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sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Uma festa da amizade

 Uma festa da amizade – Juiz de Fora, julho de 2022 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Estar aqui na Faixa de Gaia, em Juiz de Fora, com esta gente querida provoca em mim uma emoção oceânica. Passamos juntos nesta tremenda pandemia fazendo das coisas mais bonitas que é debater literatura. O caminho escolhido não podia ser melhor: Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Com esses dois mestres da reflexão pudemos mergulhar no vasto oceano do real, debatendo temas que são essenciais e muitas vezes esquecidos: o mergulho interior, a ambiguidade do humano, a maldade que nos abate, os enigmas das relações, o chamado ancestral.

 

As aulas seguiam-se de aprofundamentos no grupo menor, que se reunia on-line depois da reflexão e então começava um momento bonito de trocas, de intimidade, de abertura do coração e de fortalecimento de uma amizade com gente bonita de todo lugar. Muito comovente para mim ter vivido esses momentos tão especiais. Vejo hoje com clareza que pude crescer interiormente nessa troca singela, gratuita e desarmada. 

 

Todos sabemos que vivemos tempos bicudos, de fechamentos identitários e fundamentalismos que graçam por todo canto. Construímos nos debates diques de fraternidade e amor, “gestos barreira”, como diz Latour. Que alegria ver os rostos de cada um, numa simpatia contagiante, numa sede de entendimento que ultrapassou o mero interesse acadêmico. Era um encontro de amigos que se abriam, que ousaram partilhar santuários de reflexões que não ocorrem no cotidiano normal.

 

Não era só sede de conhecimento ou ânsia de penetrar em domínios difíceis, era também vontade de estar junto, de sorrir em comum, de partilhar dores, às vezes profundas, apoiar-se mutuante, tudo suscitado pelas aulas semanais. Criamos um bonito “aparelho de conversa”, onde cada palavra, gesto, silêncio ocupavam o seu lugar de reverência e acolhida. 

 

Sim, acolhida, talvez tenha sido o mais bonito que aconteceu nessa ciranda que nos motivou a viver em profundidade uma amizade singular. 

 

Ao longo desse tempo de vivência comum, mesmo à distância, pude ganhar o impulso para refletir temas de profundidade inaudita; também a coragem para partilhar sentimentos e ideias nas redes comuns, coisa que não é fácil. 

 

Sinto que cresci nestes tempos de partilha e comunhão. Saio fortalecido para adentrar-me em veredas complexas, delicadas e difíceis. No grupo encontrei o importante apoio para aventurar-me em searas complicadas e resistentes, buscando vencer ou, pelo menos, lidar com as barreiras quase intransponíveis dos nefastos identitarismos.

 

Agradeço de coração a todas e todos queridos que estão aqui, ou aqueles que nos acompanharam generosamente nesta viagem de vida, mas não puderam estar conosco nestes dois dias maravilhosos. Sairei, certamente, com o brilho do olhar de cada um de vocês, desta vez podendo penetrar com mais beleza no mundo interior de cada um... e poder abraçar, dar as mãos, tão lembradas nos nossos cursos, e ver com a ocular sedenta, que cada um existe de fato, com a vocação de fazer a vida cada vez mais bela, acreditando que um novo mundo é possível, apesar de.

 

Relendo aqui as contribuições de todos que enviaram seus textos ecoando a riqueza da experiências desses anos, fiquei realmente emocionado. Nos dois dias em que estivemos juntos em Juiz de Fora, pudemos sorver que emoção cada palavra das mensagens redigidas pelos participantes das aulas. 

 

Alguns disseram que com todo o saldo negativo da pandemia, os encontros semanais proporcionavam um saldo de alegria e um caminho profundo para reflexões vitais. Disseram que com Clarice visitaram a Cidade Sitiada, e beberam também com emoção da Água Viva. A cada encontro um “novo acorde” para tecer a canção do amor, da fraternidade, da solidariedade, da hospitalidade e da delicadeza. 

 

As palavra de Clarice e Rosa eram música para o coração; palavras que teciam instantes mágicos de olhares sedentos. Alguém lembrou que a inquietude de Clarice contaminou a peregrinação, ecoando viva nos corações. A partir dos encontros, tudo virou motivo de atenção: os mínimos detalhes, nos sons da natureza, dos animais e das plantas. 

 

Durante os cursos, estávamos distantes, mas no encontro de Juiz de Fora, os corações ganharam uma proximidade inusitada, calorosa, vibrante... “Amizades e carinhos, distantes em quilometragem da Terra, mas perto, tão perto que operaram mudanças” nas agendas de cada um. Foi mesmo um “bálsamo” na vida de todos... tudo sendo pacientemente preparado nas aulas semanais e nos debates que se seguiam no grupo menor: foi “uma acolhedora companhia no isolamento social”; “momentos de leveza e doçura no meio do turbilhão da vida”. 

 

Muitos relataram suas transformações pessoais aos longos desse tempo, desde 2020, quando os cursos começaram. Alguém disse que Rosa ajudou a entender o seu passado e ancestralidade. Ajudou a situar os sobrenomes que se firmaram nos campos gerais, a reconhecer com alegria a “linguagem mineira”. Disseram ainda que não foi o grupo que escolheu o livro, mas o livro que escolheu o grupo, tocando a alma de cada um. Sobre o Grande Sertão: Veredas, disseram que é um livro precioso, em que se retorna sempre nos momentos de precisão, nos instantes importantes da vida. Um livro que projeta luz e esperança. Sem que se perceba bem, ele irradia “veredas verdejantes” que desanuviam “as tensões dos dilemas da vida”. 

 

Alguém chegou a falar em “tsunami” na vida. Na companhia de Riobaldo e do compadre Quelemém, muitos foram se abrindo para uma espiritualidade plural, onde o coração é capaz de acolher muitos amores: “muita religião, seu moço!”. Fora mesmo encontros maravilhosos, que agora continuam com os contos de Rosa. Debatendo Rosa e Clarice, cada um pode partilhar a vida pulsando, a música tocando, o sol se pondo... E ao final, pudemos todos verificar com alegria, que a vida segue, apesar de, segue nos rastros da luz... O desafio estar em viver cada dia sem maiores preocupações, enfrentando com dignidade e altivez os problemas, e sabendo levantar com garbo a cada queda no caminho: “Cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta... O que a vida quer da gente é coragem”.

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