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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Jesus e as outras religiões

 Jesus e as outras religiões

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Sou um profundo admirador do papa Francisco, todos sabem. Semanalmente posto mensagens suas, seja as da Audiência Geral, como a Angelus. Suas palavra encantam e provocam: trazem um sentido de vida que é simplesmente fantástico.

 

No campo do diálogo com as religiões, há momentos ricos em reflexões tecidas ao longo do seu pontificado.

 

Ontem, 21/08/22, porém, ele marcou presença numa perspectiva mais tímida, se pensarmos no desafio da abertura inter-religiosa. Sua fala no Angelus provoca dificuldades para os que trabalhamos com o tema do diálogo inter-religioso. Se for entendida como uma mensagem específica para os cristão, é possível celebrar sua fala, mas como a mensagem teve um tom universalista, já tendo a discordar, com todo o respeito. A reflexão é a seguinte:

 

"Pensemos então em quando Jesus diz: ´Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo` (Jo 10, 9). Significa que para entrar na vida de Deus, na salvação, é preciso passar por Ele, e não por outro, por Ele; acolher a Ele e à sua Palavra. Assim como para entrar na cidade era preciso ´medir-se` com a única porta estreita deixada aberta, também aquela do cristão é uma vida ´à medida de Cristo`, fundada e modelada n’Ele. Significa que a medida é Jesus e o seu Evangelho: não o que pensamos, mas o que Ele nos diz."

 

Vejo como algo extremamente complicado nesse tempo de pluralismo religioso dizer, sem mais, que "para entrar na vida de Deus, na salvação, é preciso passar por Ele, e não por outro". A frase, dita assim, sem um traço de maior precisão, acaba sendo ofensiva para com as outras religiões não cristãs. O cristão, sim, pode dizer que para ele, Jesus é o horizonte fundamental de referência para o acesso a Deus, mas não estender essa perspectiva universalmente para todos os outros crentes.

 

O meu orientador de pós-doutorado, o jesuíta Jacques Dupuis, dizia em sua obra fundamental, "Rumo a uma teologia cristã das religiões" (1997), que não se pode entender Jesus como "absoluto", e muito menos o cristianismo como único caminho de salvação. O atributo "Absoluto" só pode ser aplicado a Deus, à Realidade última. Deus, como Ser Infinito, está para além de toda realidade finita, incluindo aqui "a existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem". Não se pode, portanto, atribuir a Jesus o qualificativo de salvador absoluto.

 

Outro jesuíta que trabalhou com pertinência essa delicada questão foi Roger Haight, em seu livro "Jesus símbolo de Deus" (2003). Haight pontua que aqueles que não conseguem "reconhecer a verdade salvífica de outras religiões podem implicitamente estar operando com uma concepção de Deus distante da criação". Isso é muito sério e exige de nós um olhar mais ampliado e respeitoso a propósito de outros caminhos de busca religiosa. Segundo Haight, "Jesus não é constitutivo da salvação em termos universais".

 

Hoje sabemos com clareza teológica que o pluralismo religioso deve ser abraçado como um valor essencial. Sabemos também que nenhuma religião específica detém o primado da salvação, e que toda tradição religiosa, incluindo o cristianismo, é capaz "de aprender mais acerca da realidade última e da existência humana do que se acha disponível em uma única tradição". Há que ter muita humildade nesse campo. Entender também que não se "perde" passos da densidade salvífica quando se reconhece autenticamente a presença de Deus, de outras formas, nas outras religiões. Caso contrário, estimula-se não a comunhão mas a competição entre as religiões. 

 

Há que reconhecer hoje, com nitidez, que em determinadas tradições religiosas, Jesus não aparece como "o" caminho, na medida em que o Mistério Maior Inominado manifesta-se por outras formas e mediações. Reduzir todo o espaço salvífico em Jesus é, a meu ver, restringir o campo da salvação. Os amigos de outras tradições religiosas são capazes de responder ao Mistério Maior na prática mesmo de suas tradições, com as mediações específicas que ali são reconhecidas e validadas.

 

O mesmo vale para a igreja. Não se pode considerá-la, sem mais, como "sacramento universal da salvação". É outro equívoco. O fato dela ser "sacramento do Reino" não implica - como diz Dupuis - necessariamente que ela “exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor".

 

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