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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O mergulho no Mistério: em torno de Lya Luft

 O mergulho no Mistério: em torno de Lya Luft

 

Faustino Teixeira

 

Ontem, dia 30 de dezembro de 2021, fui tocado pela notícia da morte de Lya Luft, aos 83 anos de idade. Foi uma ficcionista e poeta que teve presença na minha formação, ajudando-me a trabalhar um tema muito caro ao diálogo inter-religioso, que é a impossibilidade de acessar o mundo do outro. Ajudou-me também a entender o mistério que habita as relações humanas. 

 

Em seu livro, Mar de dentro(2002), encontrei uma das frases que mais me acompanhou nas reflexões pessoais. Ela falava da presença de um “espaço intransponível mesmo nos mais íntimos amores”. Isto era como um mantra para mim, ajudando-me a captar este silêncio que também Rilke acentua repetidamente em seus poemas e também nas Elegias de Duíno.

 

Lya Luft gostava de uma passagem de Rilke que dizia:

 

“Somos apenas a casca e a folha.

A grande morte que está em todos nós,

essa é a fruta e em torno dela tudo gira”.

 

A escritora viveu um bonito romance com Hélio Pellegrino. Foi uma paixão intensa, uma história “de amor e coragem”. Tudo foi descrito num de seus livros mais pungentes, O lado fatal (1988), que guardo comigo como um tesouro. Sobre o amor entre os dois, ela falava: “Todo casal apaixonado devia morrer junto. A nossa relação também estava no auge – nos conhecíamos há apenas três anos. Não tivemos o tempo da monotonia, do desgaste. Tudo ainda era muito mágico”. Os dois tinham se conhecido num congresso de escritores em Porto Alegre em 1985. Dali nasceu uma história de amor. Foram exatamente dois anos e três meses, ceifados com a morte de Hélio, em março de 1988, quando estava no auge de sua vida, encantado pelo mistério.

 

No livro dedicado a Pellegrino, tudo ocorre para poder reviver seu grande amor. Escreveu:

 

“O meu amado morreu

preciso viver sua morte até o fim.

Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e

(banalidade)

Talvez tenha morrido na medida certa

para nada se desgastar.

Dele me vem a dor, mas também a ternura,

A claridade que me permite ver

Em todos os rostos o seu rosto (...)”.

 

A morte ceifou o amor, mas ele é o dado inegociável, que está sempre em torno, e pode um dia nos surpreender. Lia Luft sublinha que não escrevia muito sobre a morte, mas que ela é que “escreve sobre nós”. E escreve “desde que nascemos” e “vai elaborando o roteiro da nossa vida. Ela é a grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos”.

 

Dizia que, em verdade, o que somos é mistério, e que nos torna “maiores do que pensamos ser”. A vida que cresce “é em tudo um milagre”.

 

Lia, mesmo quando tomada pela dor, era capaz de perceber as frestas de luz. E reflete sobre isto em Secreta mirada(1997): 

 

“Das coisas boas e belas que acabam nos vêm sempre uma luz e uma capacidade de ver o mais banal com algum encantamento. Essa é a secreta mirada que todo mundo pode ter, mas que o acúmulo de compromissos, o excesso de deveres, a exigência de sermos cada vez mais competentes e eficazes, talvez nos roube um pouco”.

 

Sinto que isso foi roubado um pouco de Lya Luft depois que começou a escrever na Veja. Algo daquele encanto da sua escritura se perdeu, sem, porém, macular toda a beleza de seus escritos anteriores.

 

De seus livros, gosto de modo muito particular do Rio de meio(1996). Ali também fala de perdas:

 

“Quando o amor foi bom a perda dói mais, mas permanece uma raiz vital que faz retornar a esperança. Tímida, a semente se entreabre como quem desperta e boceja; lança um caule muito fino que sobe até a superfície, e um dia sabemos que a vida é de novo possível”.

 

Numa das partes mais bonitas de seu livro Rio do meio, Lya Luft começa citando uma frase de Rilke, que aborda a “floresta das contradições” que habita a vida de cada um. Ela assinala que “é preciso audácia para abrir a cortina e saltar na arena junto com tudo o que fingia sossegar, mas nos atormentava tanto”. 

 

E aí, sua reflexão singular sobre os diversos tipos de mulheres: aquelas que são ocas, tendo sido antes meninas plenas; aquelas outras mulheres simples, com seu dom que encanta, habitadas por uma capacidade que se perdeu entre as mulheres “mais sofisticadas”; e, por fim, as “mulheres ensolaradas”, aquelas cuja “luminosidade se espalha por toda parte. Mesmo abaladas por alguma fatalidade, ainda que lhes falte o que para tantas sobre em beleza ou luxo, têm em si uma espécie de obstinado sol que se desprende delas como um perfume”.

 

Para Lia Luft, a morte era um tema recorrente, mas algo que trazia consigo um ensinamento: “observar mais detidamente e saborear melhor as coisas”. Consolava um dia um amigo portador de Aids a respeito. Dizia ainda que a doença não deixa ninguém distrair da morte. 

 

Lia experimentou com o Melanoma ao fim da vida o que é ter seus dias contados: “Essa é uma das estranhas vantagens de saber que se vai morrer: a vida se mostra em todo o seu esplendor, e nos faz sentir a urgência – não de devorá-la, mas de vivê-la melhor”. As pessoas que conseguem assumir sua doença, diz Luft, são “os santos dos nossos dias”. É quando chega a hora “de desligar o som, fugir do trânsito, deixar em paz por um minuto as inúteis palavras – e tentar escutar dentro de nós uma outra linguagem”.

 

Diante das perdas recorrentes ou da consciência da morte que se aproxima, Lya Luft reconhece a importância de saborear o instante de vida em cada passo, sem pressa e com voracidade... Pois a morte pode nos surpreender com sua presença indecifrável. Evitar ser pegos de surpresa, e avançar para além de uma sensação que ocorre:

 

“Não tivemos nem tempo de pensar que estávamos vivos, e que era uma tão grande urgência ser bom, ser decente, ser pensativo, ser paciente, ser curioso, ser cansado, ser decepcionado, ser frustrado, ser generoso, ser amoroso, ser humano”.

 

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