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sábado, 31 de dezembro de 2022

Passagens do ano, passagens de vida

 Passagens de ano, passagens de vida

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

Em artigo publicado no O Globo de 29/12/2022[1], Eduardo de Freitas Filho fala sobre os casos de depressão que ocorrem nos finais de ano, evidenciando uma síndrome que se repete nesses momentos de passagem. 

 

São crises de ansiedade e depressão que ocorrem sobretudo depois do Natal, perdurando até o início do novo ano. 

 

Em 2022 a situação se agravou com os conflitos que envolveram as famílias com as divisões políticas que marcaram esse tempo, com quebras de laços de família. 

 

Como diz o autor, ter que permanecer ao lado de pessoas que conflitamos, de uma forma ou outra, “pode libertar sentimentos ruins guardados há tempos, se transformando em raiva, agressividade e aversão”. 

 

Laços abalados ou desfeitos requerem tempo para o trabalho pessoal de recomposição das harmonias. 

 

A cada ano novo somos colocados diante de nosso futuro, e para muitos isso não é tarefa fácil, sobretudo quando o caminho se vê nublado ou embaçado: 

 

“O problema é como lidar com isso, como encarar os gatilhos que a vida pode trazer para avaliar o ano e não ficar frustrado ou chateado com o que conseguiu ou não conseguiu” ao lado do tempo que passou e do caminho que se anuncia.

 

Quando ocorrem esses festejos pontuados por alegria nem sempre  real, vem-me à recordação o duro livro de Philip Roth, “O animal agonizante”[2], que trata justamente do tema de uma impossível felicidade diante da fragilidade de cada um de nós, sobretudo para aqueles que vivem a proximidade da morte. 

 

No romance, temos dois personagens que se encontram na proximidade da passagem de ano, e um deles – Consuela – que foi tão celebrada no passado como uma mulher única, vive uma dramática experiência de saúde. David Kepesh é o personagem masculino, que vem chamado por sua ex-amante, Consuela, para fotografá-la antes de uma operação nos seios, para retirada de um tumor. 

 

Ele relata: “´Não vou morrer daqui a cinco anos, talvez até nem mesmo daqui a dez anos, estou em forma, estou bem de saúde, posso até viver mais vinte`, enquanto ela...”[3].

 

O narrador, David Kepesh, sinaliza que “o mais belo dos contos de fada da infância é que tudo acontece na ordem certa. Nossos avós morrem muito antes dos nossos pais, e nossos pais morrem muito antes de nós. Os que têm sorte acabam tendo a mesma experiência, as pessoas vão envelhecendo e morrendo na ordem certa, de modo que, no enterro, você aplaca sua dor pensando que aquela pessoa teve uma longa vida. Nem por isso a morte se torna uma coisa menos monstruosa, mas esse é o truque que utilizamos para manter intacta a ilusão metronômica, e para afastar de nós a tortura do tempo”[4].

 

Kepesh continua sua reflexão, dizendo que Consuelo não teve essa sorte, e ali, ao seu lado, “condenada à morte, ela assiste àquela comemoração que se prolonga por toda a noite na tela da tevê, uma histeria infantil fabricada em torno do futuro infinito, uma fantasia que os adultos maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não podem nutrir. E nesta noite enlouquecida ninguém tem um conhecimento mais melancólico do que ela”[5].

 

Os dois junto, diante da tevê, assistem o espetáculo da passagem de ano em Havana. E ela, Consuele, chorando, lamenta não ter conhecido Havana.

 

Acho que é importante comemorar com alegria cada passagem de ano, mas sem deixar se levar pela “histeria infantil” diante da hipótese frágil e ilusória de um futuro infinito. Na realidade, o que existe mesmo, é a carência de qualquer substancialidade, como nos ensinam com razão os sábios do budismo. Quando falam em carência de substancialidade, estão apontando para um conceito fundamental que é o anatmam, ou seja a inexistência de substancialidade ontológica em qualquer ser. Algo também relacionado ao conceito de anitta, a impermanência, ou o traça movediço que caracteriza todos os fenômenos[6]

 

Quando falamos em carência de substancialidade estamos igualmente abordando outro tema fundamental do budismo que é a originação interdependente[7]. Todos os seres estão intimamente relacionados: são profundamente interdependentes. 

 



[1]Eduardo de Freitas Filho. “Síndrome do final de ano”. Casos de depressão e ansiedade crescem perto da virada. O Globo, quinta feira, 29/12/2022, p. 19.

[2]Philip Roth. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[3]Ibidem, p. 122.

[4]Ibidem, p. 122.

[5]Ibidem, p. 122.

[6]Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia andiana antiga. São Paulo: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 64.

[7]Ibidem, p. 63.

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