Páginas

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Leão XIV: entre as inquietações do tempo e o desejo de unidade

  

Leão XIV: entre as Inquietações do tempo e o desejo de Unidade

 

Faustino Teixeira

IHU-Unisinos / Paz e Bem

 

 

Vivemos um momento novo na igreja católica com a presença do papa Leão XIV. Como mostrou Marco Politi, a sua eleição significou uma clara derrota dos segmentos ultra-conservadores presentes no conclave, e a escolha de um cardeal que igualmente veio do “fim do mundo”, decisivamente orientado para dar prosseguimento à renovação eclesial. 

 

Sua eleição foi facultada pela aliança entre os segmentos curiais moderados e o núcleo de cardeais “atentos à tradição mas abertos à necessidade de prosseguir gradualmente com as reformas eclesiais” em curso[1]. A eles soma-se o singular arco dos purpurados do Sul global, indicados por Francisco.

 

Ainda é cedo para fazer previsões definitivas sobre a sua presença no Vaticano, mas já podemos apontar algumas questões e indídícios do exercício de seu magistério como bispo de roma. 

 

Em artigo publicado no dia 19 de maio de 2025 no jornal italiano La Stampa, o teólogo Vito Mancuso apontou três eixos fundamentais que podem ser captados neste momento inicial do pontificado do papa Prevost[2]. São eles a inquietação, a unidade e o amor. Acho bem pertinente essa intuição de Mancuso com base no que estamos vendo até agora. 

 

De fato, também percebo a presença desses três eixos que vão delineando a marca de um pontificado. Na homilia de entronização de Leão XIV, na Praça de São Pedro, esses elementos estiveram claramente presentes. 

 

O papa começou sua reflexão falando de inquietação, com base em passagem das Confissões de Agostinho: “Fizeste-nos para ti, e o nosso coração não encontra repouso enquanto não repousa em ti”. Na conclusão de sua homilia, a questão vem retomada: de uma igreja que se deixa inquietar-se pela história.

 

Essa reflexão sobre a inquietação, me faz lembrar uma passagem muito rica do papa Francisco quando esteve no Brasil e numa de suas homilias,  na Basílica do Santuário Nacional de Aparecida (24/07/2013),  falou de três simples posturas que se colocam para a igreja: manter acesa a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria[3].

 

Acho essa homilia no Brasil um dos pontos altos da reflexão de Francisco. Quando o papa Leão XIV fala em inquietação, eu logo relaciono a questão com o “deixar-se surpreender por Deus” de Francisco. 

 

Estar inquieto é estar desperto e atento para ouvir os clamores de Deus na história, e sobretudo o grito dos pobres e da Terra. Uma igreja que vive aberta à inquietação, é uma igreja que se quer aberta ao mundo e à história. Vejo esse desafio como essencial. 

 

Isso foi muito bem percebido por Mancuso.

 

Porém, o desafio da inquietação deve ser, segundo Leão XIV, contrabalançado pela busca da Unidade. 

 

E aí vem, então, a tentação de manter regulada a igreja no domínio da tradição. 

 

Trata-se da busca de um equilíbrio, mas caso realizado sem perspicácia pode engessar a igreja num caminho difícil. Leão XIV tem mantido uma preocupação de resguardar a unidade, e para tanto, precisa manter as “rédeas” da igreja, sobretudo no âmbito ad-intra, salvaguardando os valores mais estabelecidos, e evitando ousadias no campo da pastoral.

 

As duas primeiras homilias de Leão XIV foram bem enquadradas, em linha de tradicionalidade: as duas foram celebradas sobretudo em Latim, com exceção das homilias[4]. E estavam igualmente ali todas as insígnias visíveis de ligação com o passado. 

Na homilia da primeira missa, dirigida aos cardeais eleitores, a visão teológica do papa tanto sobre Jesus como a igreja não revelou nenhuma novidade ou ousadia. 

 

O que vimos ali, foi o claro influxo de Leão Magno, e uma preocupação de fidelidade ao Concílio de Calcedônia: a visão de um Jesus divinizado e de uma igreja como arca essencial da salvação.

 

Do diálogo à doutrina: uma nova sinalização na conjuntura eclesial

 

Pensando aqui no momento atual do pontificado de Leão XIV. Ainda é cedo para avaliações mais precisas, mas fico preocupado com o acento que o novo papa vem dando ao termo “doutrina”, bem como “Unidade”. São duas expressões que marcam a sua entrada no pontificado. Os núcleos conservadores, como o Centro Dom Bosco, estão radiantes de alegria com os primeiros indícios que se manifestam. 

 

Cito aqui a recente remoção de Vincenzo Paglia do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família. Em seu lugar veio nomeado o cardeal Baldassare Reina, que é vigário geral de Leão XIV e Chanceler da Lateranense. 

 

Isso significa que Leão XIV está preocupado com os debates que aconteceram anteriormente, com Francisco, a respeito da família. Vale agora o seu novo mote: a família é fundamentada na “união estável entre um homem e uma mulher”. 

 

Vejo aqui um influxo, ainda que indireto, às pressões do cardeal Raymond Burke, do núcleo duro conservador, que sempre atacou Francisco nessa temática da família, e atual também no recente Conclave. Em dezembro de 2013, ele reagiu com firmeza contra uma entrevista de Francisco concedida à "Civiltà Cattolica".

 

Como lembrou um dos “intelectuais” do conservadorismo católico no Brasil, “a remoção da Paglia é um gesto claro de que Leão XIV pretende restaurar a integridade moral e doutrinária dos organismos da Santa Sé”. 

 

Há pressões para que mudanças também ocorram na secretaria geral e relatoria do Sínodo, bem como no Dicastério das Comunicações e no Dicastério para a Doutrina da Fé.

 

Há também insatisfações bem precisas com respeito à vigência da carta apostólica de Francisco, "Tradutionis Custodes", de julho de 2021, que restringe a celebração da missa tradicional em latim. Passos distintos com respeito a tal decisão de Francisco já começam a ser visibilizados. O que existe é, de fato, uma saudade do moto proprio "Summorum Pontificum", de Bento XVI (2007), que facultava aos padres celebrar a missa tradicional em latim. Penso que isso vai começar a ocorrer, com inspiração nas duas primeira missão de Leão XIV, onde o latim foi consagrado.

 

Assim como tivemos, no passado recente, o debate em torno ao diálogo e anúncio, com Bento XVI sublinhando a prioridade do anúncio, temos agora a preocupação do novo papa em retomar o lugar da “doutrina” católica. A prioridade agora é com a doutrina, mais do que com o diálogo. 

 

Vemos aqui a força e o peso de sua herança agostiniana.

 

Vimos isso com clareza em sua homilia na missa para os cardeais eleitores, quando firmou uma visão bem cristocêntrica, com ênfase na divindade de Jesus. 

 

Em discurso aos representantes de outras igrejas e comunidades eclesiais e de outras religiões, Leão XIV reiterou essa ênfase na doutrina. 

 

Chamou a atenção para a importância do “vínculo eclesial” quando se fala em encontro com a diversidade. 

 

Sinalizou com firmeza a ideia de unidade, que a seu ver “só pode ser a unidade na fé”. Mesmo reconhecendo que vai seguir a linha da sinodalidade de Francisco, Leão XIV vai, na verdade, priorizar a busca de unidade e não tanto de abertura plural. 

 

Ainda a respeito de sua preocupação com a doutrina católica, cito também aqui o discurso de Leão XIV aos membros da Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, no dia 17 de maio de 2025. 

 

Em seu discurso, o papa Prevost sublinhou que as palavras diálogo e doutrina não são incompatíveis. 

 

O papa busca em seu discurso apontar para um outro significado de “doutrina”, agora com base na Doutrina Social da Igreja. 

 

Enfatiza que esse novo significado de doutrina, entendida agora como “ciência”, “disciplina” ou “saber”, mostra-se essencial no momento atual. Sem tal compreensão, o próprio sentido de diálogo “se esvazia”. A seu ver, a doutrina não é uma opinião, mas “um caminho comum, coral e até multidisciplinar rumo à verdade”.

 

Como mostrou Mancuso em seu artigo, o “ponto crítico” do papa Prevost vai ser a forma como ele conseguirá solucionar a questão dessas duas dimensões: a inquietações do mundo e a unidade da igreja. Em síntese, “como se abrir às inquietudes do mundo e garantir a unidade da igreja”. Aqui entra a marca agostiniana do novo pontífice. Em semelhante linha de reflexão, o vaticanista Marco Politi, no seu blog, pontua que Leão XIV vai atuar como um “arquiteto”, buscando equilibrar os traços reformadores do pontificado de Bergoglio com o seu estilo particular, fiel à sua cultura teológica agostiniana, voltada a salvaguardar o “depósito da fé”[5].

 

Todos sabemos da visão tremendamente negativa da teologia da história de Agostinho: de um tecido marcado pelo peso do pecado original. Para Agostinho, quando o ser humano se deixa entregue a si mesmo, não consegue senão pecar. Toda a humanidade vem, assim, entendida como uma “massa damnata”, cujo único remédio é a graça de Deus. O pessimismo de Ratzinger deve-se, também, ao influxo de Agostinho: não nos esqueçamos. Essa visão agostiniana acaba por frear qualquer tentativa de avança pastoral que possa provocar “danos” à unidade da igreja. 

 

Em matéria publicada ontem – 18/05/25 – no O Globo[6], pudemos acompanhar as reflexões de Maria Clara Bingemer e Maria José Rosada, onde falaram sobre essa orientação agostiniana presente no novo papa, e suas possíveis consequências no âmbito da pastoral: com respeito ao tema das mulheres na igreja, a visão tradicional da família, a resistência aos desafios relacionados à comunidade LGBTQIA+ etc.

 

A esperança está, a meu ver, no imperativo essencial do AMOR, uma questão também muito presente na reflexão e, sobretudo, no testemunho de Prevost, reforçado por toda uma rica experiência no Peru. O seu carinho com os pobres, os migrantes, os desvalidos, pode ser, em verdade, o polo decisivo de seu compromisso pastoral nos próximos anos. Foi o que pudemos verificar igualmente no momento de abertura do pontificado, quando o papa se apresentou ao povo na sacada da Praça de São Pedro[7]. Ali vimos um bispo sensível, que começou falando da urgência da paz, de uma paz desarmada, humilde e perseverante. E de forma bonita, em espanhol, dedicou palavras singelas à sua comunidade no Peru. Ali ocorreram sinais de profecia, de um olhar atento a questões essenciais como os migrantes, os excluídos, os que sofrem e anseiam por alegria.  

 

Aí está, a meu ver, a possível surpresa de um pontificado atento aos sinais dos tempos. Trata-se do desafio de “deixar-se surpreender” pelos mistérios de Deus e firmar com tenacidade a aliança entre o Amor e a Inquietação com o ritmo do mundo. De forma vibrante, ao final de sua homilia na missa inaugural, bradou Leão XIV: “Irmãos, irmãs, esta é a hora do amor! A caridade de Deus, que faz de nós irmãos, é o coração do Evangelho”.

...

 

 



[1] Marco Politi. Ecco il programma di Papa Leone XIV: pace, unità e una stoccata agli ultra-conservatori:

https://www.ilfattoquotidiano.it/2025/05/19/papa-leone-xiv-programma-pace-ultra-conservatori/7993569/ (acesso em 20/05/2025).

[2]  Vito Mancuso: Leone XIV e il cuore inquieto della Chiesa aperta al mondo:

https://www.lastampa.it/cronaca/speciali/conclave/2025/05/19/news/leone_e_il_cuore_inquieto_della_chiesa-15152970/amp/(acesso em 19/05/2025)

[3] PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 23-26 (Santa Missa na Basílica do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida).

[5] Marco Politi. Ecco il programma di Papa Leone XIV.

[6] Yhayz Guimarães. Orientação agostiniana de papa levanta dúvidas entre progressistas. In: O Globo, 18/05/2025 – Mundo, p. 26.

Nenhum comentário:

Postar um comentário