incessante   e diuturno de purificar o coração. Como diz o evangelho de Mateus, os “puros   de coração” verão a Deus (Mt 5,8). Em várias passagens de sua poética, Rûmî   sinaliza que os puros de coração mostram-se capazes de acolher a diversidade,   de atuarem movidos pelos dons do cuidado, da generosidade e da delicadeza   para com os outros.  Os valores que se desdobram da “lógica do coração”   são bem diversos dos contra-valores que dominam hoje na racionalidade do   mercado: a competição, a produtividade, o sucesso, o individualismo, o lucro,   a vantagem a todo custo e o consumismo. Nesse sentido, a poética de Rûmî   aponta para um horizonte distinto. IHU On-Line - Rumi dizia que o espírito não está confinado aos   limites da identidade, não sendo nem judeu, cristão ou muçulmano. Como essa   idéia pode fomentar o diálogo inter-religioso na atualidade? 
Faustino   Teixeira - Há um belo poema de Rûmî, no   divan de Shams de Tabriz, no qual ele diz que não se reconhece como cristão,   judeu ou muçulmano; nem como alguém do Ocidente ou do Oriente, nem “das   minas, da terra ou do céu”. Não se reconhece como sendo feito de terra ou   argila, mas como alguém que habita na sombra do Amado. Ele sinaliza que o seu   lugar é o “não-lugar”, que venceu o dois e segue sempre a cantar e buscar o   Um. O seu canto e sua dança traduzem a sede da Unidade. Não existem para ele   nós ou vínculos que o impedem de sonhar com a ecumene universal. Talvez seja   um dos místicos mais abertos à cortesia e hospitalidade inter-religiosos. O   que mais importa para ele não são os nomes e a as formas, o que é espuma e   está na superfície. Sua sede mais funda é da água pura, das qualidades mais   profundas, que tocam a essência que está para além dos namarupa (nomes e   formas). São qualidades que estão presentes e vivas em todo coração generoso   e aberto, ainda que suas expressões não se adequem às regras das ortodoxias.   Em passagem muito citada de seu mathnawi, Rûmî destaca o valor da oração   simples e afetuosa de um pastor, animada por um coração que arde de amor. Ela   se faz mais importante que muitos ritos enclausurados em sua exterioridade. E   assinala que os verdadeiros mergulhadores não precisam de sapatos. 
  
IHU On-Line - Como o amor enquanto presença e   ausência se faz notar nas obras do poeta?
Faustino Teixeira - Para Rûmî, o amor é a expressão mais clara da sede   metafísica que anima os amantes em sua busca do Mistério maior,   simultaneamente transcendente e imanente (tashbih e tanzih). É a flama do   amor que inspira a flauta de bambu (ney), arrancada de sua raiz, a desvelar   os segredos mais íntimos do Amado criador de todas as coisas. O tema do amor   está presente tanto em sua produção poética como na sua prosa. O ser humano,   como a cana de bambu (flauta), traz consigo o grito de alguém que foi   destacado de sua fonte, mas que anseia pela integração no mistério do Uno. É   nesta árvore da Unidade que o ser humano pode encontrar a verdadeira paz. Na   visão de Rûmî, mesmo sem poder compreender o mistério desta árvore, é na sua   sombra que se desvela um caminho alternativo: “Se não posso compreender que   árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu   coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar à sua   sombra”. IHU On-Line - Leonardo Boff  aproxima São Francisco e Rumi em   função de suas experiências místicas radicais. Em que sentido podemos   reinterpretar essas duas trajetórias a fim de resgatar a autenticidade do   homem reencontrado com o cosmos?
Faustino Teixeira - Rûmî e São Francisco  são contemporâneos.   Quando Rûmî nasceu, São Francisco tinha 26 anos. Os dois viveram quase no   mesmo período. Mesmo sendo de lugares diferentes, Pérsia e Itália Central,   partilharam de valores e ideais muito semelhantes. Como sublinhou Boff,   “ambos são expressões notáveis do tempo do eixo ou do Espírito no mundo”. Os   dois foram portadores de uma missão kairológica, de um tempo seminal, grávido   de esperança, vida e hospitalidade. Os dois nunca se encontraram, mas muitos   pontos comuns os irmanam, como o amor pelos mais simples, a humildade   radical, a pobreza e a paixão pelo cosmo sagrado. 
 
IHU On-Line - Quais foram os ecos do lançamento do livro O   canto da Unidade?
Faustino Teixeira - O livro foi lançado no dia 18 de outubro, no Rio de Janeiro, na   livraria Letras e Expressões (Leblon). Foi um evento marcado por muita   alegria e informalidade. Estavam presentes não só os dois organizadores do   livro, Marco Lucchesi e Faustino Teixeira, como também dois dos autores de   artigos publicados no livro: Leonardo Boff e Mário Werneck . 
Não há como   deixar de destacar o resultado do trabalho editorial de Armando EriK e sua   equipe (editora Fissus). O livro apresenta uma capa extremamente feliz, de   autoria de Daniela Cronolly de Carvalho, e uma apresentação gráfica de   primeira qualidade. Vale também destacar o lindo texto de Pablo Beneito    e Pillar Garrido  que apresentam a obra. IHU On-Line - Quais são as maiores dificuldades de se traduzir Rumi   e de tornar sua obra conhecida?  
Marco Lucchesi - São muitas e bem variadas. Primeiro o volume. Rumi   é um poeta oceânico. A vastidão de sua obra e a variedade das formas poéticas   assumidas representam algo comparável à obra de Dante  ou de Petrarca .   Depois, o problema do acesso às edições críticas e isentas de um emaranhado   de autoria e remissão. O trabalho monumental de Furuzanfar dá bem a idéia do   que vamos dizendo. Não fossem bastantes esses desafios, a língua de Rûmî   guarda uma extrema complexidade, que vai além do estudo da gramática persa,   mas que se localiza na riqueza de suas metáforas e alegorias, translatos,   similitudes inesperadas e remissões delicadíssimas. Finalmente, a música do   original e a sua releitura na língua de chegada, com a sua tradição poética.   Foi trabalho intenso em que a presença de Rafi Moussavi se mostrou   essencial.     IHU On-Line - Quais são as maiores peculiaridades de sua poética?   
Marco Lucchesi - A de uma   simplicidade absoluta, praticamente inatingível. Água pura. Água de fonte   cristalina. As metáforas surgem em estado larval. As imagens tomam um sentido   físico, táctil e visual. Como se víssemos a coisa. Mesmo quando não. Como se   a descobríssemos áspera e forte, mesmo como promessa de um estado que ainda   não se completa. Temos uma cascata de imagens. Imagem de imagem. Alusão de   alusão. Alegoria de alegoria. E o resultado muitas vezes não deixa de ser   vertiginoso, de saltos largos, de elementos que se mostram, de tão claros,   quase nebulosos.  A dialética do véu e do rosto. Quando muito o   primeiro. Raras vezes o segundo. Quase um suplício, de espera de   promessa.  E – como diria Machado – se nem sempre compreendemos, a culpa   é do leitor e não do poeta... IHU On-Line - Como percebe o uso de uma lógica não linear em seus   poemas?  O que essa poética pode ensinar ao homem contemporâneo em   termos de  cultivo do espírito?
Marco Lucchesi - A poesia mística não está além ou acima, ao lado ou   ao longe das categorias poéticas e de suas lógicas plurais. Deslocamentos.   Inversões. Dislates aparentes. Absurdos luminosos. Metonímias. E grandes   repertórios de metáforas. São elementos que pertencem à poesia mística e não   mística. E Rûmî permanece vivo e autônomo (diante de outras de suas inúmeras   facetas) como poeta de marca. E do muito que se pode aprender com ele,   Faustino Teixeira e Leonardo Boff já o disseram com acerto. E também Mário e   Heliane. Quanto a mim, penso que a leitura de Rûmî para o leitor atual é a de   um poeta que, pela beleza de sua obra, é tão ou mais contemporâneo do que   nós, e nos acena para um exercício de silêncio e abandono ativo, que   caracteriza a digital da poesia.           
 
 
 
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