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sábado, 22 de outubro de 2022

As neblinas e o vapor do mal

 As neblinas e o vapor do mal

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Há tanto tempo estudando Grande Sertão:Veredas, tendo desvendar com cuidado e atenção o difícil tema do Mal e do Demo. 

 

Em minha viagem à Espanha, pude conversar profundamente sobre o tema com o amigo Pablo Beneito Arias, especialista em Ibn Arabi. Sua visão da positividade é incrível, e com o olhar da mística sufi é capaz de perceber para além do bem e do mal a presença de uma dinâmica da graça e misericórdia do grande mistério, que tudo envolve.

 

Eu, por minha vez, influenciado por Grande Sertão e pela leitura de Antonio Candido, em seu precioso artigo sobre "O homem dos avessos", vejo o ser humano como marcado profundamente por ambiguidade. 

 

Não consigo mais me deter naquela visão cristã, aprendida e desenvolvida na teologia, na qual capta-se no íntimo do ser humano a presença do bem. Vejo, agora, que ali no fundo estão juntos, entrelaçados, a "vozinha do bem" (o ponto virgem, como diz Hallaj, Massignon e Merton) e o "vapor do mal", como expresso por Rosa no GSV. 

 

Em passagem brilhante do texto de Antonio Candido sobre a ambiguidade do ser humano, do lado torvo ou crespo que o habita, entramos de cheio no grande paradoxo do livro GSV: ter que pactuar com o demo para alcançar o bem. Cito aqui o trecho de Antonio Candido:

 

"Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da Cavalaria sertaneja - cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributadas ao suserano - é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram outros chefes"

(A.Candido. O homem dos avessos. In: Eduardo Coutinho (Org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 303).

 

O momento decisivo do embate entre Diadorim e Hermógenes, em luta de morte, Riobaldo não pode fazer nada, uma vez tomado pela presença do demo... O que pode é apenas ver, do alto, a sangrenta luta de faca, onde a vitória sobre o cavaleiro felão se dá, mas, ao mesmo tempo, Diadorim também perde a vida. 

 

A dor que envolve Riobaldo depois do ocorrido provoca nele a decisão de deixar a jagunçagem, e vem salvo da depressão pela presença amorosa de Cumpadre Quelemém.

 

Estamos diante de um tema extremamente difícil, que tem irradiações profundas no momento político brasileiro em que vivemos. Estamos, radicalmente, diante da presença do mal, expressa pela figura tenebrosa de um presidente que se enquadra muito bem na imagem da sintonia com o mal. 

 

E um mal que vem corroborado por mais de 1/3 da população brasileira. A pergunta que fica para nós: em que medida teremos que, de alguma forma, fazer o pacto para vencer esse Hermógenes do tempo atual...

 

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